Futebol na diagonal: canais driblam direitos autorias em transmissões ilegais na internet
De um lado, pessoas que fazem um ‘extra’ de até R$ 5 mil em uma única partida transmitida; do outro, torcedores desesperados para acompanhar aquele jogo importante de seu time. Audiovisual aponta para perdas na casa dos R$ 50 bilhões em cinco anos, enquanto operações tratam de tirar sites e apps do ar
Texto publicado na edição 1517, de novembro de 2024
Se você, desesperado por um link de jogo decisivo do seu time, já assistiu a uma partida de futebol assim, como na imagem, pode nem achar tão estranho ler este trecho do texto. De qualquer forma, consumir o esporte entortando o pescoço não chega a ser uma prática agradável – a revista ao menos tem a vantagem de ser mais facilmente manipulada para ficar na horizontal em relação à TV ou ao computador. A pulverização das transmissões, benéfica em sua maioria, criou um indesejado (e ilegal, vale ressaltar) efeito colateral: o fenômeno do “futebol na diagonal” na internet.
Na esteira do excesso de pacotes de TV por assinatura e streamings, a prática ilícita é cada vez mais recorrente no Facebook e no YouTube. A pirataria tecnológica recorre ao formato na diagonal para driblar os robôs das plataformas que detectam uma transmissão que não pertence ao verdadeiro dono de milionários direitos de exibição. Pior do que isso, governo e entidades do setor apontam para roubo de dados, golpes via Pix e perdas bilionárias para a indústria.
No passado, com o chamado monopólio da TV aberta, era mais fácil saber qual jogo passaria na telona em frente ao sofá. Essa tarefa se complicou com os tantos canais da TV fechada e ainda os “Plays” e “Plus” disponíveis em catálogos nem sempre acessíveis à maioria. Atualmente, é impossível assistir a todos os canais de forma lícita por menos de 200 reais. Os interessados em assistir a um jogo fora do pacote contratado deixam até o centenário aparelho de rádio de lado e procuram na internet uma alternativa para acompanhar seu time. As formas como essas transmissões são feitas vão das mais simplórias às mais complexas.
“Tem que ter um pouco de habilidade com lista IPTV [sinais de televisão pela internet], computador para fazer essas transmissões, mas, de direitos de transmissão são protegidos por lei, mas fiscalização e autuação contra pirataria ainda são complexas pois que começa, não é tão difícil. Já derrubaram o meu sinal muitas vezes, aí subo de novo, mudo a tela. É uma sensação muito da hora quando você vê os números [de visualizações] subindo”, disse um internauta do Recife, torcedor do Santa Cruz e dono de um dos canais piratas. Assim como os demais entrevistados do ramo, ele só aceitou falar com PLACAR sob anonimato.
Nas versões mais simples, um torcedor, direto da arquibancada mesmo, transmite ao vivo em sua rede social favorita a partida a que está assistindo, sem replay, tempo ou placar. Deu-se, então, o upgrade da ilegalidade, em que hackers transferem o sinal original (de satélite, cabo ou internet) para o computador e, em geral, com uma placa de vídeo externa, conseguem fazer a gravação do que está sendo exibido e assim reproduzir na rede – e faturar com isso.
Por se tratar de uma transmissão ilegal, o título do vídeo tem que ser maquiado ou ganhar números e caracteres especiais. Chile e Brasil, pela nona rodada das Eliminatórias da Copa, com transmissão na Globo, era encontrada em um dos canais como BRA X XILHE e assistido por 6 200 pessoas simultaneamente no gol do 1 a 1, antes do fim do primeiro tempo. São Paulo e Atlético-MG, pelas quartas de final da Copa do Brasil, era S@0 P4ul0 x 4tl3t1c0, em que a letra ‘A’ virou ‘@’ ou ‘4’ e por aí vai.
E não importa muito se a partida está na TV aberta ou não. Pessoas em trânsito, sem acesso à TV no trabalho ou na faculdade e, claro, sem streaming, são os principais consumidores – as interações no chat também são um atrativo. Vale o aviso “ao vivo e com imagens” para não confundir com as transmissões de web rádio. O pitoresco artifício da imagem na diagonal dificulta a identificação pelas plataformas, pelos donos dos direitos e pela Ancine (Agência Nacional do Cinema), que regula esses sites.
Em setembro, na sétima fase da Operação 404 (em referência ao código de “página não encontrada” no servidor) do Ministério da Justiça, 675 sites foram bloqueados e 14 aplicativos foram retirados do ar. Inúmeras páginas e perfis também foram desindexados dos mecanismos de busca. Além disso, 30 mandados de busca e apreensão foram cumpridos, com nove pessoas presas só no Brasil. “A prática causa prejuízos significativos à economia e à indústria criativa, além de ferir os direitos de autores e artistas”, disse o ministério em nota.
De acordo com a Associação Brasileira de Televisão por Assinatura (ABTA), 7 milhões de lares possuem TV boxes ilegais, aparelhos que se utilizam basicamente da mesma fonte de pirataria, mas não estão sob fiscalização da Anatel. Recentemente, a Agência Nacional de Telecomunicações admitiu o problema e distribuiu 12 000 reais em prêmios para as melhores soluções para bloquear a troca de dados de dispositivos não homologados. Ainda segundo levantamento da associação, 47 milhões de pessoas acessam sites ou aplicativos piratas, o que teria causado uma perda de 51,7 bilhões de reais ao setor audiovisual entre 2017 e 2021.
‘Pix para ver sem anúncio’
Um internauta goiano, dono de um dos canais piratas mais populares do país, detém o que considera um dos recordes de arrecadação de Pix na modalidade que é febre para quem não quer pagar a TV por assinatura. Isso porque essas páginas também lotam o material de anúncios de publicidade e pedem dinheiro para enviarem a transmissão, aí sim, sem anúncios e com a imagem na forma tradicional.
“Cheguei a ganhar 5 000 reais com um único jogo. Sempre desse modo, pedindo Pix para quem estava assistindo. Do nada, muita gente queria ver a Supercopa do Brasil entre Palmeiras e Flamengo, em 2023, mesmo passando em TV aberta”, completou o torcedor do Vila Nova. “Depois dessas ações, foquei mais em dar cursos de como ganhar dinheiro na internet. Ainda faço mentoria para grupos, mas não é mais o meu foco”, complementou.
O que aos olhos mais leigos poderia até ser um serviço justo, quase inofensivo, abriu brechas para golpistas. Além de links maliciosos, capazes de roubar dados dos usuários, há quem anuncie o sorteio de um iPhone de preço superior a 8 000 reais e, como no exemplo da seleção brasileira nas Eliminatórias, prometa 2 700 reais para as sete primeiras pessoas que enviarem um depósito no valor de 7,99 reais. “Caso você não ganhe, o seu dinheiro será devolvido, reembolsado, ressarcido em 100% do valor que você enviou. Não tem risco nenhum”, dizia uma voz com um chiado ensurdecedor, em cima da transmissão da Globo, narrada por Luís Roberto.
Pouco tempo depois, uma pessoa, chamada Pedro, aparece filmando a tela de outro celular, indicando que o depósito em questão havia sido feito. Pedro, no entanto, não aparece na lista dos sete nomes em questão, notabilizando o golpe mesmo que estivesse se tratando de outro sorteio. A forma é questionada mesmo por quem “já tentou fazer uma grana extra” com jogos na internet. Um torcedor do Grêmio, natural de Pelotas, admite que tentou ganhar dinheiro dessa forma, mas depois se arrependeu. “Não vou negar que já pedi dinheiro em lives.
Mas é muito difícil cumprir as regras [de monetização] do YouTube, e você compete contra uns caras de pau que pedem dinheiro toda hora em leilão. Pode até ser verdade um ou outro nome que aparece ali na tela, mas não tem como isso não ser golpe.” Não são apenas pessoas comuns que faturam com a pirataria esportiva. Sites como Futemax, Futebolplay e Multicanais são “consagrados” nesse meio. Em suas páginas, com domínios que escapam ao conhecido “.com.br”, as opções para o futebol são extensas, mas não seguras.
A facilidade para assistir aos jogos ilegalmente é inversamente proporcional às formas de denunciar esses canais. No Procon, órgão do governo de proteção ao consumidor, não é possível fazer uma reclamação uma vez que não se sabe, por exemplo, o CNPJ dessas empresas. O mesmo ocorre na plataforma Reclame Aqui, já que as empresas não aparecem no cadastro.
Nunca é demais lembrar que as emissoras desembolsam quantias astronômicas pelos direitos de transmissão oficiais. De acordo com o portal F5, a Record vai desembolsar mais de R$ 210 milhões anuais para voltar a transmitir alguns jogos do Brasileirão a partir de 2025.
O que diz a lei
No início do ano, com a Lei nº 14.815, a Ancine ganhou mais poderes para “zelar pelo respeito ao direito autoral sobre obras audiovisuais nacionais ou estrangeiras”. A agência é quem determina a “suspensão ou cessação” de obras que violem os direitos autorais. Apesar da publicação, o mercado audiovisual cobrou maior eficiência do setor.
Em contato com a reportagem, a ABTA pediu maior empenho da agência, “uma vez que a pirataria ameaça negócios, empregos e direitos autorais”. Procurada, a Ancine não retornou os contatos.
A recomendação para o cidadão que encontrar uma transmissão pirata é fazer a denúncia na própria plataforma e depois registrar a reclamação nos órgãos oficiais (Anatel e Ancine). Doutor em direito penal pela USP, o advogado criminalista Matheus Falivene aponta para a necessidade de separar a questão de quem intercepta ilegalmente o sinal de TV e quem assiste aos jogos.
“Atualmente, os tribunais entenderam que o usuário está cometendo não um crime, mas um ilícito penal. Ele pode ser responsabilizado civilmente com o pagamento de multa, mas essa identificação é muito complexa, além de uma operação muito cara.”
Pedofilia x Pirataria
Não é só no futebol brasileiro que as fraudes audiovisuais atuam. Os campeonatos europeus também estão disponíveis irregularmente de forma gratuita na internet. Javier Tebas, o presidente da espanhola LaLiga e um dos dirigentes mais influentes no Velho Continente, comparou em abril deste ano o acesso a drogas e conteúdo de pedofiliaao da pirataria. “Se no Google você pesquisar ‘quero comprar cocaína’ ou ‘sexo infantil’, não aparece nada [por ser bloqueado pela plataforma]. Mas, se colocar ‘futebol grátis’, aparece”, como relatou o jornal Marca.
Ainda que tenha caído mal para a crítica, Tebas levantou um importante debate e chamou os piratas de “máfias organizadas”. Segundo o espanhol, só em 2023 foram retirados do ar 1 251 vídeos do YouTube, 938 000 materiais de redes sociais e 61 000 perfis, todos com conteúdo de fraude audiovisual.
Os números podem ser comemorados, mas apontam para uma necessidade de maior emprego de tecnologia, criação de uma agência para essas denúncias e até mesmo cooperação por integrantes da União Europeia. No entanto, nem mesmo a boleirada resiste à tentação da pirataria portátil. Meses depois da declaração de Tebas, o meia-atacante do Barcelona, Fermín López, postou uma imagem do seu time em jogo contra o Valência, pelo Espanhol. A foto da tela do celular entregava que o jogador estava assistindo ao jogo por um site ilegal. Com a repercussão negativa, o jogador apagou o registro no Instagram.
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