Brasil 4 x 1 Escócia: vitória sobre os ‘padrastos’ do nosso futebol
Na missão de salvar o ‘Futebol Arte’, cronista vai ao segundo jogo e consegue papear com Sócrates, enviando novos sinais cifrados da Tragédia de Sarriá
A partir da estreia contra a União Soviética, e sempre no dia exato dos jogos do Brasil na Copa de 1982, até a derrota para a Itália, em 5 de julho, o Comentarista do Futuro voltará ao início da década de 80 em seu túnel do tempo particular. Ele embarcou com a missão de alertar os jogadores sobre Paulo Rossi e a Tragédia de Sarriá. Será que consegue?
Sociólogos, teóricos e catedráticos da bola nunca vão cansar de empilhar parágrafos dissertando sobre a mágica miscigenação entre a malemolência dos negros africanos e outros estereótipos, dos índios e dos ingleses, para explicar o talento – dito atávico – do brasileiro no futebol. Bobinhos… Ignoram que o Brasil não seria tricampeão mundial e a terra de Pelé, Zico e Cia. Ltda. sem os escoceses, esses mesmos que goleamos ontem (4 x 1), na segunda apresentação do Escrete Canarinho na Copa da Espanha. Como sou um Viajante do Tempo, vindo de 2022, creiam-me, posso dizer a vocês, queridos leitores e leitoras de 1982, que no próximo século documentários e livros vão defender que o ‘jeitinho brazuca’ de jogar bola, o Futebol Arte, espalhou-se por nossas terras com a ajuda de um desconhecido escocês, Archie McLean, que desembarcou em São Paulo em 1912 e convenceu a rapaziada que, em vez de dar chutões pra frente, os ‘lançamentos’, bem melhor era fazer ‘tabelinhas’ – a troca de passes curtos que é marca dos nossos melhores times em Mundiais, como prova a atuação e a goleada de ontem. E, como dizem, “Pai é quem cria!” Ao me ouvir divagando sobre isso, incrédulo, espantado, meu novo amigo Natan, o ‘Pacheco’ da Gillette, que – os que leram minha resenha sobre a estreia contra a Rússia sabem – recrutei para ajudar na missão de alertar nosso time sobre o porvir, arrancou o cabeção de sua fantasia e me jogou contra a parede, fuzilando:
– Mas, afinal de contas, pelo amor de Deus, que tragédia é esta que se abaterá sobre nós, brasileiros?
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Novamente expliquei que regras explícitas me impedem de revelar claramente certos fatos do futuro, sob pena de perder minha Máquina do Tempo. Mas que tinha muita fé em impedir o que está para acontecer mandando sinais cifrados ao time, e que facilitaria muito se tivesse contato com os jogadores, ali ó, ‘téti-a-téti’, numa resenha a dois. ‘Pachecão’ deu aquela respirada profunda, como um destemido soldado que aceita nova e decisiva missão. Tramamos que a tal história da paternidade escocesa de nosso futebol seria bom argumento para atrair para um papo jogadores do tipo ‘cabeça’, interessados em cultura esportiva e brasilidade, como Sócrates, por exemplo. E lá foi ele, retornando pouco depois com uma frase que deixo aqui como humilde sugestão para futuros sucessos do cinema nacional: “Missão dada é missão cumprida!” E aceito royalties pela ideia, claro…
O ‘Magrão’ foi mesmo o primeiro a sentar comigo, curioso e demonstrando a mesma ânsia com que devorava cigarros e copos de cerveja. O papo começou, digamos, ‘Malboro Light’, nós dois proseando sobre a partida. Mesmo os adversários sendo partícipes em nossa formação futebolística, vale a máxima: “Vencer a Escócia é obrigação”. Até 2022, revelo a vocês, serão 10 confrontos, com 8 vitórias brasileiras – três em Copas: ontem; e, no futuro, em 1990 e 1998 – e dois empates, um no Mundial de 1974, lembram? Foi este da Copa da Alemanha seguramente o maior confronto entre as duas Seleções, em partida surpreendentemente equilibrada, com chances para ambos os lados. E com o Brasil de Luís Pereira, Marinho Chagas, Rivellino, Jairzinho e Paulo César Caju não conseguindo abrir o placar, o que deixou a classificação dependendo do placar do terceiro jogo, contra o Zaire – um sufoco, mas que acabou 3 x 0 pra nós, gol de Valdomiro, como esquecer? Derrota para os escoceses no futebol, adianto, só viveremos em 2019, mas num futuro e consolidado Futebol Feminino.
Se não é grande a tradição masculina no esporte, deve-se à Escócia o primeiro amistoso entre Seleções da história, que deu-se num campinho perto da capital Glasgow, contra a Inglaterra (0 x 0), em 30 de novembro de 1872 (um dia ainda vou lá!). De 1954, a primeira, até 2022, de ‘quando’ vim, serão 8 presenças em Copas do Mundo, nunca conseguindo passar da fase de grupos – mesmo em 1974, quando tornou-se a primeira equipe a ser desclassificada estando invicta. Sobre o futuro, a boa nova é que o ótimo comportamento nas arquibancadas que pudemos observar ontem do ‘Exército Tartan’, a famosa torcida escocesa, vai daqui pra melhor. As punições aplicadas nos últimos cinco anos, após as cenas violentas de ‘hooliganismo’, farão os adeptos do tecido de lã xadrez (‘tartan’), marca das vestimentas ‘kilts’, chegarem ao próximo século colecionando prêmios por trabalhos de caridade e atitude amigável, inclusive na futura Copa de 1998, a última da qual conseguirão participar. Vez ou outra, ainda vão zombar do ‘God Save The Queen’, mas sem bater em ninguém.
Voltando à prosa com Sócrates, dei a largada como quem puxa papo com taxista falando do calor na cidade, protocolarmente, dizendo que, de novo, como na estreia, o Brasil tinha começado atrás no placar, com o gol de Narey, aos 18’ do primeiro tempo. Mas que Waldir Perez, ao contrário do tento russo na estreia, não teve como fazer nada, concordamos, pois foi um balaço à queima-roupa, indefensável. Por sorte e vontade dos Deuses do Futebol, argumentei com o ‘Doutor’, temos Zico, e veio o empate num de seus lances mais característicos e especiais: cobrança de falta perfeita, na gaveta do arco escocês – os torcedores dos rivais cariocas conhecem muito bem a cena, parece ‘replay’.
– Serginho continua perdendo gol… – provoquei.
O diagnóstico veio frio, com ‘doctor’ Sócrates sendo incisivo apenas na tragada, não na resposta.
“Zagueiros também são bons de cabeça”, assinalei, pois com Oscar, num escanteio cobrado por Júnior, conseguimos a virada: 2 x 1. Foi de ‘Chulapa’, ressalve-se, o passe para Éder fazer o mais belo gol da noite, trocando o costumeiro petardo por toque sutil de canhota, encobrindo o arqueiro Rough. Num belo arremate de Falcão, completamos o placar: 4 x 1, destaquei, já quase em monólogo.
– Mas fala aí sobre a influência da Escócia no Futebol Brasileiro… Fiquei intrigado com isso – interrompeu o craque corintiano.
Contei então sobre o desconhecido Archie McLean, que, após breve carreira amadora em pequenas equipes escocesas, veio para o Brasil acompanhando o pai, transferido de empresa têxtil de Paisley para São Paulo. A aventura na América do Sul duraria apenas três meses, mas o jovem Archie acabou ficando quase 40 anos, atuando em vários clubes, inclusive ao lado do mito Arthur Friedenreich. A velocidade em campo valeu-lhe um apelido: ‘Veadinho’, isso bem antes da expressão ganhar outra conotação na linguagem popular. Segui resenhando sobre o “O Pai Esquecido do Futebol Brasileiro” (nome do documentário que será feito sobre Archie no Século 21) e aguardando qualquer deixa para mandar um alerta cifrado sobre o destino que, só eu sei, vem por aí. Mas Sócrates, que, vocês sabem, manja tudo de bola e de muito mais, destilava, sem nenhuma soberba, sua cultura universitária, histórica e social sobre o País:
– Charles Muller, que introduziu o Futebol no Brasil, era filho de um escocês – lembrou. E tem mais. O Xote, ritmo popular no Nordeste e no Sul, ganhou este nome a partir da expressão ‘schottische’, que era como os alemães chamavam a polca escocesa.
Engoli em seco e emendei:
– Veja só… E o povo acha que só temos influência de Portugal e da Itália. Os italianos são muito perigosos, sabia?
Sócrates tragou. Insisti:
– São muitas as ‘maldições’ no Futebol da Itália, ‘Doutor’. Veja este estádio de Sarriá, por exemplo, um dos palcos da Copa. Ele é marcado por vários episódios trágicos e negativos. Quando foi construído, em 1923, a construtora decretou falência antes de terminar a obra. O lugar foi palco do primeiro gol na primeira liga de times da Espanha, mas, ao final do torneio, o Espanyol, time local, teve que engolir o rival Barcelona como campeão.
Nova enigmática tragada do Camisa 8 brasileiro, seguida de farta golada na cerveja. Continuei:
– Sarriá é tipo um cemitério do Futebol Arte. O craque argentino Alfredo Di Stefano, por exemplo, jogou lá sua última partida oficial…
Longos segundos de silêncio. Novo gole na ‘gelada’ …
– Mas o que isso tem a ver com os escoceses? Não entendi…
Acuado pelo craque, apelei:
– A ‘Valsa da Despedida’, sabe? Você gosta de música e deve conhecer… “Adeus, amor, eu vou partir” – cantarolei – Nasceu a partir de uma tradicional canção escocesa…
Foi minha a deixa, e não dele. Sócrates levantou-se e, em silêncio, foi juntar-se à turma da sinuca, próximo à roda que batucava entoando ‘Voa Canarinho, voa!’, o samba-sucesso do Leovegildo ‘Júnior’. Senti a brecha e me aproximei. Ao primeiro breque de descanso da turma, me arvorei puxando a próxima:
– Que tal essa? ‘O que será, Sarriá…!”
Não me perguntem de onde tirei essa, foi o que na hora me veio à cabeça. Após a péssima e incompreensível adaptação da canção de Chico Buarque, os olhares que recebi posso traduzir assim: “O que será, que será este bobão aí?” E logo os jogadores já emendavam outros sucessos deste ano, como o ‘Bumbum Praticumbum Prugurundum’ da campeã Império.
Fracassei, assim, em mais uma tentativa de alertar o time sobre nosso destino na Copa da Espanha. Tormento maior é pensar como conseguir evitar que o Brasil deixe escapar seu quarto título Mundial. O próximo jogo da Seleção é contra a Nova Zelândia e, com as novas ideias que tive, minha missão desta vez, assim como a do Brasil, será mais fácil. Sentei então com o parceiro na empreitada, Pacheco, para planejar nova investida – entre goles de um bom uísque escocês, claro! Nisso, eles são imbatíveis.
PARA VER OS LANCES E GOLS DO JOGO
https://www.youtube.com/watch?v=I2I0lZI-2DI
https://www.youtube.com/watch?v=snxmDl_LwNk
BRASIL 4 x 1 ESCÓCIA
Competição: Copa do Mundo 1982
Local: Estádio Benito Villamarin, em Sevilha (Espanha)
Data: 18 de junho de 1982
Horário: 21hs
Público: 47.397 pagantes
Árbitro: Jesus Luís Paulino Siles Calderón (Costa Rica)
Assistentes: Thomson Chan Tam-Sun (Hong-Kong), Adolf Prokop (Alemanha Oriental)
BRASIL: Waldir Peres, Leandro, Oscar, Luizinho e Júnior; Toninho Cerezo, Falcão e Zico; Serginho (Paulo Isidoro, aos 70’), Sócrates e Éder
Técnico: Telê Santana
ESCÓCIA: Rough, Narey, Hansen, Gray e Miller; Hartford (McLeish, aos 63’), Wark e Souness; Archibald, Strachan (Dalglish, aos 68’) e Robertson
Técnico: Jock Stein
Gols: 1º Tempo: Narey, aos 18’; Zico, aos 33’; 2º Tempo: Oscar aos 3’; Éder, aos 18’; e Falcão, aos 43’