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O perigo de cabecear a bola no futebol

Estudo inédito mostra que as pancadas na cabeça podem deflagrar impactos no cérebro como os das modalidades esportivas mais violentas

Nos Estados Unidos, o futebol — o nosso futebol, o da bola redonda — é tido como uma modalidade esportiva menos agressiva e mais gentil do que outras mais populares pelas bandas de lá, como o futebol americano e o hóquei no gelo. Não por acaso, ao provocar menos contusões, sobretudo no crânio, ele foi maciçamente adotado nas escolas infantis — entre os homens, não colou tanto; entre as mulheres, virou sucesso. Não há dúvida: quando se compara uma partida de futebol americano com uma de soccer, do ponto de vista da saúde, o fosso é abissal — trata-se de um embate sanguinário contra outro, quase pueril. Convém, contudo, rever a inofensibilidade do esporte da criançada brasileira. Um estudo obtido por VEJA revela que as pancadas na cabeça em disputas no alto, comuns nos cruzamentos para a grande área, produzem sequelas, embora sutis. A mais grave delas é a encefalopatia traumática crônica (ETC), que altera a memória e a cognição, distúrbio neurológico derivado de pancadas sucessivas e repentinas, como as das partidas da NFL e do boxe.

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“Impõe-se um alerta”, diz Renato Anghinah, neurologista da Universidade de São Paulo, responsável pelo estudo. “Precisamos proteger os jogadores de futebol, da infância à idade adulta, para evitar as concussões cerebrais.” No levantamento, foram acompanhados 26 jogadores de futebol aposentados, com idade média de 60 anos. Eles realizaram uma bateria de exames: ressonância magnética e tomografia, para avaliar a imagem e a função do cérebro; eletroencefalograma, para mapear a atividade elétrica do órgão; e avaliação neuropsicológica, de modo a verificar o desempenho cognitivo, como a habilidade de planejar e executar ações. Os exames dos ex-atletas apresentaram pequenas alterações quando comparados aos de pessoas que nunca jogaram futebol (veja detalhes no quadro). “Houve alteração de conectividade em regiões comumente associadas a encefalopatia traumática crônica”, diz Claudia da Costa Leite, coordenadora do laboratório de investigação médica e ressonância magnética da USP, que participou do estudo.

Na encefalopatia traumática crônica — tema do filme Um Homem entre Gigantes, protagonizado por Will Smith —, as células neurais podem morrer ou sofrer rupturas que as impedem de funcionar adequadamente. Com o tempo, ocorre a liberação de uma proteína, a tau, encontrada no interior dos neurônios. Duas horas depois da pancada, ela é depositada no cérebro e lá permanece por cerca de três meses. Se as concussões são frequentes, o depósito de tau é sempre renovado. Os sintomas começam com uma diminuição discreta da memória e da atenção. Conforme avançam, a amnésia torna-se habitual, assim como a lentidão do pensamento e a dificuldade para planejar e realizar ações concretas. A ETC pode vir acompanhada também de agressividade e, em alguns casos, da doença de Parkinson. Não se deve, é evidente, relacionar automaticamente os golpes na cabeça a episódios de ETC — os baques podem acontecer e ficar só nisso, sem evolução. Mas estatísticas recentes mostram que 17% dos indivíduos que sofrem concussões podem desenvolver ETC no futuro.

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RAÇA – Bellini: tratado como portador de Alzheimer, ele tinha ETC ./Folhapress

Embora preocupante, o diagnóstico precoce e preciso dessa condição ainda não existe. Os exames disponíveis atualmente apresentam alguns indícios, mas o veredicto, por enquanto, só é dado depois da morte. Um exame no cérebro, chamado de análise anatomopatológica, consegue diferenciar o problema causado pelo esporte de uma doença comum, o Alzheimer. Foi essa a história do zagueiro Hideraldo Luís Bellini (1930-2014), o vascaíno conhecido pela raça dentro de campo, que nunca desistia, o primeiro brasileiro a erguer a Jules Rimet, em 1958. Durante dezesseis anos, até sua morte, ele foi tratado como se tivesse Alzheimer. Exames posteriores identificaram a ETC, fruto do choque com outras cabeças — houve quem desconfiasse do contato frequente com bolas mais duras, as do passado, feitas de couro e que se encharcavam em dias de chuva, possibilidade depois descartada. O ruim mesmo é bater osso com osso. Os Estados Unidos, permanentemente interessados no tema, em virtude da violência do futebol americano, preferiram a cautela, antes até de ter a certeza entregue por pesquisas como a apresentada agora pela USP: lá, as crianças com menos de 11 anos não podem dar cabeçadas na bola. A regra foi imposta em 2015 pela Youth Soccer, organização que supervisiona as ligas de futebol para crianças e adolescentes. Vem sendo respeitada — e não seria absurdo adotá-la também no Brasil.

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Publicado em VEJA de 25 de setembro de 2019, edição nº 2653

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