60 anos do primeiro título brasileiro na Libertadores
Comentarista parte em sua Máquina do Tempo até 1962, no terceiro e decisivo confronto entre Santos e Peñarol, disputado em campo neutro, na Argentina
‘Efeméride’ é uma palavra com raízes gregas e que, na Astronomia, batiza uma tábua (ou tabela) em que se registra a posição relativa de um astro. Não confundir com ‘efemérida’, que, na Biologia, e também por conta da origem semântica – ‘ephemeros’ (vida curta) –, refere-se aos ‘efemerópteros’, insetos primitivos da Europa bastante apreciados por peixes de água doce. No dia-a-dia da gente, simples mortais, ‘efeméride’ é um recurso que temos para fingir o quão vasto é o nosso vocabulário nos referindo a datas em que se comemora o aniversário (de preferência ‘redondo’, em data ‘cheia’) de algum fato importante. Por exemplo: voltarei ao futuro, mais precisamente 2022, no dia em que se completarão exatos 60 anos desta conquista do Santos, que ontem bateu o Peñarol (3 x 0) no Monumental de Nuñez, na Argentina, arrebatando o primeiro título de um clube brasileiro na Copa dos Campeões da América – torneio que, daqui a quatro anos, será rebatizado como Taça Libertadores da América. Revelo a vocês, queridos leitores e leitoras de 1962, que no próximo século recorro muitas vezes a efemérides para decidir o destino de minhas viagens ao passado. E o faço para manter viva a memória sobre vitórias fascinantes como esta do alvinegro praiano, o time do ‘Rei Pelé’. Não devemos jamais deixar que certos jogos de futebol sejam esquecidos. Triunfos assim não são ‘efêmeros’. São eternos.
Assine #PLACAR por apenas R$ 9,90/mês. Não perca!
E antes que vocês, leitores e leitoras de 1962, comecem a me chamar de exagerado, ou me taxar de cronista que abusa das hipérboles – outra boa expressão praquele truque de se passar por inteligente –, vou logo avisando que esta competição entre clubes da América Latina, ainda apenas em sua terceira edição, vai crescer exponencialmente em relevância, expressão internacional e, mais do que tudo, como objeto de desejo dos times brasileiros. Ao voltar ao meu tempo, inclusive, desembarcarei em plena semana de jogos decisivos, as semifinais, da Libertadores de 2022. E com três das quatro vagas de semifinalistas preenchidas por equipes brasileiras: Palmeiras, Flamengo e Athlético Paranaense – sim, este mesmo que há 3 anos surgiu na Taça Brasil e ainda vai crescer muito no cenário nacional. Até lá, porém, será um clube argentino, o Independiente, a ter o maior número de conquistas, sete (7). E seguido por outro argentino, o Boca Juniors (6), o mesmo Penãrol (5) e mais dois do nosso futuro maior rival, River Plate e Estudiantes, ambos com quatro títulos. Talvez por virem a demorar a entender a importância do torneio, os clubes brasileiros em 2022 estarão empacados num máximo de 3 triunfos no continente, alcançados por 4 times: São Paulo, Grêmio, Palmeiras e o próprio Santos, que, sim, podem festejar, voltará a ser campeão das Américas duas vezes. A primeira já ano que vem, mas depois tendo que esperar 49 anos para repetir o feito: em 2011, em vitória que se dará, curiosamente, sobre o mesmo Peñarol, adversário de ontem. Coincidências da vida. Sempre efêmera…
Daqui a 60 anos, posso garantir, ainda causará espanto o que se deu na segunda partida desta decisão continental, na Vila Belmiro. Como detenho uma boa ‘memória do futuro’, arrisco dizer que situação como essa não mais se repetirá no Futebol. Relembremos os fatos, pois estes, embora mais tristes, também não devem ser esquecidos. Após vencer (2 x 1) o primeiro jogo, em Montevidéu, o Santos precisava de um simples empate em casa. E estava tudo caminhando bem, com a vitória de 2 x 1 na etapa inicial. Aí veio o segundo tempo e eram decorridos apenas 3 minutos quando o juiz confirmou o gol de empate, de Spencer, ignorando as reclamações de que o meia uruguaio Sasía jogara terra nos olhos do arqueiro santista Gilmar. O juiz (talvez com sujeira nas pupilas também) não viu nada e deu-se a confusão, com garrafas e objetos de todo tipo sendo arremessados ao gramado. E com uma garrafa atingindo ele em cheio, no pescoço.
Veio então a primeira paralisação, de mais de uma hora, a partida recomeçando em 2 x 2. Aos seis minutos, Sasía marcou o terceiro gol do Peñarol, em pênalti que gerou nova polêmica, nova interrupção e mais chuva de objetos, numa sequência de cenas lamentáveis, que ganhará a eternidade como a ‘Noite das Garrafadas’, tantas foram a voar sobre o campo, duas delas atingindo o trio de arbitragem. Controlado o tumulto, parecia que o juiz levara a partida até o final, com o placar, após gol de Pagão, marcando 3 x 3, o que garantia o título para o Brasil. Mas, como se sabe, soubemos depois, pela súmula da partida, que nada daquilo valera, fora ‘de mentirinha’, pois o árbitro comunicou ter dado por encerrado o confronto antes do gol de empate santista, seguindo em frente apenas como precaução, por temer reações violentas. E assim tivemos até volta olímpica do ‘Peixe’ e manchetes ufanistas nos jornais do dia seguinte, mas ‘necas de pitibiriba’, pois a súmula foi validada e o jogo dado como vitória do Peñarol. No futuro, diremos assim: “Sur-re-al!”. Ou, na linguagem dos mais jovens: “Que aleatório!” Efêmero cidadão…
Não custa lembrar que de vestimentas pretas estava em campo o ilustríssimo senhor Carlos Robles, aquele mesmo chileno que em 1959 ganhou de Nelson Rodrigues o texto e a alcunha de ‘Ladrão de Galinheiro’ ao surrupiar o Brasil em final contra a Argentina, na Copa América. Ao ver que Garrincha arrancava nos minutos finais da partida em direção ao gol dos nossos rivais, isso diante de 100 mil torcedores de azul e branco, Robles tremeu da mesma forma e sacou o apito do bolso pondo fim ao certame. Há os que garantem que o som do trinado do árbitro confundiu-se com o do estufar das redes, após arremate do nosso imparável camisa 7. Ou seja: figurinha repetida, este tal de Robles, que tem no sobrenome um radical bem sugestivo: ‘rob’. Efemeridades…
O Santos chiou, mas acabou aceitando ir a Buenos Aires decidir ‘a parada’, exigindo juiz europeu e de olho na vantagem de que, por conta dos quase 30 dias de intervalo entre as partidas, poderia agora, finalmente, contar com Pelé, afastado desde a contusão mês passado, na Copa do Chile. E o ‘Rei’ voltou em grande estilo, marcando dois dos três gols santistas. O outro foi 99,9% de Coutinho, mas o inquieto Robles decidiu dar a autoria ao uruguaio Caetano, que foi cortar e botou pra dentro – na verdade, vendo de perto observei que a bola ia pra fora. Detalhe efêmero e desprezível, claro.
E tudo isso – sim, no futuro 3 x 0 será goleada! – sobre o atual bicampeão na América e campeão mundial interclubes Peñarol. Um time que, entre outros destaques, conta com Spencer, atacante equatoriano que nos jogos da final marcou três dos quatro gols uruguaios e, em 2022, ainda será o maior artilheiro de todos os tempos deste campeonato continental (fará 54 gols num total de 11 edições que vai disputar). E sobre um elenco treinado pelo húngaro Béla Guttman, campeão europeu pelo Benfica ano passado e um dos pais do 4-4-2 que o Brasil levou à Suécia em 1958. Pra quem não sabe, foi Guttman que, em sua passagem pelo São Paulo, em 1957, incutiu suas modernas ideias de futebol na cabeça do seu então auxiliar-técnico, Vicente Feola, depois comandante do Escrete em nosso primeiro título mundial.
Sem falar neste jovem (20 anos) Pedro Rocha, habilidoso meia uruguaio que fará história na seleção daquele país e, alerta de ‘spoiler’’, daqui a oito anos virá jogar no Brasil, primeiro no São Paulo, fazendo aqui brilhante e nada efêmera carreira de futebolista. Um craque! Pra nossa sorte, aliás, em futura semifinal de Copa entre Brasil e Uruguai, em 1970, ele estará machucado e não vai jogar – o que vai facilitar as coisas. Outro atleta ontem em campo que ainda veremos em terras (e gramados) brasileiras será Maidana, que em 1965, podem me cobrar, se transferirá para o Palmeiras. Por falar em goleiros, Gilmar foi outro destaque da partida, com ao menos duas defesas… de Gilmar!
Foi a primeira vez que a competição foi disputada com uma primeira fase de grupos e não apenas jogos de mata-a-mata. Isso porque a partir deste ano será sempre assim: o campeão já garante vaga na disputa do ano seguinte. Mas não com essa moleza que teve o Peñarol, inserido na disputa apenas já nas semifinais. Mesmo suspenso durante quatro meses, por conta da Copa, o torneio ganhou em emoção, principalmente por termos, pela primeira vez, a proibição de um país ter dois times na final. A regra propiciou um antológico embate entre os rivais Penãrol e Nacional nas ‘semis’. No futuro, adianto, não será mais assim e finais com dois times de mesma nacionalidade contribuirão para a dramaticidade da disputa. Até River e Boca se encontrarão numa finalíssima de Libertadores (o nome futuro, lembra?). E ainda Palmeiras x Flamengo, Santos x Palmeiras… Fla-Flus e outros clássicos regionais brasileiros, até chegar 2022, ainda não terão ocorrido, mas, a julgar pela frequência de ‘brazucas’ na decisão, estarão fadados a acontecer…
Também até 2022, serão 25 os clubes a deterem o título continental (15 deles com mais de uma conquista). No ranking geral, a liderança passará a ser da Argentina, com 25 triunfos, contra 21 do total dos times brasileiros e 8 dos uruguaios. Mas pelo andar da carruagem, posso arriscar, caminharemos a passos largos para ultrapassar os ‘hermanos’. O Santos, na sua contribuição, somará 15 participações e, além dos três títulos, dois vice-campeonatos, batendo na trave em 2003 e 2020. Mas todas as campanhas com enorme valor e lugar garantido na memória da torcida. De ‘efêmeros’ já bastam as réguas astronômicas e os insetos para peixes de rio – assim como os jornais que os embrulham nas peixarias. Não é por acaso que só consigamos entender, e assim mesmo em parte, a vida que enxergamos no retrovisor. O futuro é efêmero; o passado é eterno.
PRA VER LANCES E GOLS DA FINAL
https://www.youtube.com/watch?v=ohT2g816P_U&ab_channel=omaiordetodosostempos
https://www.youtube.com/watch?v=0OT_DgpWV58&ab_channel=RodrigoFerreira
PRA VER LANCES DOS TRÊS JOGOS DA FINAL
https://www.youtube.com/watch?v=epfEfjnXU3Y&ab_channel=omaiordetodosostempos
FICHA TÉCNICA
SANTOS 3 x 0 PEÑAROL
Competição: Taça Libertadores da América de 1962 (final)
Data: 30 de agosto de 1962
Local: Estádio Monumental de Nuñez, em Buenos Aires, Argentina
Público: 45.980 pagantes
Renda: Cr$ 31.000.000,00 ou 5.365.400 pesos argentinos
Árbitro: Leopold Horn (HOL)
SANTOS: Gylmar; Lima, Mauro e Dalmo; Calvet e Zito; Dorval, Mengálvio, Coutinho, Pelé e Pepe
Técnico: Lula
Peñarol: Maidana; Lezcano, Cano e E.González; Gonçálvez e Caetano; Pedro Rocha, Matosas, Spencer, Sasía e Joya
Técnico: Béla Guttmann
Gols: Primeiro Tempo: Caetano (contra) aos 9’; Segundo Tempo: Pelé, aos 3’ e aos 44’
Assine o Amazon Prime e garanta 30 dias grátis de acesso ao Prime Video e outras vantagens
QUER FALAR COM O COMENTARISTA DO FUTURO? QUER CONTAR ALGUMA HISTÓRIA OU SUAS LEMBRANÇAS DESTE JOGO?
Escreva para o colunista: [email protected]