Mayra Aguiar: ela tem a força!
O judô, esporte que mais deu medalhas ao Brasil na história das Olimpíadas, aposta na seleção feminina, liderada por Mayra, para subir ao pódio em pelo menos cinco das sete categorias em disputa
O mundo do esporte profissional é feito de pouca vida social, com treinos incessantes, dores além do limite do suportável e lesões inevitáveis. Pois esse rol de sofrimentos é só uma parte do sacrifício que a judoca gaúcha Mayra Aguiar, 23 anos, teve de encarar: em nome da carreira, conjugou o verbo que toda mulher odeia e engordou 8 quilos. O objetivo era brilhar na categoria meio-pesado (entre 70 e 78 quilos, seu peso). Valeu a pena. Com a silhueta reforçada pela musculatura poderosa, Mayra esteve no topo do ranking mundial até o mês passado e é a maior detentora de medalhas da seleção feminina de judô, que é a principal aposta do Comitê Olímpico Brasileiro para colocar o país entre os dez primeiros lugares na Olimpíada do Rio de Janeiro, em 2016 – uma aposta bem ambiciosa.
Quando não está lutando, Mayra (pronuncia-se “Máyra”, com tônica na primeira sílaba) é uma garota simpática, alegre, articulada e segura de si. No tatame, vira fera, um prodígio de técnica, determinação e tremenda força nos golpes, sua principal característica. Já enfrentou e venceu as outras nove mais bem colocadas no ranking. Entre os meios-pesados, acumula até agora seis medalhas, que guarda em uma gaveta enquanto não providencia “um cantinho legal”: uma em Olimpíada (bronze em Londres) , uma em Pan-Americano (bronze em Guadalajara) e quatro em Mundiais (entre elas o primeiro ouro, em 2014). “No tatame, é guerra”, resume. Sendo assim, prepara-se para o combate com disciplina e muito suor, entre ginástica e treino de segunda a sábado.
Traça cerca de 3 000 calorias por dia. Dona de um metabolismo muito acelerado, costumava desmaiar depois das lutas por causa da energia despendida e tem de se cuidar para não emagrecer (chega a perder 1 quilo quando dorme). Destra, virou canhota também, e aplica golpes para os dois lados com igual habilidade. Na academia, levanta 100 quilos e suporta peso igual nos agachamentos. “É preciso fechar a mão no quimono da adversária e não desgrudar. Nas categorias mais pesadas não adianta só técnica, tem de ter força”, explica. No caso dela, há outros aspectos físicos que também ajudam. “O volume da musculatura, o formato dos ombros e braços, os seios pequenos, os quadris não muito largos – ela tem um corpo que alcança resultados excepcionais”, descreve Kiko Pereira, seu treinador há onze anos, desde o início da carreira, no clube Sogipa, em Porto Alegre.
Mayra é produto da bem-sucedida iniciativa de Ney Wilson, gestor técnico de alto rendimento da Confederação Brasileira de Judô (CBJ), que em 2005 decidiu separar a seleção feminina da masculina e deu à ex-judoca Rosicleia Campos, hoje com 45 anos, a função de técnica e a missão de fazer do país uma referência na modalidade. Àquela altura, nosso judô feminino tinha apenas um nome de destaque: Edinanci Silva, a atleta que, com sua performance memorável, plantou a ideia de fazer desse esporte uma fábrica de ganhar medalhas. Em Londres (2012), a seleção verde e amarela de judô foi a primeira, entre todas as modalidades, a subir quatro vezes ao pódio em uma única edição dos Jogos (leia mais no quadro acima sobre os custos para a montagem do time olímpico que foi à Inglaterra há três anos). Natural de Souza, na Paraíba, e envolvida em rumorosa polêmica nos Jogos Olímpicos de 1996 por ter tido de provar que é mulher (ela nasceu hermafrodita), Edinanci, hoje com 38 anos, já havia ganho três bronzes e um ouro, este no Pan-Americano de 2003 (ainda levaria outro, em 2007). Investindo em treinamento e musculação pesada, o time de brasileiras foi galgando pódios. Em 2008, obteve a primeira medalha olímpica, com Ketleyn Quadros; e em 2012 vieram o ouro de Sarah Menezes e o bronze de Mayra. Nos últimos cinco anos, o time feminino conquistou treze medalhas em Mundiais – na edição de 2013, disputada no Rio, elas terminaram a competição individual com o melhor desempenho geral e ficaram com a prata na disputa por equipes. “Das sete categorias a ser disputadas em 2016, temos chances reais de ganhar em pelo menos cinco”, estima Rosicleia sobre suas pupilas, que vão lutar para manter o judô como o esporte que mais deu medalhas ao Brasil até hoje nos Jogos (dezenove, contra dezessete do iatismo).
Foi justamente para entrar no lugar de Edinanci que Mayra engordou, trocou de categoria e passou a colecionar prêmios. Se o preço são músculos além da conta, paciência. “Se não for assim, apanho”, conforma-se. “Às vezes é difícil achar roupa para o meu tamanho, experimento um vestidinho para sair e ele não entra. Quando reclamo, meu técnico rebate: quer ficar bonitinha ou ganhar competição?”, diz, rindo. Com 1,78 metro e apenas 12% de gordura corporal, além de discretas luzes douradas no cabelo, Mayra já rodou o mundo lutando, mas apenas no ano passado viajou ao exterior pela primeira vez como turista: foi à Argentina “com um namoradinho”. A família também vive em Porto Alegre, mas ela mora sozinha em um apartamento em frente ao clube. É fã dos Beatles e de hip hop e recentemente descobriu o sertanejo. Aluna do primeiro período da faculdade de educação física, trancou a matrícula por ora. Em Porto Alegre, não é raro ser reconhecida e chamada na rua, geralmente de forma errada – Mayara, Maíra. Se ganhar a medalha de ouro em 2016, o Brasil inteiro vai aprender a pronunciar certinho o nome de Mayra.
Estrutura profissional
Para montar o ranking do judô no país, a CBJ organiza cinco seletivas por ano. Os melhores são levados para a equipe nacional. Na preparação para os Jogos Olímpicos de Londres, a seleção nacional arrecadou 25 milhões de reais com patrocinadores. Esse dinheiro permitiu, entre outras coisas, que nossos medalhistas continuassem vivendo em sua região de origem: Sarah Menezes (medalha de ouro) treina no Piauí; Rafael Silva, em São Paulo; Mayra Aguiar e Felipe Kitadai, em Porto Alegre.
Há três anos, só com viagens, médicos e equipamentos, foram gastos 5 milhões de reais. No total, 143 judocas participaram do chamado ciclo olímpico. Eles estiveram em 109 competições internacionais, lutaram 3 000 vezes e conquistaram 402 medalhas, das quais 136 de ouro. Hoje, o Brasil disputa em igualdade de condições com Japão, Rússia, França e Coreia do Sul a supremacia do judô mundial, tanto no masculino como no feminino. E os atletas ganham o suficiente para só treinar e competir, sem precisar dividir o tempo com outros trabalhos, longe do tatame.
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