O artilheiro ‘número 1’ das Copas
Comentarista do Futuro vai até 1930 ver o francês Lucien Laurent marcar o primeiro gol da história dos Mundiais, feito que só será reconhecido após 40 anos
‘Jogos Mundiais’ será um megaevento do próximo século que reunirá esportes ainda pouco conhecidos e pré-candidatos aos Jogos Olímpicos, como o basquete sem tabela junto à cesta, o ‘Punhobol’ e outras modalidades em ascensão no gosto popular – mais ou menos como é hoje para vocês, queridos leitores e leitoras de 1930, o futebol. Não tive dúvidas em deixar 2022 durante os tais ‘Jogos’, em Birmingham (EUA), e optar pelo privilégio de assistir à partida inaugural da primeira Copa do Mundo, que, poucos devem saber, acontece neste momento no Uruguai. E o fiz na véspera de um 13 de julho, só que daqui a 92 anos. Revelo a todos que até lá esta disputa entre seleções de futebol terá se tornado o mais badalado encontro esportivo do mundo, rivalizando com as Olimpíadas ao atrair a atenção de bilhões de pessoas em todo o planeta – que acompanharão tudo por uma caixinha mágica, batizada como ‘TV’, e depois por um pequeno objeto retangular que teremos sempre à mão e sem o qual não conseguiremos respirar. Já teremos visto 21 Mundiais, 900 partidas e 2.548 gols. O primeiro deles, saibam, ontem, quando o atacante Lucien Laurent, aos 19’ da primeira etapa, abriu o placar no que foi França 4 x 1 México, disputado em Montevidéu. E ninguém, nem o próprio artilheiro ou qualquer uma das 4.444 pessoas presentes ao estádio, se deu conta do feito. Só eu, que fui visto como maluco ao começar a pular nas arquibancadas, mas tenho orgulho disso. Se Laurent foi o primeiro a marcar, eu fui o primeiro, e único, a comemorar um gol em Copas do Mundo. Registre-se.
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Desde já reivindico outra correção nos dados históricos: o tento inaugural dos Mundiais foi visto por 4 mil, quatrocentos e quarenta e cinco pessoas – somada a minha presença, claro. Compreendo que a organização desta Copa no Uruguai não esteja causando grande ‘frisson’ entre vocês, brasileiros e brasileiras de 1930, principalmente pelo ‘racha’ entre Rio e São Paulo, que nos fez chegar à disputa – com exceção do santista Araken Patusca – apenas com atletas dos principais clubes cariocas (Fluminense, Botafogo, América, Vasco, Flamengo e São Cristóvão) e reforços do Estado (Americano, de Campos, e Ypiranga, de Niterói). Sinto informar que não iremos muito longe na competição, apesar dos 5 gols que marcaremos nos dois jogos da Primeira Fase, o primeiro deles do centroavante Preguinho, do Fluminense. E pouco importa também que apenas 13 equipes – 7 da América Latina, 4 da Europa e 2 da América do Norte – tenham acreditado e apoiado o sonho do presidente da Fifa (entidade maior do Esporte), Jules Rimet. A primazia de estufar as redes é do Lucien Laurent e ninguém tasca! Quer dizer, ao menos assim será reconhecido o gol daqui a 40 anos… Outro registro histórico que precisará ser revisto. Coisas do futebol. Vocês ainda hão de amar muito! Sim, posso garantir, bem mais que o remo.
Pelas próximas quatro décadas, mesmo sem grandes loas por isso, o marco do primeiro gol em Copas será creditado ao americano Bert McGhee, que abriu o placar no outro jogo realizado no mesmo horário, Estados Unidos 3 x 0 Bélgica. Talvez venha a colaborar para o equívoco o fato de serem quase 19 mil pessoas no Estádio Gran Parque Central, muito mais gente para ‘tirar onda’ nas ruas de que ‘estava lá’, que viu o ‘primeirão’. Mas em 1970, podem anotar, a Fifa vai reconhecer oficialmente que o americano só marcou seu tento aos 23 minutos, quatro a mais, portanto, do que o assinalado por Laurent. Vou contar os detalhes…
Estádio Pocitos, no bairro de mesmo nome. Suaves flocos de neve caem sobre o gramado. A jogada que se inicia com retomada da bola e boa troca de passes no meio-campo francês. A pelota, encharcada e pesada, chega ao ponta Liberati (ou terá sido Langiller? Fiquei na dúvida), que cruza para Laurent, a 16 metros da baliza adversária, arrematar. E a ‘redonda’ – de couro marrom, fácil de ver na neve – foi parar no fundo das redes. Mas justiça seja feita: o lance só foi possível graças ao mexicano Manuel Rosas, que tornou-se o primeiro zagueiro a dar uma ‘furada’ na área que resultou em gol. Mas dele ninguém vai lembrar.
Como sou sempre pelos ‘mais vulneráveis e desprotegidos’, ressalto também o protagonismo de outro jogador do México, Oscar Bonfiglio, primeiro goleiro a levar um gol em Mundiais. Apesar da desvantagem mexicana, ambos os times se comportaram de forma comedida após o tento. Nada de correria, saltos com soco no ar, gestos de disparo em ‘baionetas’ ou outros maneirismo que serão corriqueiros no futuro após os ‘goals’. Foram apenas alguns protocolares apertos de mão e um ou outro tapinha nas costas do jovem Laurent (23 anos). E a plateia tímida, quase calada, a maioria olhando praquele doidão que se acabava em gritos, erguia os braços freneticamente e até tirou a camisa para ficar girando ela sobre a cabeça… “Sai do chão! Sai do chão”, arrisquei. Fazer o quê? Era o primeiro gol de Copas, caramba!
Fico imaginando se já existisse a gigantesca marca brasileira de cerveja que no futuro vai pagar caro para um dos nossos maiores artilheiros comemorar seus gols pela seleção fazendo ‘número 1’ com o dedo indicador. De origem proletária, nascido em Sant-Maur-Des-Fossés, periferia de Paris, Lucien Laurent ganhará muito pouco ou nada pelo feito histórico. Seguirá a pacata vida de futebolista amador, dividindo seu tempo entre os gramados e o trampo na fábrica de carros da francesa Peugeot. Pela seleção da França – outra que não vai muito adiante no Uruguai – fará apenas um segundo gol, mas em outro marco, a futura primeira vitória dos ‘Bleus’ sobre a Inglaterra. Pelos franceses, ganhará o apelido de ‘Le 1er’ e certo reconhecimento, principalmente após uma homenagem que receberá do Comitê de Organização da Copa da Itália, em 1990. Vai viver muito, o sortudo, e sem jamais se afastar do futebol, seja comentando com os amigos num bar que vai abrir ou dando aulas de bola para a garotada. A propósito, dos 11 gauleses ontem em campo, será o único a viver o suficiente para testemunhar o primeiro título mundial da França, o que acontecerá somente daqui a 68 anos, em 1998. E desta vez ele vai comemorar e muito. Ao contrário de nós, brasileiros – mas essa é outra história.
Detalhes curiosos que observei ontem no gramado:
- Ainda não estão grafadas a marca da cobrança do ‘pênalty’ e uma meia-lua que resolverão desenhar à frente de cada ‘grande área’. Duas novidades que, alerta de ‘spoiler’, serão introduzidas no esporte daqui a 7 anos;
- O uniforme de Laurent, com numeração nas costas que no futuro será sinônimo de excelência no futebol: camisa 10.
Mas este atacante baixinho (1,62m) que joga pelo Sochaux (clube de operários da Peugeot) nunca vai ser um artilheiro contumaz em nenhum dos clubes em que atuará, como o CA Paris, o Club Français, Stade Rennais, Estrasburgo e o Besançon. Levado aos gramados pelo irmão mais velho, Jean (que também estava em campo ontem, como defensor), Lucien Laurent fez ontem sua segunda partida pelo selecionado francês, e também última (inteira) nesta Copa. Já que ele não vai ler esta resenha, posso revelar que uma lesão no próximo confronto vai tirá-lo da competição e outra, mais grave, o impedirá de vestir a camisa de seu país no Mundial de 1938. Não dá pra ter sorte em tudo na vida.
Mas defenderá, sim, a França numa Guerra que, sinto informar, vai paralisar até o futebol na próxima década. E dela saíra ileso, ou quase, pois vai passar um tempo preso nas mãos das tropas inimigas. Martírio bem menor, claro, foi a viagem de 15 dias pelo Oceano Atlântico que o jogador e toda a delegação da França fizeram de navio para chegar ao Uruguai. O rapazola gosta mesmo de um sofrimento. Ao voltar ao seu país – essa informação eu li antes de deixar o futuro – passará um tempo como andarilho, peregrinando pelas estradas e cidadelas de seu país. Também vão doer os confrontos que terá no Brasil, em excursão que a França fará logo após a eliminação na Copa. Péssima ideia: surra (6 x 2) para o Santos e derrota (3 x 2) para a nossa seleção. Será por isso que ele vai resolver dar uma andada e esfriar a cabeça?
Modesto, do tipo ‘gente boa’ mesmo, Laurent nunca vai se vangloriar do gol histórico. Não ganhará estátua, até porque o estádio de Pocitos, aviso, não dura mais 10 anos, quando será demolido e lembrado apenas com um discreto monumento a esse 13 de julho de 1930, data do primeiro tento marcado em Mundiais. Sim, o atacante precisará esperar 40 anos pra ser reconhecido como ‘artilheiro número 1’ das Copas do Mundo. Mas quem espera sempre alcança, certo? Assim, se até o ‘Cabo-de-Guerra’, o ‘Tiro-ao-Pombo’ e a ‘Natação com Obstáculos’ já foram esportes olímpicos, por que não acreditar que um dia também chegue lá o ‘Punhobol’?
PARA VER DO JOGO E REPRODUÇÃO DO GOL
https://www.youtube.com/watch?v=W3T680jTYQ8&t=5s&ab_channel=Joefa%27sWorldCupHistory
e
https://www.youtube.com/watch?v=cwyTJUFZraI&ab_channel=teleSURtv
PARA VER IMAGENS E ENTREVISTA DO JOGADOR
https://www.youtube.com/watch?v=xquRsUWasaE&t=15s&ab_channel=dudd1982
https://globoplay.globo.com/v/814688/
FICHA TÉCNICA
FRANÇA 4 x 1 MÉXICO
Competição: Jogo inaugural da primeira Copa do Mundo – 1930
Data: 13 de julho de 1930 (domingo)
Horário: 15h
Local: Estádio Pocitos, Montevidéu, Uruguai
Público: 4.444 pagantes
Juiz: Domingo Lombardi (URU)
Assistentes: Henry Christophe (Bélgica) e Gilberto de Almeida Rêgo (Brasil)
FRANÇA: Thépot; Mattler e Capelle; Villaplane, Pinel e Chantrel; Liberati e Delfour; Maschinot, Laurent e Langiller
Técnico: Raoul Caudron
MÉXICO: Bonfiglio; Gutiérrez e Manuel Rosas; Felipe Rosas; Sánchez e Amézcua; Pérez, José Ruíz, Carreño, Mejía e Hilario López
Técnico: Juan Luque de Serralonga
Gols: Primeiro Tempo: Laurent, aos 19’; Langiller, aos 40’; e Maschinot, aos 43’; Segundo Tempo: Carreño, pro México, aos 25’; e Maschinot, aos 42’.
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