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Os batalhões, os alemães e seus canhões

Para quem tem medo de bicho-papão, talvez bastasse citar uma pequena estatística. Nos 21 jogos que já disputou com a Alemanha, o Brasil ganhou doze – lá, cá e acolá -, empatou cinco e só perdeu quatro. Como retrospectos podem ser enganosos, pois nada impede que o vencedor de ontem seja o derrotado de hoje, […]

Para quem tem medo de bicho-papão, talvez bastasse citar uma pequena estatística. Nos 21 jogos que já disputou com a Alemanha, o Brasil ganhou doze – lá, cá e acolá -, empatou cinco e só perdeu quatro. Como retrospectos podem ser enganosos, pois nada impede que o vencedor de ontem seja o derrotado de hoje, vamos contar uma história para que as crianças possam dormir mais sossegadas.

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Era uma noite amena de primavera. Em Steinheim, cidadezinha próxima a Stuttgart, dezenas de alemães, em sua maioria gordos e rosados (sempre achamos que eles são desse jeito, e em geral são mesmo), jantavam alegremente no restaurante do hotel Forshof. Bebiam cerveja e falavam alto. Uns e outros cantavam, embalados por doses de steinheger. Garçonetes loiras, sorridentes e apressadas serviam pratos de salsicha e joelho de porco.

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Algumas horas antes, naquele 19 de maio de 1981, a cerca de 35 quilômetros dali, no Neckarstadion, a seleção brasileira derrotara mais uma vez a seleção alemã. Nenhuma surpresa. Tinha feito isso no passado – menos de cinco meses antes lhe aplicara uma goleada por 4 a 1 em Montevidéu, no torneio conhecido como Mundialito, com o qual o Uruguai celebrava o cinquentenário da Copa do Mundo e de sua primeira conquista – e faria a mesma coisa no futuro. Em um canto do restaurante, a uma prudente distância dos comensais mais ruidosos, o fotógrafo JB Scalco e eu aguardávamos que as incansáveis garçonetes nos servissem.

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As atarefadas moças corriam sem parar, pois também precisavam trazer o jantar dos jogadores brasileiros. Hospedados no mesmo Forshof, eles começavam a descer de seus quartos para comer. Pois é. Os craques canarinhos – falamos de Zico, Sócrates, Toninho Cerezo, Júnior… – misturavam-se às pessoas comuns, repórteres inclusive, e nada lhes acontecia. No caminho para a mesa, atendiam pedidos de autógrafo. Os alemães agradeciam, davam cordiais parabéns pela vitória e voltavam às canecas de chope, retomando a cantoria.

Embora desconfiasse, a gente ainda não tinha certeza. Aquele, com o reforço de Falcão, seria o time que, no ano seguinte, encantaria o planeta na Copa da Espanha – e, numa tarde infeliz em Barcelona que entraria para a saga das nossas decepções, acabaria sendo eliminada tristemente pela Itália. Mas por enquanto tudo era festa. Afinal, a equipe montada pelo técnico Telê Santana, sentado todo pimpão na cabeceira, encerrava uma rápida e triunfal excursão pela Europa. Foram três jogos contra adversários muito fortes. Três jogos, três vitórias: 1 a 0 contra a Inglaterra, em Wembley – onde o Brasil nunca ganhara dos anfitriões -, 3 a 1 contra a França, no Parc de Princes, e naquele dia 2 a 1 contra a Alemanha. Na manhã seguinte, o Bild Zeitung, jornal de maior circulação no país, daria na manchete: “Die best elf der Welt”, o melhor onze do mundo.

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Subitamente, a barulheira no restaurante diminuiu de volume. Os clientes da casa não paravam de olhar admirados para uma figura um tanto calva, de costeletas, meio sem jeito com a atenção que despertava. Enquanto ele se encaminhava para a mesa, vieram os aplausos, a princípio tímidos e logo em seguida intensos. Vários alemães bateram palmas em pé. Foi uma cena arrepiante. O restaurante inteiro ovacionou o goleiro Waldir Peres. Ele próprio, que estava longe de ser uma unanimidade entre os torcedores brasileiros.

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Era o reconhecimento por uma atuação marcante. Mais do que marcante, soberba. E inesquecível. O Brasil saíra perdendo no primeiro tempo, Cerezo empatou e Júnior, cobrando falta – Zico e Éder estavam posicionados para bater, mas o lateral-esquerdo do Flamengo passou na frente dos dois e desferiu um belíssimo petardo, comparável ao de David Luiz que liquidaria a Colômbia -, desempatou na segunda etapa. Na pressão alemã, Magath acertou uma cabeceada de cima para baixo e Waldir pegou, em uma defesa que chegou a lembrar a do inglês Banks na Copa de 70 após a testada de Pelé.

Nosso camisa 1 brilharia mais. Perto do final da partida, pênalti para a Alemanha. Quem era o barbudo que se posicionou para cobrar? Ele, Paul Breitner. Dizia-se que nunca havia desperdiçado uma única penalidade em toda a sua vida, incluindo as peladas que jogava com seus companheiros de militância nas hostes maoístas. Zico contaria, no final do jantar, que pensou em falar para Waldir que Breitner chutaria no canto direito, como na decisão da Copa de 74, mas preferiu ficar quieto porque, numa dessas, o homem mudaria de ideia e o goleiro pularia para o lado errado. Só que Waldir lembrou-se da mesma coisa, como se fosse transmissão de pensamento, voou para a direita e espalmou.

Houve um mar de abraços e comemoração. O árbitro inglês Clive White, porém, viu que ele havia se adiantado e mandou repetir. “Ele vai trocar de canto”, previu Waldir. Dito e feito. Foi para o lado esquerdo e pegou de novo. Mais uma vez, mexeu-se antes da hora. O juiz validou o lance. “E você acha que ele teria coragem de mandar o Breitner bater três vezes?”, diria depois. Virou um herói, como – passados longos 33 anos – Júlio César diante do Chile e o holandês Krul frente a Costa Rica.

Felizes e orgulhosos, os jogadores brasileiros iriam rever vários lances do jogo antes de dormir. A certa altura, quando a Alemanha ganhava e o Brasil tocava a bola com calma e categoria, Sócrates ouviu Telê comentar: “Time que joga com essa tranquilidade não pode perder para ninguém”. Não seria assim em 1982, infelizmente, mas naquele momento – e futebol é momento – a seleção, como na música João e Maria, de Chico Buarque e Sivuca, enfrentava os batalhões, os alemães e seus canhões. Derrotou-os – e por que, nesta terça-feira em Belo Horizonte, superando as adversidades, não poderá derrotá-los mais uma vez?

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