Guga celebra glórias – mas lamenta a falta de um sucessor
No dia em que completou 38 anos, o maior tenista já surgido no Brasil lançou a sua autobiografia em São Paulo e relembrou trajetória, que considera ‘absurda’
“Se 10% das pessoas que pegaram em uma raquete por minha causa tivessem dado sequência no esporte, hoje o país estaria cheio de tenistas. O jovem se iniciava no esporte, mas não tinha motivação para continuar, a maioria desistia com menos de seis meses. É assustador”
O catarinense Gustavo Kuerten foi o maior tenista brasileiro de todos os tempos: tricampeão de Roland Garros, ele ocupou o topo do ranking da ATP por 43 semanas consecutivas, entre 2000 e 2001. O currículo incontestável e a admiração que conquistou no mundo inteiro já o credenciam como um dos maiores ídolos do esporte no país. Ainda assim, Guga se considera apenas “um cara normal”. Na noite de quarta-feira, ele lançou, em São Paulo, a autobiografia Guga, um Brasileiro, da Editora Sextante, no dia de seu 38º aniversário. Com o carisma e a simplicidade que o transformaram numa das figuras mais queridas do circuito profissional, Guga atendeu a centenas de fãs no evento e falou com satisfação sobre o livro, que levou cerca de cinco anos para ser publicado. O sorriso só saiu do rosto do campeão quando Guga falou sobre a escassez de novos talentos na modalidade. Mesmo sem perder a modéstia, ele avaliou que sua trajetória não pode servir como parâmetro e que o tênis brasileiro precisa de uma reformulação geral para que novos “Gugas” possam surgir.
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Ao explicar o título de sua biografia, Kuerten relembrou o início de sua carreira e a semana que mudou sua vida – aquela do inesperado título de Roland Garros de 1997. De um dia para o outro, o garoto cabeludo, de camisa extravagante e apenas 20 anos havia desbancado os melhores tenistas do circuito e se tornado uma celebridade mundial. Segundo Guga, o triunfo em Paris era impossível de compreender. “Se acontecessem outros mil Roland Garros em 1997, eu não teria ganhado nenhum. Minha história é completamente absurda e descontextualizada. Eu era só mais um garoto de Floripa. Como poderia ganhar um Roland Garros, ser melhor do mundo?”. Segundo Guga, o grande objetivo de seu livro é transmitir suas sensações pessoais e, com isso, inspirar futuras gerações. “O título do livro foi esse porque eu sou um cara normal. Se você for analisar a minha história, eu sou uma pessoa como qualquer outra que nasce no nosso país. Alcançar o que alcancei não dependeu só de mim, mas de muita gente e de um monte de coisas. Sei que é mais difícil para nós, brasileiros, mas é possível.”
O ídolo, no entanto, admitiu que o fenômeno Guga não surtiu os resultados esperados no tênis brasileiro. Passados quase quinze anos desde que Guga alcançou o topo do ranking, o Brasil nunca mais obteve grandes resultados na modalidade (atual número 1 do país, Thomaz Bellucci chegou no máximo à 21ª posição da ATP e hoje e apenas o 83º). Curiosamente, Kuerten deu a entender que sua popularidade pode até ter prejudicado o desenvolvimento do tênis. “De um dia para o outro, todo mundo queria entrar em uma escolinha de tênis. Mas isso ocorreu de forma desordenada, tinha muito aluno para pouco professor. Essa transformação prejudicou o tênis brasileiro, porque não existia uma estrutura, não havia investimento para isso.” Ainda assim, Guga elogiou os atuais representantes do país – até demonstrou esperanças no confronto entre Brasil e Espanha na Copa Davis, que acontece neste fim de semana, em São Paulo – e disse que sua frustração se limita à falta de investimentos na modalidade. “Minha tristeza é pelo desperdício da geração que poderia ter surgido a partir de 1997, não pela falta de resultados. Mas não vejo uma crise no tênis nacional. Eu é que fui uma curva de inflação no tênis brasileiro. Eu não sou parâmetro.”
Durante a festa, Guga recebeu o carinho de muitos amigos e familiares – apesar de normalmente evitarem os holofotes, a mulher e os filhos do atleta compareceram e posaram orgulhosos para fotos. Emocionado, Kuerten chegou a tocar em um assunto pouco explorado durante sua carreira, mas que mereceu um capítulo especial da biografia, intitulado “A maior perda em todos os torneios”: a morte de seu pai, Aldo, ainda na infância do tenista. “Seria lindo ter o meu pai presente até hoje, é óbvio que é uma lacuna, mas sinto que ele sempre esteve presente, junto com minha mãe, meus irmãos e o Larri”, afirmou, citando a mãe, Alice, que assina o prefácio do livro, e Larri Passos, seu ex-técnico e mentor. A seguir, os principais trechos da entrevista de Guga no lançamento do livro, que está à venda por 39,90 reais.
O livro
“Não sei dizer quanto tem do Guga tenista e quanto tem do Guga pessoa no livro, porque, no fim das contas, era tudo a mesma coisa. Mas não é um livro que se limita apenas a uma quadra de tênis. O esporte tinha muita importância na minha vida, mas meus interesses sempre foram muito mais amplos que os títulos e conquistas. Acho que 70% do conteúdo é sobre minha vida antes do primeiro título de Roland Garros.”
O título de 1997
“Se acontecessem outros mil Roland Garros naquele ano, eu não teria ganhado nenhum. Foi uma semana em que deu tudo certo para mim. Ninguém me conhecia, mas tinha que acontecer. Minha carreira mudou dali para frente.”
O pai
“Eu sempre gostei de relembrar meu pai. Mesmo em situações drásticas da vida, eu sempre tento buscar um motivo de alegria e de orgulho. Ao escrever o livro, descobri coisas sobre meus pais que eu nem sabia. Ri, chorei, foi bacana de relembrar. A vida é isso, é incontrolável. Seria lindo ter o meu pai presente até hoje. É óbvio que é uma lacuna, mas sinto que ele sempre esteve presente, junto com minha mãe, meus irmãos e o Larri.”
Juventude
“No início foi difícil. Eu tive que aprender a ser tenista, a ter o instinto de ‘matador’. No começo, eu ganhava de alguém e se via que o adversário ficava triste com a derrota, eu ficava com dó, me arrependia de ter ganhado. Com o tempo eu fui adquirindo o espírito de competição. Mas nesse tempo, eu queria só ser melhor que o professor do clube ou, no máximo, o melhor da cidade. Eu olhava um Sampras ou Agassi pela TV e pensava: ‘Jamais vou chegar lá, esses caras são de outro planeta’. O esporte era muito amador nessa época.”
Popularidade
“O título de 1997 causou um impacto em massa. De um dia para o outro, todo mundo queria entrar em uma escolinha de tênis. Mas isso ocorreu de forma desordenada, tinha muito aluno e pouco professor. Eu digo que essa transformação prejudicou o tênis brasileiro, porque não existia uma estrutura, não havia investimento. O tênis vive à mercê de um caso esporádico como o meu. O problema está na base. Se 10% das pessoas que pegaram em uma raquete por minha causa tivessem dado sequência no esporte, hoje o país estaria cheio de tenistas. O jovem se iniciava no esporte, mas não tinha motivação para continuar, a maioria desistia com menos de seis meses. É assustador.”
“Efeito Guga“
“Fico um pouco chateado em ver o desperdício da geração surgida em 1997, mas por outro lado é preciso ter cuidado ao falar sobre isso. Não acho que estamos tão mal assim. Nossas duplas são as melhores do mundo, o Thomaz Bellucci já teve fases boas. Não tem como comparar com Espanha e Estados Unidos. Dá tristeza por não ter outros Gugas, mas acho que não é o momento, não existe condição para isso. A tristeza é pelo desperdício e não pela falta de resultados. Mas não vejo uma crise no tênis nacional. Eu é que fui uma curva de inflação no tênis brasileiro. Não sou parâmetro.”
Rio-2016
“Estou otimista. Vejo muito investimento em esportes que antes eram deixados de lado. O desafio é saber se devemos brigar por medalhas agora ou pensar em medalhas para daqui a dezesseis anos. É uma decisão difícil. Mas, pelo que tenho acompanhado, o Brasil tem crescido em modalidades estratégicas, como canoagem, tiro com arco, pentatlo. Isso é fantástico. Vimos na Copa do Mundo que, apesar dos problemas, a forma com que o Brasil abraça esses eventos sempre foi sublime e acho que a Olimpíada tem tudo para ser inesquecível. Eu sempre sonhei com isso, desde que vi o Joaquim Cruz conquistando uma medalha nos Jogos.”
Sydney-2000
“Não foi uma frustração não ter ganhado medalha, pelo contrário. Jogar uma Olimpíada já foi uma satisfação. Claro, eu queria ganhar, era número 2 do mundo. Mas eu bati na trave, perdi nas quartas de final para o Kafelnikov e ele foi campeão. Na época em que eu jogava, a concorrência era maior, qualquer um podia ganhar de qualquer um. Mas eu realizei meu sonho olímpico, eu sempre quis participar.”
Copa Davis
“Eu acho que a gente corre por fora, mesmo eles estando desfalcados dos melhores. A Espanha é uma escola muito forte, sempre foi, eles sempre serão favoritos contra nós. Mas claro, existe uma janela aberta pela ausência do Rafael Nadal e do David Ferrer. Eu acho que o Bellucci tem condições de ganhar de qualquer um deles. Se fosse contra o Ferrer ou Nadal talvez não, mas se o Thomaz estiver em um dia bom e ganhar o primeiro jogo… E depois tem a dupla, que nos dá garantias. Mas acho que não podemos cobrar resultados desses caras. Se for olhar lá para trás, eles já deram muitos resultados ao país. Temos é que aplaudir e comemorar muito se houver uma surpresa.”