A elitização é real: por que a 1ª prateleira encolheu
Real Madrid alcançou hegemonia vista só nos tempos de Di Stéfano e na Premier deu City de novo. A nova economia do futebol tornou o grupo de gigantes restrito
Texto publicado na PLACAR de julho de 2024, edição 1513
Os jogadores do Real Madrid mal haviam curado a ressaca das comemorações do 15° título da Liga dos Campeões, conquistado em um triunfo por 2 a 0 sobre o Borussia Dortmund, em Londres, quando o gigante espanhol anunciou em suas redes sociais o que já se especulava havia meses – ou melhor, anos. O craque francês Kylian Mbappé, enfim, reforçará o ataque merengue, que já conta com estrelas do calibre de Vinicius Junior, Rodrygo e Jude Bellingham.
Nem mesmo o mal-estar causado por Mbappé na capital espanhola há duas temporadas, quando foi convencido de última hora a renovar com o PSG, impediu que o negócio se concretizasse – e da melhor maneira possível para o Real, já que o novo camisa 9 chega como agente livre (de graça) e no auge da forma, aos 25 anos.
Soaria lógico que o Real Madrid não visse necessidade de contratar mais um atacante – o prodígio brasileiro Endrick também desembarca em agosto – e, sobretudo, que os concorrentes não medissem esforços para ter Mbappé. No entanto, nem mesmo o clube pelo qual o francês diz ter torcido na infância, o heptacampeão europeu Milan, se atreveu a fazer uma proposta, mesmo sabendo que ele estava sem contrato. O único rival capaz de seduzi-lo, fosse pelo potencial financeiro, fosse pelo esportivo, seria o tetracampeão inglês Manchester City, mas o técnico Pep Guardiola cortou o burburinho pela raiz. “Vocês sabem bem para onde ele quer ir”, ironizou o catalão, ainda em 2023. Se até pouco tempo atrás os melhores jogadores do mundo estavam mais bem distribuídos entre os times do Velho Continente, atualmente a primeiríssima prateleira é cada vez mais seleta.
O Real Madrid venceu seis das últimas dez edições de Liga dos Campeões, uma hegemonia só antes vista nos anos 1960, com o próprio esquadrão blanco – Luka Modric, Carvajal, Nacho e Toni Kroos igualaram este ano o recorde de seis títulos estabelecido por Paco Gento em 1966. Além disso, o clube fundado em 1902 retomou a liderança do ranking Deloitte Football Money League, ultrapassando o City, com uma receita anual de 831,4 milhões de euros (mais de 4 bilhões de reais). De quebra, inaugurou o novo Santiago Bernabéu, a arena multiuso mais espetacular do planeta. “O Real Madrid é uma marca histórica e global, com uma visão corpo-rativa. É tão bem administrado que chegou a passar alguns anos praticamente sem contrata-ções. Foi o único a se manter muito estável até mesmo em meio à pandemia”, explica Cesar Grafietti, economista e sócio da consultoria Convocados.
Ainda que Cristiano Ronaldo tenha sido o maior protagonista em campo dessa nova hegemonia, com quatro títulos europeus entre 2014 e 2018, há um personagem ainda mais presente nessa história. Florentino Pérez, dono do Grupo ACS, a maior construtora da Espanha, está longe de ser uma figura simpática, mas é indiscutivelmente um vitorioso. Então um milionário anônimo, ele concorreu à presidência do Real Madrid pela primeira vez em 2000, prometendo tirar o craque Luís Figo do rival Barcelona, caso fosse eleito. Cumpriu o combinado e seguiu assinando com os maiores ídolos da época, como Zidane, Ronaldo e Beckham, entre outros. O legado dos “Galáticos” é evidente. “Com a Lei Bosman, Florentino viu a chance de criar essa aura de time dos sonhos. Por mais que esportivamente a era galática tenha sido um fracasso, o Real voltou a ser o time em que todos querem jogar”, destaca Grafietti, citando a lei aprovada em 1995, fruto de uma ação movida pelo belga Jean-Marc Bosman, que permitiu que atletas deixassem suas agremiações ao fim dos contratos – mudando para sempre os rumos do futebol.
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Aos 77 anos, 19 deles dedicados à presidência do Real em diferentes mandatos, Pérez vem adotando uma estratégia de mercado diferente (e mais efetiva) daquela que o alçou à fama. A compra de craques consolidados como Mbappé se tornou pontual, enquanto a regra é desenvolver em casa jovens talentos de diversas partes do planeta. Foi assim com o uruguaio Valverde, o francês Camavinga, o brasileiro Vini Jr. e tantos outros. O turco Arda Guler e Endrick são as próximas apostas. Com fama de vaidoso e até um tanto cruel, Florentino não fez nenhuma cerimônia para encerrar ciclos de craques consagrados, como Casillas, Sergio Ramos, Marcelo, Karim Benzema e até Cristiano Ronaldo – na contramão do que fez o rival Barcelona.
Trocando em miúdos, o maior clube do mundo replicou um método consagrado por times pequenos e médios (o de recrutar e desenvolver talentos mundo afora), tendo a seu favor um poderio financeiro e apelo midiático muito superiores. Se antes os garotos sul-americanos costumavam passar por clubes de Holanda, França ou Portugal para depois dar o salto, hoje o primeiro chamado europeu tende a vir diretamente dos times mais ricos. Endrick e Estevão, as duas novas joias do Palmeiras, e o argentino Claudio Echeverri, do River Plate, por exemplo, já estão vendidos a Real, Chelsea e City, respectivamente. A concorrência desleal torna cada vez menos provável a ocorrência de zebras no futebol europeu, como a de 20 anos atrás.
Em 2004, Monaco e Porto desbancaram favoritos e chegaram à decisão da Champions League – a taça ficou com a equipe lusitana, de Deco, Carlos Alberto e José Mourinho. Foi a última vez que uma final não teve um representante de Espanha, Inglaterra ou Alemanha.
Nem mesmo na Premier League, indiscutivelmente a mais empolgante e bem-organizada liga do planeta, os resultados têm saído do previsto. Em apenas uma das últimas sete edições o City foi desbancado – pelo Liverpool. Por dois anos seguidos, o Arsenal fez campanhas brilhantes, mas sucumbiu ao rival de Manchester na reta final. “O City domina, mas por uma margem estreita, e, a meu ver, muito mais por mérito do Guardiola. Tenho curiosidade para ver como será quando ele sair”, argumenta Grafietti. Ao contrário do Real Madrid, um gigante inconteste, o City divide opiniões e ainda convive com a pecha de novo-rico e time sem camisa.
Gerido pelo City Football Group, que pertence à família real dos Emirados Árabes Unidos (EAU), é constantemente investigado por violações ao fair play financeiro, mas, caso continue sem ser punido – e provavelmente não será -, seguirá brigando por taças ano após ano. A grande incógnita na Europa passa a ser o PSG, que venceu dez dos últimos doze campeonatos franceses, mas segue perseguindo o sonho da inédita Champions. Há dois anos, o clube gerido pelo governo do Catar contava com Mbappé, Neymar e Messi no ataque. Os três saíram, o projeto naufragou, e agora o dono Nasser Al-Khelaifi tenta ao menos manter um time competitivo, bem menos estrelado.
Como comprovam os números da Deloitte, clubes tradicionais, especialmente os italianos Milan e Inter de Milão, despencaram nas listas de mais ricos. “Esses clubes de gestões perdulárias foram perdendo força com o fair play financeiro e agora tentam se recuperar com novos donos”, diz o sócio da consultoria Convocados. A falta de competitividade gerou previsões bastante drásticas e um tanto exageradas. Segundo Florentino Pérez, “o futebol está passando por uma crise institucional sem precedentes em todos os níveis, tanto na Espanha quanto na Europa. A situação é muito séria. Precisamos mudar, ou o futebol como conhecemos não irá sobreviver”. Segundo o presidente do Real Madrid, a solução seria criar uma Superliga de Clubes.
Em 2021, Pérez chocou o mundo ao liderar o lançamento de um torneio que pretendia substituir a Liga dos Campeões, reunindo como membros fixos os clubes mais poderosos do planeta. O projeto elitista foi implodido em apenas 48 horas em meio a protestos de torcedores, especialmente na Inglaterra. Dos 12 fundadores, sobraram apenas Juventus, Barcelona e, claro, o Real Madrid. O trio entrou em rota de colisão com a Uefa, que, no entanto, aceitou o fato de que as fases preliminares da Champions perderam a graça. O formato da competição mudará a partir da próxima temporada, de modo que os clubes mais badalados se enfrentem mais vezes.
A confederação europeia também marcou um golaço institucional ao criar a Conference League, uma espécie de “Série C” dos torneios interclubes, cujos títulos foram celebrados com enorme entusiasmo pelos torcedores de Roma, West Ham e Olympiacos. Se, no topo da Europa, Real e City sobram, nas prateleiras abaixo a disputa é intensa, vide o número de zebras em 2024 – a Atalanta, da Itália, por exemplo, venceu a Liga Europa deixando Liverpool e o campeão alemão Bayer Leverkusen pelo caminho.
O debate se expandiu ainda mais com a entrada no jogo da Arábia Saudita. Além de megaestrelas em baixa, como CR7 e Neymar, a nova liga bilionária atraiu jogadores mais jovens e que se destacaram pelos lados de Riade, com o brasileiro Malcom e o sérvio Mitrovic, heróis do título do Al-Hilal. “Acredito que os árabes voltem para uma segunda rodada de contratações de jogadores da Europa, mas agora menos badalados e mais decisivos. Menos Benzemas e mais Mitrovics’, aposta Cesar Grafietti. O especialista não vê esse movimento com uma ameaça para os europeus.
“É até bom, pois assim os clubes reciclam os seus ativos. É uma forma de ganhar dinheiro com atletas que dificilmente seriam negociados num valor alto”, diz. No fim das contas, o futebol árabe pode estar ajudando a reciclar talentos e a oxigenar a estrutura dos clubes. A história comprova que o esporte é cíclico e é seguro cravar que City e Real não vão reinar para sempre – mas certamente não terão concorrentes à altura no curto prazo.
Mas e o Barça?
Se o Real Madrid deu uma autêntica lição de gestão nos últimos anos, seu eterno rival fez o completo oposto. Não é modo de dizer: fosse uma empresa, o Barcelona teria quebrado.
Ironicamente, a derrocada catalã teve início logo após a maior venda da história do futebol. Em 2017, Neymar chocou o mundo ao partir rumo ao PSG, por 222 milhões de euros, encerrando o trio MSN que formava com Messi e Suárez.
Pressionada, a diretoria então comandada por Josep Maria Bartomeu fez contratações caríssimas (e desastradas), como Philippe Coutinho (por 145 milhões de euros, mais que o triplo do valor pago pelo Real para tirar Vinicius Jr. do Flamengo e os franceses Dembelé e Griezmann [na casa dos 120 mi]. Nenhum deles vingou e o clube se complicou ainda mais ao renovar com veteranos como Piqué, Alba e Busquets, essencialmente por gratidão – novamente na contramão do inimigo da capital.
Para piorar, a pandemia do coronavírus fechou abruptamente uma das principais fontes de renda do Barça: seu museu e as arquibancadas do Camp Nou. A dívida decolou para mais de 1 bilhão de euros e obrigou Bartomeu a renunciar. Deu-se, então, o vexame supremo dos quase 125 anos da agremiação. Lionel Messi, o máximo ídolo azul e grená, se viu obrigado a deixar o clube, aos prantos, pois sua permanência era “impagável”.
O segundo clube mais vencedor da Espanha segue com altas receitas (é o quarto do mundo), mas já não seduz craques como antes. A imagem do esquadrão que encantava com jogo bonito e taças empilhadas vai ficando cada vez mais distante. A reforma do Camp Nou e o surgimento de novos prodígios, como Gavi e Lamine Yamal, são um sopro de esperança.
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