O papel do futebol na abertura da Arábia Saudita ao mundo
PLACAR visitou Riade e Jeddah para ver de perto Cristiano Ronaldo, Benzema e cia, e entender como o país se prepara para receber a Copa de 2034 – e para se livrar de pesadas denúncias
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Matéria publicada na edição 1520 de PLACAR, de fevereiro de 2025, jà à venda em nossa loja e nas bancas de todo o país
O horário do jogo se aproxima à medida que o sol se põe no deserto. O calor não cessa, mas é amenizado pela brisa do Mar Vermelho no início da noite. Na terra do petróleo e de largas avenidas, o carro é o único meio de transporte possível e os engarrafamentos são comuns a qualquer hora, inclusive nas madrugadas. O trânsito se intensifica ainda mais nos arredores do estádio King Abdullah Sports City, destino dos 55 mil torcedores que começam a se encontrar cerca de duas horas antes do jogo. Os sauditas tratam o evento como se deve: o clássico entre Al-Ittihad e Al-Nassr movimenta as duas maiores cidades do país, Jeddah, capital cultural, e Riade, a capital política.
Já dentro do estádio, grupos se organizam para não perder o horário da reza islâmica (a sirene soa cinco vezes ao longo do dia para anunciar a oração). O volume das arquibancadas diminui, em respeito, para depois subir com os craques já em campo. O público é formado majoritariamente por homens, mas já se vê um número considerável de mulheres nas arquibancadas. Algumas vestem o hijab (véu islâmico) da forma mais tradicional, com apenas os olhos visíveis, e outras são mais flexíveis, cobrindo apenas o cabelo. Não é raro ver mulheres vestindo o hijab junto aos cachecois de suas respectivas equipes.
Durante boa parte da partida válida pelo Campeonato Saudita, os jogadores são meros coadjuvantes diante da festa nas arquibancadas. Mosaico interativo, músicas, gritos e até um bandeirão transformam o ambiente, numa cena que faz lembrar as mais barulhentas canchas sul-americanas. A organizada na chamada Curva Sud (termo importado da Itália) aumenta o ritmo à medida que o time ataca, e cede volume à torcida visitante quando são atacados. No gramado, as estrelas compradas pelos petrodólares definem o confronto.
A liga saudita tem financiado cada vez mais viagens da imprensa internacional, como ocorreu com PLACAR. Essa é uma estratégia comum, inclusive entre ligas europeias, para atrair holofotes – e, claro, mudar algumas percepções sobre a realidade local. Na sala de imprensa, influencers espanhois registram, impressionados, o vasto cardápio de comida árabe, que inclui deliciosas esfihas abertas, pão sírio com babaganoush, tabule e tâmaras, tudo por conta da casa, e mais tarde se deleitam com o show da torcida, à beira do campo.
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“O futebol é o esporte número 1 na Arábia Saudita. É algo com o qual todos nós crescemos, seja participando, assistindo e interagindo, desde muito, muito tempo atrás. Temos clubes que estão perto de completar 100 anos. Temos uma liga profissional que já está em funcionamento há quase 50 anos”, diz Omar Mugharbel, CEO da liga saudita. “Não é algo novo. Não é algo que começamos a seguir ou a nos apaixonar recentemente. É algo com raízes profundas em nossa cultura e sociedade”. O brasileiro Roberto Rivellino, que chegou ao Al-Hilal em 1979, é considerado até hoje uma lenda no país. Segundo os dados oficiais, 80% dos sauditas se dizem fãs de futebol.
Apesar da inegável tradição, ninguém contesta que a contratação de Cristiano Ronaldo ao final de 2022 representou um divisor de águas. Nem mesmo a recente saída de Neymar do Al–Hilal (outro gigante do país ao lado de Al-It tihad, Al-Ahly, Al-Nassr) após um ano e meio deve minguar o futebol por lá. “Agora conheço o povo saudita de verdade. Sempre senti o amor e paixão de vocês pelo jogo. Estarei acompanhando vocês enquanto clubes e seleção no caminho até a Copa 2034. O futuro de vocês será incrível”, escreveu Neymar em sua despedida. Mesmo sem o brasileiro, Benzema, Firmino, Kanté, Mahrez e Fabinho são estrelas que deixaram a Europa e ainda abrilhantam o campeonato. Ex-dirigente da CBF e atual diretor de competições da Saudi Pro League, Manoel Flores, reforçou que os gastos estão muito bem direcionados.
“Nosso primeiro grande objetivo foi mostrar ao mundo que estamos aqui para ficar. A partir de agora, é equilibrar a liga e fazê-la crescer de for ma orgânica e sustentável”. Para isso, as equipes mantiveram os jogadores estrelados e passaram a buscar os atletas mais jovens. A chegada do go leiro Bento, 25, ex-Athletico-PR, ao Al-Nassr ilus tra bem este novo momento. A preocupação de equilibrar a liga é urgente. Os quatro maiores clubes do país são controlados em 75% pelo próprio governo através do fundo de investimento saudita (PIF) – que também detém o Newcastle, tradicional clube inglês. A distância dos quatro grandes para o restante é perceptível nos elencos e na tabela de classificação. Até por isso, o Ministério do Esporte anunciou recente mente um investimento de 1,7 bilhão de Riyals sauditas (o equivalente a 2,76 bilhões de reais) pa ra a temporada 2024/25. O dinheiro chegará até a clubes da terceira divisão.
Apesar das badaladas contratações, os clubes sauditas ainda não contam com uma infraestrutura de nível europeu. Os CTs de Al-Ittihad e Al-Ahli, por exemplo, são idênticos, com a mesma fachada em uma arquitetura tipicamente árabe. A única diferença são as cores, claro – preto a amarelo no primeiro, verde e branco no segundo. As academias, modestas, sem grandes tecnologias, e os campos, acanhados, servem como casa para as equipes inferiores e femininas. O autoritarismo dos dirigentes em proibir fotos e vídeos do local não se justifica, mas pode ser visto como um sinal de constrangimento.
“Comecei a aprender árabe, o básico do dia a dia, mas depois relaxei”, conta Roberto Firmino. O atacante do Al-Ahli vai completar sua segunda temporada de futebol saudita e conta que precisou de tempo para se adaptar: “A gente sofre, no bom sentido. Eu vim do melhor campeonato do mundo (Premier League) e é uma mudança muito radical. Precisa de uns meses de adaptação, mas eu e minha família estamos gostando de morar aqui”, diz, antes de o assessor de imprensa finalizar o papo de cronometrados cinco minutos.
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Companheiros de equipe, os compatriotas Ibañez e Alexsander também não têm do que se queixar: “Para quem vem de fora, a competitividade é muito importante. A evolução está acontecendo, dá para ver a mudança de mentalidade. Os olhos do mundo todo estão aqui agora”, diz o primeiro. Um dos principais pontos levantados pelos jogadores é o calendário, que proporciona mais tempo livre.
Como o calor é muito forte ao longo da tarde, as equipes costumam treinar à noite, principalmente no período do Ramadã, quando os atletas muçulmanos só podem se alimentar depois do pôr do sol. Assim, os jogadores têm o dia inteiro livre para aproveitar a família, e o mais importante: sem pressão de torcida: “Dificilmente alguém para você na rua. No máximo uma foto ou outra”, diz Aleksander, meia de 21 anos revelado pelo Fluminense.
Se para os homens a adaptação não assusta tanto, para as mulheres pode ser um pouco mais desafiadora. Letícia Nunes, que trocou o Bahia pelo Al-Ittihad no ano passado, conta que já foi ao mercado de shorts e precisou voltar para o carro para colocar uma calça ao notar olhares sisudos. Sem qualquer obrigação de usar hijab, as estrangeiras precisam, no entanto, respeitar as normas religiosas da teocracia saudita e ao menos cobrir as pernas. “A vida social é bem diferente, aqui é mais difícil de fazer amizades, este ciclo social é mais curto pela dificuldade de comunicação com os homens e também mulheres, há pouco contato”, diz Letícia.
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Durante o papo com a reportagem, a brasileira foi requisitada para tirar foto com uma fã mirim. O encontro aconteceu nos arredores do estádio King Abdullah, onde também ocorre o Regional Training Center da federação saudita, uma iniciativa para o desenvolvimento do futebol feminino local. O staff faz questão de frisar que é um projeto social, além do esportivo. Crianças a partir de 6 anos de idade são divididas em três categorias do projeto, com diversas atividades.
Uma das técnicas que formam o staff na cidade é Tatiana Khalil, ex-capitã da seleção do Líbano: “O projeto me convenceu porque é algo que eu e toda a minha geração adoraríamos ter tido em nossa infância”. Atualmente, cerca de 400 meninas integram o projeto. As atletas da última categoria ficam “livres” para serem abordadas pelos clubes e assinarem contrato. Tatiana conta que muitas estreiam pelas seleções de base, chamam a atenção e então são contratadas. Hoje, é possível viver somente de futebol feminino na Arábia Saudita – sem grandes luxos, obviamente.
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O esporte-rei é apenas um dos muitos caminhos escolhidos para desenvolver o país. O projeto Saudi Vision, elaborado em 2016 pelo príncipe herdeiro Mohammad bin Salman (o popular MBS), tem metas a cumprir até 2030 – a maioria já entregues. A pasta elaborada pelo governo tem como objetivo tornar a Arábia Saudita uma referência do turismo, diversificando a economia e diminuindo a dependência do petróleo.
Em meio a este processo, a Arábia Saudita passou a emitir visto de turismo para a maioria dos países a partir de 2019. A diferença é perceptível. O que mais se vê nas grandes cidades são gigantescas construções. Os poucos sauditas na rua, ao perceberem a onda de turistas, são curiosos e simpáticos: “De onde vocês são? Estão gostando do país? Como estão sendo tratados?”. “Somos o Brasil do Oriente Médio”, brinca um morador. “Adoramos recepcionar bem nossas visitas”
Entre um Sallam Aleikum (cumprimento utilizado pelos muçulmanos que significa “que a paz esteja sobre vós”) e outro, o choque cultural é mais forte no centro histórico da cidade. O bairro de Al-Balad, patrimônio cultural da Unesco, é formado por casas de pedra e suas janelas de madeira Roshan. Nas ruas, sauditas tomam café entre os forasteiros, enquanto mulheres passeiam com suas crianças, a maioria vestindo o hijab tradicional. O governo iniciou um projeto de revitalização de toda a área, claro, visando o turismo.
O país corre agora contra o tempo para não apenas cumprir todos os objetivos do Saudi Vision 2030, mas deixar tudo perfeito para a Copa do Mundo de 2034. A Arábia Saudita foi a única a concorrer como sede do evento e recebeu 4,2 de nota da Fifa, a maior da história no processo de análise. “Algumas pessoas podem pensar que por termos sido os únicos candidatos o processo foi mais fácil, mas não foi nada disso. É mais fácil competir com os outros do que consigo mesmo”, justifica Ibrahim Al Kassim, secretário-geral da Federação de Futebol da Arábia Saudita (SAFF, na sigla local).
A segunda edição de uma Copa do Mundo no Oriente Médio ainda não tem definido o seu mês de realização. É provável, no entanto, que seja jogada entre novembro e dezembro, período com temperaturas mais amenas, repetindo a estratégia utilizada pela Fifa no Catar, em 2022 – e que complicou ainda mais o calendário das grandes ligas. Ibrahim garante que a Arábia estará pronta qualquer que seja a data escolhida.
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O processo de abertura é notóriol, cristalino, mas esbarra sempre no termo que os sauditas não gostam de ouvir: sportswashing, como foi batizada pela mídia ocidental a estratégia utilizada por determinados países para limpar sua imagem. No caso da Arábia Saudita, é difícil se livrar das evidências de violação dos direitos humanos. Em 2018, o príncipe MBS, cujos retratos estão pendurados em hoteis e diversos outros estabelecimentos, foi acusado de ordenar o sequestro e a morte do jornalista saudita Jamal Khashoggi. Além do episódio incontornável, a monarquia lida de forma dura e discriminatória contra a comunidade LGBTQIAPN+, sendo a homossexualidade passível até de pena de morte. Em 2024, a Arábia Saudita executou 330 pessoas (158 a mais que no ano anterior e o maior número em décadas), a despeito da afirmação de Bin Salman de que a pena capital foi eliminada no país, exceto para casos de homicídio. Os dados são da ONG de direitos humanos Reprieve e verificados pela agência Reuters.
Alguns casos preocupantes aconteceram dentro do esporte. No último ano, o atleta marroquino Hamdallah, do Al-Ittihad, foi alvo de chicotadas de um torcedor quando se envolveu em uma discussão em campo. As autoridades sauditas precisaram revisar o protocolo de torcedor nos estádios. Recentemente, durante a disputa da Supercopa da Espanha em solo saudita, esposas de jogadores do Mallorca relataram um episódio de assédio na saída do jogo contra o Real Madrid, em Jeddah.
Ibrahim Al Kassim, secretário-geral da SAFF, é firme em sua posição: “Estamos abertos ao mundo, para educar as pessoas e mostrar onde a Arábia Saudita está hoje. Estamos mudando, somos um país em evolução, mas estamos mudando por nós mesmos, para as futuras gerações, não para agradar a ninguém. Não queremos esperar até 2034 para que as pessoas venham e vejam a realidade por si mesmas”, diz. “Ninguém é perfeito. Cada país tem seus próprios desafios. A diferença é que reconhecemos o que precisava ser melhorado e começamos a trabalhar nisso.”
Como todas as suas idiossincrasias, a Arábia Saudita é uma realidade. A abertura cultural refletida pelo Saudi Vision e a aposta no futebol como uma arma política e econômica jogaram todos os holofotes no país, que tem conseguido driblar as críticas por enquanto. Os petrodólares só ajudam num processo cada vez mais acelerado e que acontece de forma muito ordenada. Não será preciso esperar a Copa do Mundo de 2034 para ver a Arábia Saudita nos jornais esportivos.
CR7, o conquistador
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“Foi o Cristiano quem abriu as portas para a Arábia Saudita. Muita gente tinha uma ideia muito diferente da vida e do futebol daqui. Ele veio descomplicar um pouco esse cenário e mostrar o que o povo daqui acredita como futebol e o que pode vir a ser no futuro”, diz Danilo Pereira, zagueiro do Al-Ittihad e da seleção de Portugal. Ele não nega a influência de CR7 em sua chegada e como o gajo vendeu muito bem a vida no Oriente Médio: “Na seleção ele já comentava como a realidade por aqui é totalmente diferente do que as pessoas imaginam”.
O país saudita abraçou o português como nunca. No duelo do Al-Nassr (cujo nome significa Vitória) contra o Al-Ittihad (União), mesmo como visitante, metade do estádio estava repleto de torcedores com a camisa amarela e o número 7 nas costas. Sem contar os neutros que claramente foram ao evento somente para vê-lo de pertinho. Não há conversa, Cristiano Ronaldo é o maior do mundo na Arábia Saudita, enquanto Messi é citado por um ou outro (e citado pelos rivais do Al-Nassr em tom de provocação).
O português faz jus à idolatria. Aos 40 anos, segue com números relevantes e fazendo a diferença. Na última temporada, foram 63 participações diretas em gols em 51 jogos disputados. Apesar do desempenho, Cristiano conquistou apenas um título: a Taça da União das Associações de Futebol Árabe, o que reforça a tese do próprio de que a competitividade na liga é maior do que na França, por exemplo.
Desde que o futebol saudita se abriu, que manda nas competições é o Al-Hilal do técnico português Jorge Jesus e do atacante Neymar. O brasileiro, no entanto, é uma grande decepção para os torcedores locais. Foram apenas sete jogos até aqui e mais de um ano afastado por lesão. É mais comum ver camisas do artilheiro sérvio Mitrovic nas ruas, que caiu nas graças dos sauditas – mesmo ostentando uma enorme tatuagem de Jesus Cristo no braço.
O futuro é Neom
Para a Copa do Mundo de 2034, a Arábia Saudita planeja do zero a construção de Neom, uma cidade a noroeste do país e à beira do Mar Vermelho, diferente de tudo no mundo. A cidade futurista será completamente sustentável, com energia renovável e um dos complexos construído de forma vertical, como uma muralha, chamada The Line. A expectativa é ter cerca de 300 mil moradores até 2030: “É um novo modelo de vida, negócio e conservação ambiental. Como um futuro hub global, Neom incluirá cidades cognitivas, com portos, centros de pesquisa e destinos turísticos”.
A cidade será sede do Mundial com o Neom Stadium, um palco para o futebol diferente de tudo no mundo. Com capacidade para 46 mil pessoas, o estádio ficará suspenso a 350 metros acima do solo, com um telhado de vidro criado para espelhar a própria cidade. Após o evento, se tornará a casa da seleção masculina e feminina da Arábia Saudita e servirá como complexo de esportes para a comunidade local.
* PLACAR viajou à Arábia Saudita à convite da Roshn Saudi League