De carne e osso: Olimpíada escancara desordens mentais que afetam atletas
Eles continuam a ser tão extraordinários quanto antes, mas não escondem mais as suas fraquezas
No livro O Herói das Mil Faces, o escritor americano Joseph Campbell descreve um esquema comum a quase todos os grandes mitos da humanidade. Para se tornar um herói, a personagem recebe um chamado, tenta rejeitá-lo, é obrigada finalmente a aceitar a missão, passa por alguma provação, vence o obstáculo inicial e, com isso, encontra o caminho da redenção. Os atletas são os heróis de nosso tempo. Pense em seu campeão favorito e compare o enredo dele com o roteiro de Campbell. É quase sempre assim. Rebeca Andrade, medalha de prata na individual geral em Tóquio e a primeira brasileira a subir ao pódio na ginástica, deu ao longo da carreira diversos sinais de depressão pelo excesso de treinos e contusões. Se não fosse a mãe, empregada doméstica de uma comunidade pobre de Guarulhos (SP), teria largado tudo, como inúmeras vezes quis fazer. Rebeca passou por uma série de provações antes de se tornar uma gigante do esporte brasileiro. Ela cumpriu a jornada do herói de Campbell, mas jamais escondeu as fragilidades inerentes à condição humana.
A Olimpíada de Tóquio ficará marcada para sempre por ter despido os atletas da roupagem de super-heróis. À medida que colecionava títulos e apresentações memoráveis, a também ginasta Simone Biles consolidou a imagem de mito indestrutível e indiferente às fraquezas mundanas. O evento no Japão, contudo, provou que não pode ser assim. Maior nome da Olimpíada, ela desistiu das disputas ao sucumbir a um quadro depressivo. O gesto traz uma lição: ninguém, nem mesmo os deuses olímpicos, está imune às angústias mentais.
A desistência de Biles escancara o valor da saúde mental em qualquer atividade. Sem ela, um atleta não sobe ao pódio, um profissional não realiza bem o seu trabalho, pais não educam, filhos não aprendem, relacionamentos não seguem adiante. Em suma: a vida fica mais difícil. “Estou lidando com os demônios em minha cabeça”, argumentou Biles. “Preciso me concentrar no meu bem-estar. Há vida além da ginástica.” O que ela disse é, de fato, extraordinário. A americana, idolatrada e fonte de inspiração para milhões de pessoas, não teve pudores de admitir em público que, sim, sofre com desordens mentais como qualquer um de nós. Ao fazer isso, revelou toda a sua dimensão humana. “Ao longo da história, muitos dos excluídos foram aqueles que tiveram problemas de saúde mental”, diz Victor Bigelli, psiquiatra da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. “Eles sofriam calados. Hoje, ao menos, há mais abertura para falar.”
Após a conquista em Tóquio, Rebeca disse que tem acompanhamento psicológico desde os 13 anos. A brasileira, que ainda disputa mais duas medalhas na competição por aparelhos, pôs luz nos debates acerca da saúde mental. “As pessoas têm de entender que o atleta é um humano, não um robô”, respondeu ao ser questionada sobre o abandono da rival Biles. “Desde o ano passado, aprendi a manter o controle, não ficar nervosa. Na pandemia, eu me conectei comigo mesma, e agora vejo o resultado.”
Por que alguns atletas são mais suscetíveis às questões emocionais? A maranhense Rayssa Leal, de 13 anos, faturou a medalha de prata no skate street, a competidora mais jovem a subir ao pódio olímpico em 85 anos. Nesse caso, a juventude talvez seja a sua principal aliada. Rayssa disse que estava nos Jogos apenas para se divertir e que todo o resto não lhe interessava. Tão nova assim, Rayssa não tem ainda o peso do mundo sobre os ombros. A judoca Mayra Aguiar, bronze em Tóquio e a segunda brasileira a conquistar três medalhas — a outra é a jogadora de vôlei Fofão —, citou a força mental como um dos fatores que a fizeram superar lesões.
Para alguns críticos, a escolha de Biles pode soar como fraqueza. Atletas, afinal, são forjados para driblar as adversidades e suportar as dores e sofrimentos que aparecerem pelo caminho. É fácil se contrapor a esse argumento. Em nenhuma outra modalidade a desconexão entre corpo e mente é tão perigosa quanto na ginástica. Para realizar as manobras, as atletas confiam no que os especialistas chamam de memória corporal. Repetem os exercícios tantas vezes que os executam quase sem pensar, como se fossem ações naturais — não são. Em certas ocasiões, panes mentais fazem com que a ginasta se veja perdida em pleno salto. De repente, ela está de cabeça para baixo e o cérebro parece desligado do corpo. Em um de seus voos em Tóquio, Biles entrou no aterrorizante mundo da incerteza. Ela planejou um salto de duas voltas e meia, mas sua mente preferiu parar depois de apenas uma e meia. “Eu não tinha ideia de onde estava no ar”, disse Biles. “Poderia ter me machucado.” É como se, ao pular de paraquedas, o cérebro não distinguisse o céu da terra. Ou se, numa rodovia, o motorista desaprendesse a dirigir.
Biles teria desistido se fossem outros tempos? Talvez não. O mundo está mudado. Cada vez menos as pessoas escondem o que realmente são — uma opção sexual, uma opinião política — e aquilo que sentem, inclusive seus temores mais profundos. Até pouco tempo atrás, não era assim.
Na Olimpíada de Londres, em 2012, um dos acontecimentos olímpicos mais comentados pelos brasileiros foi a desistência da saltadora com varas Fabiana Murer, que se recusou a pular sob o argumento de que ventava muito, situação considerada perigosa por ela. “Fui chamada de fraca”, disse Fabiana a VEJA. “Disseram que eu deveria ter me machucado em vez de não saltar.” Os brasileiros até escolheram uma palavra para traduzir maus resultados esportivos: amarelão. Fabiana entrou nessa lista, assim como muitos outros. Também em Londres, o ginasta Diego Hypólito era favorito no salto, mas errou em sua apresentação. Hypólito redimiu-se na Rio-2016, faturando a prata.
A questão que se coloca agora é se a retirada dos grandes eventos será uma tendência. Em maio, a tenista japonesa Naomi Osaka, a mesma que acendeu a pira olímpica, citou a depressão para abandonar o torneio de Roland Garros. Em Tóquio, Osaka foi eliminada na terceira rodada da competição. Depressão não é novidade entre atletas. Michael Phelps, o maior nadador de todos os tempos, reconheceu que teve pensamentos suicidas. O tenista Andre Agassi tomava metanfetamina para aliviar o stress das disputas. O que é recente é o fato de atletas desistirem no meio das competições, como fizeram Biles e Osaka.
É preciso considerar que as novas gerações estão expostas a um peso adicional: as redes sociais. “A pressão por desempenho piorou”, diz o psiquiatra Victor Bigelli. “As mídias digitais impõem o que chamamos de positividade tóxica: a pessoa precisa sempre estar bem.” Os surfistas Italo Ferreira, ouro em Tóquio, e Gabriel Medina, quarto colocado, são o retrato de comportamentos opostos nas redes. Italo, embora com milhões de seguidores, foi discreto durante as disputas nos Jogos. Medina viu sua mulher, a modelo Yasmin Brunet, xingar juízes, e não se opôs às diatribes da companheira. Italo entrou para a história. Medina saiu sem medalha.
O gesto de Biles, enfim, talvez a grande marca da Olimpíada de Tóquio, foi o mais poderoso já realizado por um atleta para se contrapor ao ideal impossível da perfeição. “Cedo ou tarde na vida cada um de nós se dá conta de que a felicidade completa é irrealizável”, escreveu o escritor italiano Primo Levi, sobrevivente de um campo de extermínio nazista. Biles, Rebeca, Rayssa, Italo e tantos outros continuam a ser tão extraordinários quanto sempre foram. A diferença é que, agora, se sabe que eles são, acima de tudo, humanos.
Publicado em VEJA de 4 de agosto de 2021, edição nº 2749