Mário Américo, o histórico massagista da seleção, na capa de PLACAR
"Tio Mário", como era conhecido por Pelé e outros craques, protagonizou cenas clássicas e conquistou três Copas; a PLACAR, seu neto exaltou seu legado
Pelé foi o único atleta a ganhar três Copas do Mundo. Em todas as conquistas, o Rei teve a seu lado um amigo e fiel escudeiro: Mário Américo (1912-1990), o histórico massagista da seleção brasileira, presente em nada menos que sete mundiais. As cenas de Mário correndo para atender Pelé, lesionado em 1962 e 1966, e para evitar um desmaio de Rivellino no tri em 1970, estão na história do futebol nacional. O mineiro de Monte Santo de Minas era uma figura tão querida e relevante no vestiário da equipe canarinho que chegou a estampar uma capa de PLACAR, em junho de 1972 (leia, na íntegra, abaixo).
Atualmente, ninguém cuida do legado do massagista com tanto esmero e orgulho quanto seu neto, Mário Américo Netto. Apesar de não guardar lembranças do convívio com o avô (tinha apenas três anos na época de seu falecimento), estudou a fundo sua trajetória e guarda na ponta da língua o relato de parentes e amigos do “Tio Mário”, como era chamado pelos atletas da seleção.
O neto, aliás, não herdou apenas o nome de Mário Américo. “Me tornei fisioterapeuta por causa dele e tive o privilégio de ganhar de presente a faculdade do Pelé, a quem sou muito grato”, conta Netto, que chegou a estagiar na Portuguesa de Desportos, clube no qual seu avô trabalhou por mais de 20 anos. Com entusiasmo, ele detalha a relação de Américo com o maior dos craques.
“Meu avô se dava bem com todos os jogadores, porém tinha um carinho especial pelo Pelé. Ele não era só massagista, era um pouco de pai, psicólogo e conselheiro”, conta, em relato que bate completamente com a reportagem de PLACAR, assinada por Fausto Neto, há mais de cinco décadas.
“Uma das melhores histórias com o Rei é que na Copa de 1958, o Pelé chegou machucado e por isso eles dormiam no mesmo quarto. Foi meu avô quem descobriu que o Pelé era sonâmbulo e tomou um grande susto”, diz. “Meu avô se orgulhava muito de ter incentivado Pelé a ir para a Copa do 1970. Ele não queria, pois não teve muita sorte com lesões em 1962 e 1966, mas meu avô insistiu e o Pelé acabou sendo genial no México.”
O blog #TBT PLACAR, que todas as quintas-feiras recupera algum tesouro de nossos arquivos, reproduz abaixo a reportagem de capa sobre Mário Américo, na íntegra:
O tio Mário
Há mais de 20 anos, ele massageia as pernas dos maiores craques do Brasil. E há mais de 20 anos é um amigo com quem todos podem contar. Um amigo mais velho, que impõe respeito, que representa uma parte palpável de uma coisa chamada espírito de Seleção, uma entidade invisível que fica acima dos homens e os une pelo ideal do futebol
Fausto Neto
As três últimas décadas transformaram em história muita gente famosa da Seleção Brasileira. Ademir ficou velho, Heleno morreu. Poucos recordam as lágrimas de Danilo na Copa de 50 ou mesmo à imponência de Belini erguendo a Taça Jules Rimet em 1958. A folha-seca de Didi já era, como já era o drible torto de Garrincha. Muitos técnicos subiram e caíram entre o reinado de Flávio Costa e o estado de graça de Zagalo. Sucederam-se médicos, cartolas, burocratas, auxiliares. Até o mito Pelé se aposentou. Ao tempo, à sede de mudança e às injunções políticas, só uma figura resistiu: Mário Américo.
Ele começou como auxiliar de Johnson e assim ficou até a Copa de 50, quando foi efetivado como massagista da Seleção. O correr dos anos deu uma nova dimensão à figura do velho negro das massagens. Sua presença no escrete, hoje e há já algum tempo, é muito mais importante do ponto de vista psicológico e humano do que em relação à musculatura dos jogadores — apesar da sapiência de suas mãos grossas e pesadas.
— Seleção sem o Tio seria o troço mais sem graça do mundo. (Carlos Alberto, o capitão)
Quem o vê sério e perfilado, com os músculos de ex-boxeador querendo saltar dos braços e do tórax, dificilmente acredita que o negrão de cabeça raspada a zero tem no peito um coração maior o que ele. Mas o primeiro sorriso revela uma pessoa dócil e amiga, que todos respeitam, admiram e
querem bem sem limites.
“Vem cá, meu filho, que o Tio tem umas coisas a te dizer”. É assim que Mário Américo faz com todos os jovens que chegam à Seleção. A mão sobre o ombro, o olhar firme, a palavra certa de quem sabe das coisas — esta é uma imagem que à elite do futebol brasileiro, em mais de duas décadas, já se acostumou a ver e ouvir.
— Cada palavra do Tio é uma lição. (Rodrigues Neto)
— O Tio até parece que adivinha as coisas. Se a gente demonstra inibição, ele aparece na hora e desfaz tudo. (Washington)
Mas a vida de Mário e suas histórias não são só de alegrias.
— O Tio também sofre, meu filho. Sofre muito e chora sozinho, para ninguém ver.
“Agora ele fala de cabeça baixa, a voz fraca, os olhos tristes. Vive o drama de velhos jogadores, que vez por outra encontra em má situação. Prefere omitir os nomes (“eu os ajudo no que posso e não quero que isso pareça demagogia).
Mário não faz anotações nem coleciona recortes ou fotos, mas garante que sua memória é boa e guarda nitidamente tudo o que de fez e viu na Seleção e no futebol brasileiro. Assim que a CBD o aposentar, vai escrever um livro ou, no mínimo, “preparar uns rascunhos e deixar o preto no
branco, contando as maravilhas e tristezas do futebol”.
Mário Américo é precursor de muita coisa no futebol brasileiro. A figura do pombo-correio é, sem dúvida, a mais importante façanha de sua vida de massagista.
“Eu resolvi usá-lo como emissário quando notei que, além de velocidade e poder de comunicação, ele tinha o respeito dos jogadores e até dos árbitros. (Flávio Costa.)
Em 1952, o folclórico Gentil Cardoso quase o transforma em 12º jogador. O Vasco jogava (com o Canto do Rio, em Niterói, e vencia apertado uma partida muito dura. Jairo, um crioulinho (da ponta esquerda, estava dando “um baile em Augusto e ameaçava empatar a qualquer momento. Gentil suava frio, esfregava às mãos. Até que encontrou a solução: “Vem cá Pombo. Corre lá e fica de cócoras na beirinha do campo, pro juiz não te ver. Se o Jairo passar de novo pelo Augusto, se agarra com ele”.
De boxeador (62 Iutas, 52 vitórias, “uns empates e umas derrotas que nem me lembro mais”) 14 massagista (tricampeão do mundo, além de muitos outros títulos de menor expressão), a vida de Mário Américo é de uma riqueza que contrasta com a humildade do velho proprietário de uma casa de massagens e sauna em Imirim, São Paulo, dono de seis imóveis, casado duas vezes e pai de três filhos. Este é o homem que conseguia dobrar o orgulho de Heleno ou acalmar a valentia de Almir.
“Um homem forte que só brigou no ringue ou em conflito (e, assim e cara, ele se lembra de um jogo contra o Peru, em Lima, em 1953) “Foi o maior conflito que já vi num campo de futebol; dei muito, mas apanhei também” —, e da célebre partida contra o Uruguai, em Santiago, em 1959 — “nessa eu só bati; cada tapão era um gringo no chão”).
Mas em seus 37 anos de futebol, Mário Américo nunca brigou com jogador, técnico ou dirigente. Onde há respeito não há briga.
— Cada vez que revejo o Mário, tenho a impressão de que ele está com dez anos menos. Sua presença na Seleção é muito importante para a comissão técnica e para os jogadores. (Cláudio Coutinho)
— Eu fico muito feliz quando eles me chamam de Tio e remoço à cada vez que me procuram para um conselho.