O primeiro de todos os gols do futebol
Comentarista vai a 1888 ver Kenny Davenport inaugurar a artilharia na 1ª edição da Liga Inglesa e tenta explicar o ainda desconhecido jogo aos brasileiros
“Ser ou não ser, eis a questão” … A frase célebre de William Shakespeare em ‘Hamlet’, peça escrita há 288 anos, ainda é atual neste Brasil cheio de transformações, queridos leitores e leitoras de 1888. Os escravos, como todos sabem, não o são mais, finalmente libertos pela pena da nossa Princesa Isabel, certo? Mais ou menos. Acreditem ou não, sou um Viajante do Tempo e, em 2022, de ‘quando’ venho, a população negra, trazida forçadamente da África, ainda sofrerá com as dificuldades impostas por sua condição social e, principalmente, pelo preconceito contra eles. Outra notícia que trago do futuro é que graças principalmente a eles, os negros, seremos, ainda nos meados deste século, alçados a melhores do mundo num esporte que ainda sequer chegou por essas terras, mas que em breve vai conquistar corações e paixões por todo o país: o futebol. Deixei 2022 para ver aquele que será considerado um marco, como ‘primeiro ‘goal’ da história’, ou seja, a primeira vez que alguém conseguiu fazer a bola ultrapassar uma linha na extremidade do campo, meta mor da peleja. Daí ter desembarcado em Pike’s Lane, estádio em Bolton, na Inglaterra, onde, num raríssimo sábado ensolarado, deu-se início, ontem, ao primeiro campeonato nacional de futebol. E onde o atacante Kenny Davenport, do Boston Wanderers, em confronto contra o Derby County, alcançou o feito logo aos dois minutos de jogo, exatamente às 15h47. Mas fato é que mesmo na Inglaterra já aconteceram outros ‘goals’ assinalados em torneios, um deles comprovadamente em 1871. “Ser ou não ser” o primeiro ‘goal’ da história do futebol, como se vê, será uma questão ‘shakesperiana’. Puro romantismo.
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Gosto de imaginar que um secular chinês, em trajes típicos, teria o mérito, pois a mais antiga referência a algo que se assemelha ao futebol remonta aos séculos III e II antes de Cristo, em manuais de exercícios de Dinastia Han que ensinavam um jogo chamado de ‘ts’uh Kúh’ (‘cuju’). Qualquer dia desses, quem sabe, tento viajar até lá… Jamais saberemos, esta é a verdade, quem teve um dia a honra de pela primeira vez fazer um ‘goal’. O de ontem, feito por Davenport, ganhará relevância por se tratar do primeiro a ser marcado no campeonato que, no próximo século, será o mais importante e badalado do planeta, reformatado e rebatizado (em 1992) como ‘Premier League’ e contando com muitos brasileiros atuando nas equipes inglesas. No Brasil, creiam-me, o futebol terá participação gigantesca em nossa história e no dia-a-dia de todos, tornando-se marca de nossa identidade cultural. Alguns de vocês talvez já o conheçam, pois a disputa entre duas equipes tentando levar uma bola a cruzar a tal linha marcada nas extremidades do campo já foi vista nas praias cariocas, com marujos estrangeiros, que há uma década, saibam, fizeram uma exibição para nossa monarca abolicionista. Há dois anos, em Friburgo (RJ), o Colégio Anchieta também foi pioneiro ao introduzir a pratica do esporte entre seus alunos, para citar apenas três das versões que teremos sobre a chegada do jogo por aqui. Mas, oficialmente, será uma partida na Várzea do Carmo (SP), daqui a sete anos, que se consagrará como o pontapé inicial do esporte entre nós. Mais uma vez, “Ser ou não ser …”
O próprio Davenport vai cortar um dobrado para ter seu ‘feito’ reconhecido, sendo necessários 125 anos para isso. Somente em 2013 pesquisadores vão descobrir que, por uma questão de atraso no início de outra partida, necessário para que os curiosos (público) se acomodassem no estádio, o seu ‘goal’ foi o inaugural da liga inglesa. Até lá prevalecerá a ideia de que foi Gershom Cox a marcar o primeiro tento, infelizmente ‘goal contra’, isto é, acidentalmente, a favor do adversário, em jogo também realizado ontem (Aston Villa 1 x 1 Wolverhampton, único empate da rodada, isto é, do dia). Melhor assim. Ou ‘goal contra’ é um acontecimento com o mesmo valor de ‘goal’ comum? É ou não é? Shakespeare, mais uma vez.
Aproveito para adiantar a todos que no Brasil adaptaremos a palavra ‘goal’ (‘objetivo’, em inglês) para ‘gol’. Daqui a seis anos, na revista “O Malho”, ela aparecerá pela primeira vez impressa, podem observar. E será esta a única palavra no vernáculo nacional que terá plural com um ‘s’ após um ‘l’: ‘gols’. É melhor já irem se acostumando. No futuro, gritaremos muito esta expressão, eufóricos, sempre a comemorar quando um time pelo qual teremos maior simpatia alcance sucesso em seu objetivo. Esta efusiva forma de se festejar, no entanto, ainda demora um pouco a aparecer nos campos do esporte. De início, vocês testemunharão, a audiência será mais contida. Mas também teremos nossas ligas, nacionais e estaduais, e numa delas, a do Rio de Janeiro, senhoras e senhoritas presentes na plateia terão o hábito de acompanhar os jogos torcendo seus lenços entre as mãos, e assim nascerá outra nova palavra para nosso idioma: ‘torcer’ por este ou aquele time, por esta ou aquela agremiação futebolística. Aguardem…
Foram dois os ‘goals’ de Davenport ontem, que não impediram a derrota do Wanderers: 6 x 3. Aos 26 anos, James Kenyon Davenport é um atleta que atua no ataque pelo lado direito do campo – chamaremos de ‘ponta-direita’ –, embora seja canhoto. Além de jogar no Bolton e na Seleção Inglesa – pela qual ainda marcará dois ‘goals’ (em 1890 e 1895) –, ‘Kenny’, como é mais conhecido, trabalha numa cervejaria da cidade. O outro suposto artilheiro nº 1, menos badalado e reconhecido, é Jarvis Kenrick, que, por outro torneio, a Copa da Inglaterra, teria marcado o ‘primeiro gol’, pelo Clapham Rovers contra o Upton Park, isso em 11 de novembro de 1871 (3 x 0, com mais um dele). É ou não é?
A Liga Inglesa nasceu este ano graças a William McGregor, dirigente do Aston Villa, que em março último escreveu a outros clubes uma carta sugerindo a novidade. Foram 12 as associações a aceitarem o desafio: além do próprio Aston Villa, Accrington, Blackburn, Bolton, Burnley, Derby County, Everton, Notts County, Preston North End, Stoke, West Bromwich e Wolverhampton. Mas apenas 10 delas entraram ontem em campo. Pelo regulamento atual, o campeão será o time que vencer mais partidas, após todos jogarem contra todos. Mas – alerta de spoiler! – revelo aqui que ainda este ano os ingleses vão concluir ser melhor e adotar um sistema de pontuação, com vitórias valendo dois pontos e empates, apenas um. Daqui a seis anos inventarão também outro critério de desempate, o “goal average”, ou seja, número de ‘goals’ marcados e sofridos. Mas o que vai construir a fama e o sucesso do futebol, tornando-o o esporte mais popular do mundo, será a emoção e a imprevisibilidade das disputas. Um jogo em que somos e seremos surpreendidos a todo instante, como ontem, quando o time de Bolton fez 3 x 0 em 9 minutos e depois assistiu à reviravolta no placar, para 6 x 3. O melhor dos esportes, vai ser ou não vai ser?
PRA VER OS UNIFORMES DOS TIMES QUE DISPUTARAM O PRIMEIRO CAMPEONATO INGLÊS
http://www.historicalkits.co.uk/English_Football_League/season/1888-89.htm
FICHA TÉCNICA
BOLTON WANDERERS 3 x 6 DERBY COUNTY
Competição: Liga de Futebol Inglesa (primeiro ano de disputa)
Data: 8 de setembro de 1888
Local: Estádio Pike’s Lane
Público: 3.000 pagantes
BOLTON WANDERERS: Charlie Harrison; Bethel Robinson, John Mitchell; Bob Roberts, Davie Weir, Peter Bullough; Kenny Davenport, John Milne, Thomas Coupar, Alec Barbour e James Brogan.
DERBY COUNTY: Joe Marshall; Arthur Latham, Archie Ferguson; Albert Williamson, Isaac Monks, Walter Roulstone; George Bakewell, Lewis Cooper, Sandy Higgins, Harry Plackett e Lol Plackett.
Gols: Davenport, aos 2’ e aos 4’; Brogan, aos 9’; depois L. Plackett, L. Plackett, aos 20’; depois Bakewell, Cooper, Gol Contra de Harrison e Bakewell.
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