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Quatro gênios da bola numa mesa de bar

Em 1980, PLACAR reuniu Falcão, Reinaldo, Zico e Sócrates para uma conversa franca sobre as angústias e os anseios dos jogadores, dentro e fora de campo

No início de junho, o mundo do futebol viveu dias agitados. Assim que a CBF anunciou o Brasil como sede da Copa América, em substituição à Colômbia (que desistira em decorrência dos protestos contra o governo) e à Argentina (que jogou a toalha por causa do aumento de casos e de mortes provocadas pela pandemia de Covid-19), os jogadores da seleção brasileira ensaiaram não disputar o torneio, incomodados com a
decisão açodada. Concentrados em Porto Alegre para o jogo contra o Equador, pelas eliminatórias da Copa de 2022, eles evitaram aparecer para entrevistas. Muita gente se alvoroçou. De um lado, a turma que acha que futebol e política não se misturam. De outro, a óbvia constatação de que a atitude dos craques tinha, claramente, motivações políticas. Longas discussões se seguiram, tentando antecipar o conteúdo do surpreendente protesto.

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Como diz o ditado, a montanha pariu um rato. Na semana seguinte, depois de derrotar o Paraguai por 2 a 0 em Assunção, vários atletas publicaram, em suas redes sociais, um manifesto que, resumidamente, não explicava nada. A ameaça de não jogar não se concretizou — “Temos uma missão a cumprir com a histórica camisa verde e amarela pentacampeã do mundo”. E, sem citar uma única vez as palavras pandemia, vírus, Covid-19 e mortes, o texto se limitava a uma crítica sem consequência prática alguma: “Estamos insatisfeitos com a condução da Copa América pela Conmebol” e “Somos contra a organização da Copa América, mas nunca diremos não à seleção brasileira”. E ficou por isso mesmo. O que poderia culminar em postura histórica, na linha do que fazem os jogadores da NBA e Lewis Hamilton ao gritar contra o racismo, porque vidas negras importam, terminou como nota de pé de página. Ao fim da partida, o resultado: os atletas da canarinho preferiram entrar
em campo como se o Brasil andasse em plena normalidade.

Na capa e nas páginas de PLACAR em abril de 1980: o quarteto tratando seriamente do que acontecia nos gramados e nos bastidores
Na capa e nas páginas de PLACAR em abril de 1980: o quarteto tratando seriamente do que acontecia nos gramados e nos bastidores

Não se trata de exigir de profissionais da bola que subam em palanques — mas é inegável que o esporte e o cotidiano dão as mãos, e apartá-las nem sempre é bom. Nas páginas de PLACAR, a interseção entre futebol e política sempre esteve presente. Em 1970, ano de lançamento da revista, diversas reportagens foram publicadas sobre a interferência da ditadura militar na comissão técnica que se preparava para a Copa do Mundo do México. Mais tarde, houve grande apoio ao movimento Democracia Corinthiana, no início dos anos 1980. E inúmeros craques apareceram nas páginas falando sobre a importância de os atletas se unirem (em sindicatos, por exemplo) e também sobre as grandes questões sociais do país.

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Foi assim em abril de 1980, quando os quatro maiores jogadores em atividade nos gramados brasileiros apareceram abraçados na capa de PLACAR, vestidos com a camisa de seus clubes. Falcão, do Inter; Reinaldo, do Atlético-MG; Zico, do Flamengo; e Sócrates, do Corinthians; eram “4 gênios no jogo da verdade”. Nas páginas internas, fotografados numa mesa de bar, eles “discutem sua profissão, suas inquietações, seus grilos e suas necessidades”. Depois de reclamar da violência em campo, o quarteto começou o debate sobre as condições de trabalho dos atletas. “Nós, brasileiros, ainda precisamos aprender muita coisa em termos profissionais. O problema é a desunião dos jogadores”, disparou Sócrates. “Só somos alertados
pelos dirigentes para os deveres sem jamais falar em direitos. É um verdadeiro comando fascista, ou melhor, neofascista”, acrescentou
Reinaldo.

Segundo o atacante do Galo, era um absurdo, já naquela época, o Campeonato Brasileiro ser organizado sem a participação de nenhum boleiro. “Somos apenas notificados das frias decisões de gabinete.” Zico e Falcão seguiram na mesma linha. “Jogador é mercadoria ao bel-prazer do grupo dirigente”, afirmou o Galinho de Quintino. “E a rotina de jogos? Não há intervalo racional entre uma partida e outra. O Inter neste mês entra onze vezes em campo, fora o tempo de viagens”, completou o eterno camisa 5 colorado. “Servimos como descarga social e sofremos muito com isso. A massa já chega aos estádios com suas frustrações e, ao jogar mal um dia, somos vaiados e xingados. O povão nos vê como esperança de alegria e, se falhamos, isso soa como traição.”

Aspas ZicoNas palavras de Reinaldo, a melhor solução seria “construir um sindicato forte”. O craque atleticano reconhecia, porém, que faltava unidade ao grupo. Zico lembrou de simpósios que ele ajudou a organizar, no Rio e em Porto Alegre, “que tiveram comparecimento quase nulo”. Como destacou Falcão na conversa, diversos pedidos dos atletas já tinham sido levados ao governo federal, “mas na hora H o ministro (Murilo Macedo) pega o listão e só negocia cinco pontos”. Ao que Sócrates emendou: “Essa geração tem medo de participar, tem medo da barra dos últimos anos” (a ditadura só terminaria em 1985, com a eleição indireta de Tancredo Neves para a Presidência). A desorganização dos clubes e das federações também entrou na roda. “O futebol precisa se tornar mais sério, os dirigentes que cometem crimes precisam ser presos”, defendeu Zico. Por fim, todos se manifestaram sobre a necessidade de estudar mais, para ser um profissional (e um ser humano) melhor.

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“O jogador, para os dirigentes, nasceu para ser burro, receber ordens, ser manipulado. Sem estudo, como analisar os direitos?”, questionou o Galinho. “Nosso contrato garante o direito de estudar, ir às aulas, fazer provas — mesmo em dia de treino ou de jogo. Nós quatro fazemos isso e nada acontece. Mas o garoto que está começando não vai à escola por medo de perder a vaga, de ser mandado embora. A direção coage a meninada de todas as formas”, completou Reinaldo. Eles fazem falta. Dentro de campo, evidentemente, porque eram gênios — mas também fora dele, permanentemente atentos a suas dimensões populares. Entregavam pão e circo, quanto pão, quanto circo, mas sabiam onde estavam e o poder que tinham de iluminar temas cascudos. É sempre complicado enxergar o passado no condicional, mas parece haver uma certeza: a Copa América da pandemia Falcão, Reinaldo, Zico e Sócrates não disputariam.

Matéria publicada na seção ‘Prorrogação’ da edição impressa 1477 de PLACAR, de julho de 2021 

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