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Superlotação mortal

O aumento no número de autorizações para a escalada e a obsessão pelas selfies turísticas levaram uma multidão nunca vista ao topo do Monte Everest 

Por que uma pessoa insiste em escalar uma montanha coberta de neve e açoitada por ventos cortantes, de 8 848 metros de altura, repleta de perigos? “Porque ela está lá”, respondeu candidamente o alpinista britânico Geor­ge Mallory, um dos primeiros obcecados em alcançar o topo do Monte Everest, o mais alto do mundo. Mal­lory morreu em 1924, a menos de 250 metros de seu objetivo (não se sabe se chegou lá), e seu corpo permaneceu enterrado na neve por 75 anos. Desde então o Everest, pico soberano do Himalaia acessado pelo Nepal, na encosta sul — a menos difícil e a mais movimentada (também há trilhas pela face norte, partindo da China) —, continua atraindo aventureiros que, ano a ano, guiados pelos célebres sherpas, como são chamados os nativos, arriscam a vida na empreitada. O número máximo de alpinistas permitido por temporada costumava ser 300, ao custo de 11 000 dólares cada um, valor cobrado pelo governo nepalês. Neste ano, foram emitidas 381 autorizações, um recorde. Em contrapartida, os dias de subida autorizada foram pouquíssimos, por causa do mau tempo. Resultado: uma multidão parada a 8 000 metros de altura, esperando a vez de alcançar o cume — e tirar uma infinidade de selfies eternizando cada momento.

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Ao todo, onze pessoas morreram nesta temporada, a quarta mais mortal da história. A diferença é que nas outras três as fatalidades foram resultado de avalanches ou terremotos. Agora, a maioria das mortes se deve, incrivelmente, à superlotação. Com tanta gente lá em cima, alguns turistas tiveram de esperar doze horas na fila para alcançar o topo, estacionados na chamada “zona da morte” — onde, sem um suprimento adequado de oxigênio, o corpo humano começa a perder suas funções devido ao frio extremo e ao ar rarefeito. Alpinistas inexperientes e despreparados sucumbiram aos efeitos da exaustão. “Houve um aumento vertiginoso no número de pessoas que tentam subir o Everest sem nunca ter escalado montanhas menores”, explica o alpinista argentino-brasileiro Maximo Kausch, recordista mundial na escalada de montanhas de extrema altitude e dono de uma agência de turismo dedicada a esse segmento.

Juntando-se sherpas e alpinistas, amadores ou não, a população no alto do Everest alcançou mais de 800 pessoas. Pesa sobre o governo do Nepal boa parte da responsabilidade, por ser o encarregado de conceder a permissão para a escalada. Não há regulamentação sólida e detalhada para a atividade, e as autoridades não têm nenhuma intenção de criar uma. “Se for para impor mais limites, o melhor é acabar de vez com as expedições em nossa montanha sagrada”, abespinha-­se Danduraj Ghimire, diretor do Ministério do Turismo do Nepal, um dos países mais pobres do mundo, que tem no Everest uma de suas maiores fontes de renda. “É muito provável que as agências de viagem continuem a decidir quem pode subir ou não”, diz o montanhista Manoel Morgado, que também organiza excursões rumo ao pico.

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Ventos de mais de 200 quilômetros por hora sopram no cume da montanha. Só no mês de maio as correntes de ar quente provenientes da Índia abrem a chamada “janela meteo­rológica” para a subida, que varia de três a sete dias. Neste ano, ela foi especialmente minúscula: de 21 a 23 de maio. Daí o enorme engarrafamento no último trecho, com gente passando mal sem que os vizinhos se prontificassem a ajudar, cada um economizando seu oxigênio e empurrando o outro para chegar ao topo. “Já vi muita atitude irracional nas alturas. O ser humano, quando fica exausto, volta ao estado primitivo”, diz Kausch.

A superlotação não é o único problema da montanha mais alta do planeta. O lixo acumulado ao longo de quase um século de tentativas de escalada levou a China a fechar seu acesso, em fevereiro. Na face nepalesa, um grupo de catorze pessoas da Campanha de Limpeza do Everest recolheu em duas semanas 3 toneladas cúbicas de latas, garrafas, plástico e equipamento descartado nas encostas. A meta é chegar a 10 toneladas. A equipe também encontrou quatro corpos que a neve havia soterrado e reapareceram em consequência do outro grande problema do Himalaia: as mudanças climáticas que estão derretendo as geleiras a passo acelerado. Sem um esforço concentrado, o Everest, em algum momento da história, corre o risco de não estar mais lá.

Publicado em VEJA de 5 de junho de 2019, edição nº 2637

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