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O primeiro medalhista do boxe não para de lutar

Servílio de Oliveira, 73 anos, ainda é bom de briga. Ele acaba de ganhar uma causa contra a Fundação Palmares, que o havia excluído de lista de homenageados


Servílio de Oliveira
Servílio de Oliveira, em sua casa, com a medalha no peito ./Arquivo pessoal

Entre uma luta de boxe e outra da Olimpíada de Tóquio, entre um comentário e outro na ESPN, o paulistano Servílio de Oliveira lê com atenção as páginas de um livro que decidiu não largar, sai da cabeceira para suas mãos de dedos finos: Racismo Estrutural, do advogado, filósofo e professor Silvio Almeida. “Leio e penso no boxe”, diz. Servílio, para quem não liga o nome à pessoa, foi o primeiro pugilista brasileiro a subir no pódio olímpico, com a medalha de bronze nos Jogos da Cidade do México, em 1968. Perdeu uma das semifinais da categoria peso-mosca para o mexicano Ricardo Delgado, que ficaria com o título. Mas, afinal, o que há na nobre arte que a aproxima do racismo estrutural? “Em toda Olimpíada, sempre que o boxe aparece com algum destaque, alguns críticos surgem do nada para dizer que a modalidade deveria ser proibida”, diz. “Talvez porque a maioria de seus praticantes sejam negros, nascidos de famílias muito pobres. Na Fórmula 1 perdemos um grande campeão, o maior de todos, o Ayrton Senna, e não vi ninguém sugerir o fim das corridas”.

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Medalha de Servílio Oliveira nos Jogos do México
Medalha de Servílio Oliveira nos Jogos do México ./Arquivo pessoal

E, no entanto, apesar das pressões, o boxe sobrevive como sempre sobreviveu. No início dos anos 1920, ele foi proibido no estado de São Paulo e no Rio Grande do Sul. As lutas aconteciam às escondidas, até mesmo dentro de igrejas com ringues montados na calada da noite. Liberado, voltou a ganhar as luzes. Mas nunca, nunca mesmo, deixou de ser alvo de críticas – no Brasil, nos Estados Unidos, no mundo inteiro. É violento, sem dúvida. Mas o boxe, se não a única maneira civilizada de liberar a violência inata do homem, com certeza é a forma esportiva mais pura de atender ao instinto de domínio sobre o outro. Por isso é tão magnético.

De uns anos para cá, contudo, o boxe perdeu espaço para o MMA, nocauteado por suas próprias deficiências, especialmente entre os americanos: sucessivos escândalos de corrupção, armações de resultados a favor de apostadores e a criação de inúmeras entidades. Em tempo de Olimpíada, contudo, parece haver um retorno aos bons tempos. As duas medalhas brasileiras, da peso pena Beatriz Ferreira, que disputa a final às 02h00 da madrugada de sábado para domingo, e do peso médio Hebert Conceição, ouro com um nocaute espetacular, celebradas com genuína euforia, remetem a Servílio. Sem ele, não seria exagero dizer, não existiriam nem Beatriz, nem Hebert. Não existiriam, também, Esquiva Falcão (prata em 2012), Yamaguchi Falcão (bronze em 2012), Adriana Araújo (bronze em 2012) e Robson Conceição (ouro em 2016). Servílio é o avô dessa turma. Aos 73 anos, formado em direito depois de abandonar os ringues e as academias como treinador, ele agora trata de pensar o boxe dentro da sociedade. Tenta entender como foi possível a recente melhora em olimpíadas e o que pode vir lá para a frente. “As leis Pelé, de 1998, e a Bolsa Atleta, de 2005, ajudaram a pôr um pouco de dinheiro, e com isso a modalidade cresceu”, diz. “Mas sei que há muito mais verba para outros esportes do que para os neguinhos do boxe. Tá vendo, tem racismo estrutural, sim”.  Para Servílio, o primeiro degrau dessa nova fase foi a contratação, no fim dos anos 1990, do treinador cubano Francisco Garcia, que depois se casaria com uma brasileira e aqui ficou. Os investimentos, ainda que modestos, ajudaram os boxeadores a lutar em competições internacionais. “Faz toda diferença”, afirma. “Quando disputei a Olimpíada de 1968, não tinha feito nem cinco lutas internacionais. Os brasileiros, hoje, encaram qualquer um”. Falta, contudo, para que a roda de bons resultados não pare, uma engrenagem mais permanente. “É preciso de uma lei que destine verbas não apenas para os atletas, mas sobretudo para a formação de treinadores. O boxe precisa deles”.

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Em 3 de dezembro de 1971, celebrado como o maior pugilista brasileiro desde Eder Jofre, Servílio sofreu um descolamento da retina do olho direito numa luta contra o americano Tony Moreno. Tinha 23 anos. Ainda voltou aos ringues, mas já não era o mesmo. Foi treinador de sucesso, respeitadíssimo, mas aos poucos se afastou dos ringues e das academias. Hoje, com 1m60 e 64 quilos (quatro acima do que pesava no auge da carreira), mantém a agilidade mental e a velocidade de quando era admirado com luvas. Bom de luta, diz brigar agora por respeito e igualdade.

Ele acaba de ganhar uma ação cível contra a Fundação Palmares. Servílio, ao lado de outros esportistas, tinha sido excluído da lista de homenageados da entidade criada para combater o racismo e valorizar os negros no Brasil. A Fundação havia determinado apenas homenagens póstumas e não em vida. O medalhista de bronze não concordou. Entrou na Justiça, ganhou o round e teve seu nome e o de outros que haviam sido subtraídos, reposto. Aguarda agora os 10 000 reais estipulados por danos morais. “E pensar que o presidente da Fundação Palmares, o Sérgio Camargo, é negro”, lamenta. Para Servílio, a homenagem, a briga para mantê-la e a indenização, não têm sentido pessoal. “Faço isso para que nomes como os de Beatriz Ferreira e Hebert Conceição nunca mais sejam esquecidos”.

Servilio de Oliveira (à direita) nos Jogos de 1968 -
Servilio de Oliveira (à direita) nos Jogos de 1968 – //Arquivo pessoal
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