Memphis, Ganso, Paulinho, Neymar e Luciano vestem o número imortalizado pelo Rei Pelé, mas atuam em lugares distintos no campo. Mapas de calor, análises sobre jogo posicional e a opinião de ex-jogadores ajudam a desvendar os mistérios que cercam o papel do meia clássico no futebol atual
Reportagem publicada na PLACAR de maio, edição 1523, já disponível em nossa loja, nas bancas e em versão digital (vire membro)
Obra do acaso ou profecia dos deuses do futebol? Reza a lenda que uma falha da Confederação Brasileira de Desportos (CBD, antecessora da CBF), que não teria enviado à Fifa a relação de nomes dos atletas e seus respectivos números para a inscrição na Copa do Mundo de 1958, foi responsável por criar a mística em torno da camisa 10. Aleatoriamente, o número foi parar nas costas de Edson Arantes do Nascimento, que, aos 17 anos, assombrou a Suécia e iniciou sua trajetória de rei do futebol. A dez de Pelé virou selo de qualidade, uma honraria que só deveria ser ofertada ao craque do time – de preferência um meia-atacante.
A história da Copas é elucidativa. Mario Kempes, Diego Maradona, Lothar Matthäus, Zinedine Zidane, Rivaldo, Francesco Totti, Kylian Mbappé e Lionel Messi foram alguns dos nomes a conduzir suas seleções à glória vestindo a 10. Para além da evidente qualidade, algumas diferenças entre os citados são claras. No ideal brasileiro pós-Pelé, Zico se encarregou de dar continuidade ao legado de um meia-armador cerebral, com passe refinado, precisão acima da média nas bolas paradas e fome de gol. Ronaldinho Gaúcho foi outro genial herdeiro. Mas o futebol mudou, e o estereótipo do camisa 10 também.
Hoje, como ninguém mais tem controle sobre como cada equipe enumera o seu plantel, o Brasileirão tem uma profusão de estilos envergando a camisa dos diferenciados. Memphis Depay (Corinthians), Ganso (Fluminense), Paulinho (Palmeiras), Neymar (Santos) e Luciano (São Paulo) vestem a 10, mas têm funções bem distintas. Desses, os mais próximos do imaginário que cerca um camisa 10 estão Ganso e Neymar. O curioso é que, na juventude, os dois meninos da Vila fizeram história pelo Santos, com Ganso no meio e o amigo na ponta.
Neymar, pela idade e por lesões, perdeu a explosão característica. Mas, mesmo antes disso, ainda no PSG, passou a ser um jogador com maior incidência no setor central do campo, muitas vezes recebendo a bola diretamente dos zagueiros, ou em outras flutuando entre as linhas defensivas do adversário. Essa metamorfose, contudo, foge da tendência tática dominante do jogo, o que nos leva ao questionamento: onde foram parar os camisas 10 clássicos?
Arte / PLACAR
Em um esporte cada vez mais físico, que prega pela dominação dos espaços, outras características surgiram. “É evidente que há uma preferência mundial por um perfil físico. Existe uma predominância de jogadores com viés atlético, de biotipo longilíneo, maioritariamente magros e com pernas rápidas para competir e pautar um jogo de duelos, transições e pressão”, avalia à PLACAR, Higor Santos, analista de desempenho do Flamengo.
Pep Guardiola é constantemente apontado como o criador deste movimento. Adepto do jogo de posição, o ex-volante do Barcelona emergiu como um genial treinador justamente pelo clube catalão, entre 2008 e 2012 e alcançou a sua fase mais eficiente no Manchester City, essa já menos plástica, a partir de 2016. Pep preza pelo controle e, para isso, aplica um ataque posicional mais estático, utilizando a amplitude quase máxima, encaixando atletas em setores determinados do meio, para espaçar a defesa rival. Esse modelo, que também exige uma excelente pressão após perda da posse, naturalmente, pediu atletas mais físicos e “obedientes”.
“O Jogo de Posição é uma maneira de educar o jogador no intuito de fazê-lo entender o jogo a partir das vantagens. É uma cultura onde cada movimento tem um sentido de acordo com a oposição” explica Higor, com uma ressalva. “As melhores equipes praticantes da filosofia se caracterizam pela qualidade dos jogadores na interpretação dos caminhos que o treinador dá. Afinal, o jogo segue sendo dos jogadores.”
O ex-jogador Juan Román Riquelme, maestro e ídolo do Boca Juniors no início dos anos 2000, citou um ex-comandado de Guardiola como “culpado” pela escassez de 10 clássicos. “Busquets confundiu o futebol mundial, é um camisa 5 que joga como 10. ‘Desde que ele surgiu, achamos que o 5 precisa ter um bom passe e que, se o time joga mal, é porque o volante está passando mal a bola”, afirmou Riquelme à ESPN de seu país. Na mesma linha, o City de Guardiola conta com vários meio-campistas cerebrais, como Rodri, De Bruyne, Bernardo Silva e Gundogan, ainda que nenhum deles atue exatamente no espaço outrora destinado a um Zico ou Maradona.
Para o italiano Simone Contram, que auxilia Roberto Mancini como assistente técnico desde os tempos da conquista da Euro 2021 com a seleção italiana, o camisa 10 tradicional tinha a liberdade de circular no setor ofensivo, sem maiores restrições táticas. “O advento do jogo posicional exige que os jogadores ocupem uma área predeterminada. Como resultado, há cada vez menos meias-atacantes puros, em detrimento de um meio-campista central ligeiramente avançado”, diz. “O 10 foi substituído por jogadores mais táticos, que podem ser um pouco menos técnicos e devem contribuir para a fase defensiva. Ainda acho que o camisa 10 não tenha de fato desaparecido, mas transformado.” Higor Santos complementa: “Esse tipo de jogador ainda existe, mas até pela disseminação do jogo posicional, de 4-3-3 como base, os atletas mais criativos têm sido adaptados a papéis mais recuados, na base do triângulo. Até por uma questão social, as gerações atuais são menos autossuficientes, corajosas e rebeldes que no passado”, completa Higor Santos.
Arte / PLACAR
De forma um tanto poética, o italiano Contram detalha as diferenças do jogo relacional x posicional. “O primeiro está associado a termos como criativo, instintivo, espontâneo e caótico. Já o futebol posicional está ligado a termos como mecânico, racional, controlado e ordenado.
Artisticamente, os dois estilos de jogo podem ser comparados a uma pintura de Van Gogh versus uma de Mondrian”, diz. “Vocês, brasileiros, sempre foram essência do futebol técnico. Os times mais habilidosos e criativos da história vieram do Brasil, a partir do time de 1970 com cinco camisas 10 (Gerson, Jairzinho, Rivellino, Pelé e Tostão) ao time de 1982 com Sócrates, Zico e Falcão, até o time de 2002 com Ronaldo, Ronaldinho e Rivaldo”, finalizou Contram.
Na Copa de 1958, ainda segundo a lenda, coube ao uruguaio Lorenzo Villzio, membro do comitê organizador, selecionar os números dos jogadores com base no que conhecia sobre eles — os erros mais chamativos foram os números 3 para o goleiro Gylmar dos Santos Neves, 6 para o meia Didi e 9 para o defensor Zózimo. No futebol de hoje, talvez pouca gente notasse tais deslizes.
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