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PL do Mandante acelera a ruptura dos direitos de transmissão 

Com o fim da exclusividade da Globo em 2024, o fracionamento dos direitos e a monetização da informação prometem revolucionar a geração de receitas

A final do Campeonato Paranaense de 2017 entre Athletico e Coritiba foi somente uma das dezoito finais estaduais daquele 7 de maio. O sem-graça 0 a 0 deu o título ao Coxa, que havia vencido o jogo de ida por 3 a 0. Ainda rendeu ao Coritiba um lugar nos Trending Topics do YouTube, um verdadeiro feito. A fama, contudo, não se deu pela taça conquistada, mas pela quebra de um paradigma, que nem todos entenderam.

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Após recusarem a proposta da Globo, as duas equipes decidiram transmitir seus jogos exclusivamente pela internet, via Facebook e YouTube. Aquele Atletiba alcançou 1,6 milhão de visualizações no primeiro jogo e outros 1,1 milhão no jogo da volta. 

O sucesso com as transmissões online ligou o alerta de dirigentes sedentos por mais dinheiro do que a Rede Globo paga atualmente pelo pacote fechado dos direitos sobre o produto. Mas não porque a internet esteja disposta a pagar mais. Com o fatiamento dos direitos televisivos, e a possibilidade de transmissão direta, os cartolas perceberam o valioso diferencial que poderiam obter, isto é, os dados gerados no ambiente digital. Essa nova economia baseada na monetização da informação já está impactando o futebol.  

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O investimento dos clubes no momento está direcionado em transformar dados em conhecimento. Segundo pesquisa da International Data Corporation (IDC) no Brasil, empresas que melhoraram a gestão e análise dos seus dados apontaram o aumento de 20% dos lucros, 22% de aumento da satisfação do cliente e 20% menos tempo para lançamento de novos produtos no mercado.

Essa monetização dos dados se torna ainda mais atraente, caso o Projeto de Lei nº 2.336/2021, conhecido como PL do Mandante, aprovado na Câmara dos Deputados na última quarta-feira, 14, seja também aprovado no Senado e sancionado pelo Presidente Bolsonaro. O Projeto pretende alterar a Lei Pelé para que o direito de negociação da transmissão seja exclusivo do mandante do jogo. Hoje, para a exibição de uma partida é necessário o contrato com ambas as equipes. Na prática, as emissoras, tanto a Globo, como a Turner ou o canal próprio de um clube, poderão exibir mais jogos, bastando a negociação com o time da casa. 

Por outro lado, a não exclusividade da transmissão da partida diminui o seu valor no mercado. Diversos canais, em TV aberta ou paga, poderão exibir a mesma partida, acelerando a desvalorização da transmissão para a televisão, deixando mais atrativa a detenção e monetização dos dados colhidos em ambientes digitais. 

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Com a aprovação desta mudança legislativa, uma das controvérsias que surge é o contrato que a Globo detém com a maioria dos clubes da série A do Campeonato Brasileiro e válido até 2024. No formato atual, outra empresa não pode transmitir um jogo, cujo um dos times tenha contrato com a Globo, mesmo sendo só o visitante. 

A Turner, que transmite os jogos pela TNT, possui contrato com Athletico-PR, Bahia, Ceará, Fortaleza, Juventude, Palmeiras e Santos e só pode transmitir jogos entre essas equipes. Com a nova lei, poderão transmitir qualquer jogo desde que esses times sejam os mandantes.

Para tentar sanar o problema, o deputado Alex Manente (Cidadania – SP) apresentou uma emenda ao PL do Mandante para que tais alterações sejam aplicadas, exceto aos contratos vigentes. Essa emenda beneficia a emissora carioca, e acabou apelidada de Emenda Globo. O PL foi aprovado na Câmara dos Deputados com a manutenção desta emenda, basta aguardar se ela será mantida também no Senado e pelo Presidente quando e se sancionar o projeto.

Apesar desta celeuma ainda indefinida, os clubes se animaram com as possibilidades que a venda de forma desmembrada dos direitos de transmissão gerará. Serão, pelo menos, oito fontes de renda aos times de futebol: Tv Aberta; Tv Paga; Streaming; Fantasy Games; Naming rights; Sites de apostas; Placas de publicidades nos estádios e Transmissão internacional.

A empolgação não foi à toa. O futebol foi o campeão de alcance na categoria “Vídeos em Alta” do YouTube em 2020. A final da Taça Rio, disputada entre Fluminense e Flamengo, liderou o ranking da categoria com o pico de 3,6 milhões de acessos simultâneos. Inclusive, ganhando o título de maior audiência em transmissão simultânea do YouTube no mundo, maior que a do Superbowl na internet, por exemplo. 

Os sinais positivos para as transmissões na internet são evidentes, mas os números ainda estão muito aquém da média atingida pela TV aberta. No Fla-Flu do Brasileirão exibido pela TV Globo no mesmo ano, foram registrados 36 pontos de audiência em média, o que significa 26 milhões de pessoas sintonizadas.

Erley Lemos, Diretor de Marketing e Negócios do clube América-MG, explica alguns dos motivos para os números ainda tão distantes entre esses dois mundos em disputa: “Tem torcedor que não vai para a internet. É diferente assistir futebol e assistir futebol na Globo. É difícil ter um player que valorize o futebol, como eles valorizam. Não é simplesmente a audiência. Não é só o financeiro, mas todo o entorno”.

Os clubes perceberam a importância do investimento em canais próprios de streaming. Diversificar a plataforma de exibição e o conteúdo, mesmo sem a exibição de jogos, pode gerar até a mesma renda obtida com os direitos de transmissão e tudo isso por conta do fatiamento do produto e dos dados coletados.

Dados, o recurso mais valioso do mundo

O consumidor quando contrata um serviço na internet, desde a assinatura da Netflix até chamar um motorista da Uber, compartilha seus dados com aquela empresa. O mesmo pode ocorrer com a transmissão direta Clube-Torcedor. Entre as vantagens, a principal é possuir a informação completa de quem está consumindo o seu produto. Por exemplo, os 12 milhões de palmeirenses deixam de ser simples torcedores e passam a ser potenciais fornecedores de dados pessoais. O Palmeiras pode capitalizar as informações e revertê-las em publicidades direcionadas ou até mesmo vendê-las para outras empresas. 

Com o acesso dos dados dos torcedores, incluindo, se, como e quando ele assiste uma partida de futebol, viram uma mina de ouro a ser explorada para ações que vão muito além das quatro linhas do gramado. Os times que negociarem direto com seus torcedores conhecerão, por exemplo, quantos deles são futuros universitários, o que pode interessar para um potencial patrocinador. Poderão conhecer a renda dos torcedores que têm intenção de tomar dinheiro emprestado. No caso do Palmeiras, essas informações são preciosas para seus atuais patrocinadores, a Faculdade das Américas e a financeira Crefisa.  

A disputa dentro de campo entre Palmeiras e Flamengo como melhor equipe do Brasil acontece também nos bastidores do marketing esportivo.

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O Palmeiras lançou recentemente, em 7 de abril, sua nova plataforma, a TV Palmeiras Plus. Em entrevista ao Meio & Mensagem, Roberto Trinas, diretor-executivo de marketing do clube, esclareceu que “uma plataforma própria como essa permite também conhecer o nosso torcedor. Com isso conseguimos oferecer o produto certo para a pessoa certa.” 

Movimento parecido acontece também no Flamengo. O vice-presidente de Comunicação e Marketing do clube, Gustavo Oliveira, explicou a PLACAR que o futuro da negociação dos direitos de transmissão não passará somente por uma única empresa dominando todos os meios. O clube vê a FlaTV+ como uma grande oportunidade. “É um processo de aprendizado importante e de posicionamento para o futuro. Pensamos o Flamengo não só para a nossa administração, é algo para os próximos cinco ou dez anos. O modelo tradicional de TV aberta funcionou e ainda funciona bem para o Brasil, mas não acreditamos que seja o modelo do futuro. Queremos estar preparados para tudo.”

Erley Lemos esclarece a importância dos dados para os novos negócios do time América, de Minas Gerais: “O big data e a ciência de interpretar os dados são importantes para o clube em todos os aspectos, entender qual perfil de consumo do seu torcedor para isso virar uma moeda forte na hora de negociar um patrocínio. O patrocinador não quer só gerar visibilidade como também negócios. Os dados entram na geração de negócios. No futuro a monetização dos dados pode se igualar aos direitos de transmissão”.

Os clubes estão em uma corrida contra o relógio para aprimorar os novos formatos de transmissão e aproveitar todos esses modelos promissores de negócios. Perceberam que é muito mais do que transmitir uma partida pelo Youtube. O atual contrato de exibição exclusiva do Campeonato Brasileiro entre a Rede Globo e a maioria dos clubes vence em 2024. É por isso que os atuais experimentos vão influenciar nas novas negociações. Se é que elas vão ocorrer…

Nem tudo são flores nessa caminhada para o futuro da transmissão esportiva. Com o fracionamento do produto, além da incerteza sobre a renda, os clubes precisarão se responsabilizar pelos custos, qualidade do conteúdo, bem como da transmissão até o torcedor. 

Clubes filiados à Federação de Futebol do Rio de Janeiro (Ferj) começaram os testes com o fatiamento do Campeonato Carioca. Para se ter ideia, até 2020 a Globo pagava 120 milhões de reais para transmissão do campeonato em televisão aberta, fechada, pay-per-view e bloqueava a transmissão em streaming

Para este ano a Ferj vendeu os direitos para TV aberta para a Record por apenas 11 milhões de reais. Os direitos sobre pay-per-view ficaram com a Federação e com os clubes que receberão 53% do valor das assinaturas, além da possibilidade de transmissão das partidas em streaming, exibição internacional e direitos sobre o segmento de apostas. 

A negociação arriscada realizada pelos clubes cariocas, ainda mais em um período de pandemia e baixa arrecadação, mostra o quanto estão apostando neste promissor modelo de negócio, motivados não só pelas novas mídias que poderão explorar, como pelos dados que serão recebidos e transformados em conhecimento. Procurada para comentar as mudanças no mercado de transmissão esportiva, a Rede Globo preferiu não responder à reportagem. 

A importância dos direitos de transmissão

Uma questão em suspenso é que até agora não se conseguiu valorar quanto o fatiamento da transmissão poderá gerar de novas receitas. Mas é certo que estamos diante de uma revolução em termos de investimento no futebol.

Esse salto financeiro não será o primeiro da história do esporte. Se hoje a maior fonte de renda dos clubes são os direitos televisivos, isso se deve a uma quebra de paradigma da mesma magnitude ocorrida no passado.

Esse precedente ocorreu em 1987 com a venda da exclusividade de exibição da Copa União para a TV Globo. João Henrique Areias, um dos precursores do marketing esportivo no Brasil, foi diretor de marketing do Clube dos 13 e responsável pela negociação concretizada por 3,4 milhões de dólares, o que na época era um montante impensável. O Clube dos 13 é o nome mais conhecido da União dos Grandes Clubes do Futebol Brasileiro, criada para a defesa dos interesses políticos e comerciais dos principais clubes do Brasil. A entidade vigorou de 1987 até 2011.

Areias contou à reportagem que sua estratégia não foi vender um jogo de futebol, mas um conceito. “A perspectiva de resgatar a paixão do futebol não tem preço”. Parte do pagamento foi feito com espaços publicitários, favorecendo patrocinadores. Com a exposição, os clubes registraram suas marcas e passaram a licenciar produtos. Até o lançamento de álbuns de figurinhas se tornou um produto rentável para os clubes. 

O que hoje parece comum foi uma revolução no final dos anos 1980. A edição de PLACAR de dezembro de 1987 noticiou que aquela Copa União poderia “representar para o futebol do Brasil uma mudança tão radical como a instituição do profissionalismo, na década de 30, ou a inauguração do Maracanã, em 50”. A reportagem estava corretíssima.

Na Europa, entre 1984 a 1999 a receita oriunda da televisão cresceu 1.220 vezes, enquanto a de contratos publicitários 33 e a de bilheteria 5 vezes, conforme levantamento realizado pelo professor Anderson David Gomes dos Santos. Os dados estão presentes em sua tese de mestrado, defendida na Universidade do Vale do Rio dos Sinos em 2013, que mais tarde se consolidou no livro “Os direitos de transmissão do Campeonato Brasileiro de Futebol“.

A explosão de receitas também ocorreu com a transmissão da Copa do Mundo que, convertidos em moeda atual, era de 30 milhões de dólares em 1986, 60 milhões de dólares em 1990 e saltou para 991 milhões de dólares em 2006. A diferença se deve à estratégia de negociação adotada. Antes os acordos eram feitos por continente e a partir de 2002 passaram a negociar direto com os países, aproveitando a grande concorrência entre empresas locais.

Areias vendeu paixão em 1987, e hoje querem comprar conhecimento. Como bem pontuou Erley Lemos, “a questão dos dados vai trazer um diferencial para os clubes que será muito difícil de regular, mas ela pode ser equilibrada com criatividade. Quantidade não é qualidade, muitas vezes o patrocinador vai pagar mais por um pequeno nicho, mas que esteja mais alinhado com a política dele do que uma grande plataforma que ele desconhece o público”.

A ruptura do atual modelo de comercialização dos direitos de transmissão gerará valores nunca antes contabilizados. Essa transformação está ocorrendo agora, silenciosamente, para que em 2024, ou antes caso o texto original do PL do Mandante seja aprovado, apareça com muito mais relevância e com reflexos significativos em investimentos na maior paixão dos brasileiros.

* Sérgio Kendziorek é estudante de pós-graduação de Jornalismo da Faculdade Cáper Líbero

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