Técnico evita embate direto, mas responde em tom brando - e com mensagens implícitas - que retorno do antigo camisa 10 não será tarefa fácil
Carlo Ancelotti estava há pouco mais de quatro minutos sentado de frente para quase uma centena de jornalistas presentes à sala de entrevistas na Granja Comary quando, enfim, foi questionado sobre o tema mais aguardado do dia: as recentes declarações de Neymar, que expuseram um desencontro de narrativas entre eles.
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“Mister, como o senhor recebeu os comentários de Neymar após o jogo do Santos?”, perguntou o jornalista Wellington Campos, da rádio Itatiaia. Ancelotti precisou de exato 1 minuto e 24 segundos para responder, com a característica sobrancelha esquerda arqueada, acompanhado de um sorriso amarelo, e claramente evitando um choque direto com o atacante.
“Normal [a declaração]. Eu creio que é a verdade, é uma decisão técnica que se baseia sobre muitas coisas. Vemos o que o jogador está fazendo, o que ele tem feito. Sobre o problema que ele teve: eu falo do critério físico, um critério que toda a comissão considera muito, muito importante. Disse em outra entrevista, ninguém pode discutir o Neymar a nível técnico. O que estamos vendo cada dia e a cada jogo é a sua condição física, mas não só dele, de todos os jogadores que estão aqui e todos os que estamos avaliando nesse tempo. Porque a verdade é que a seleção tem muita concorrência. Pensamos que mais ou menos há uns 70 jogadores que podem estar na Copa do Mundo”, disse o treinador.
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A fala soou a parte dos presentes como uma perfeita esquiva de um pugilista de elite, uma manobra de respeito. Em uma só tacada, o técnico confirmou a versão dada pelo atleta de ausência por “decisão técnica” no último domingo, 31, e ainda atenuou as questões físicas citadas por ele anteriormente.
Ancelotti, contudo, falou de forma implícita ao longo dos pouco mais de 26 minutos que o camisa 10 do Santos não terá vida fácil para ocupar o posto que tanto almeja desde o retorno ao país. Não faltaram recados ao jogador.
Carlo Ancelotti na entrevista de hoje pelas lentes do genial @ABattibugli, editor de fotografia e patrimônio de quem ama @placar pic.twitter.com/a1Cvrrq6Uw
— Klaus Richmond (@KlausRichmond) September 3, 2025
O primeiro deles quando foi questionado pela jornalista Raisa Simplício, integrante do programa Placar Aberto, sobre a ausência de camisas 10 no futebol brasileiro e se Estêvão poderia ocupar esta função com ele. Ancelotti abriu ainda mais o leque, elogiando o jogador do Chelsea e declarando que nomes como Raphinha, Vinicius Júnior e Gabriel Martinelli também executam com qualidade a mesma função.
“Na verdade, sim, creio que o futebol moderno perdeu um pouco esse tipo de jogador, que joga por dentro, como meia. O futebol moderno procura mais extremos fortes, rápidos… e Estêvão é esse tipo de jogador, um extremo que tem muita qualidade, mas acho que também pode jogar por dentro como estão fazendo outros extremos como Raphinha, que joga muito bem por dentro, Vinicius Júnior, que joga muito bem por dentro, Martinelli também… é o que pede agora o futebol moderno”, argumentou.
Estêvão, ao centro, é um dos ‘camisas 10’ de Ancelotti na seleção – Alexandre Battibugli/Placar
Na elogiada vitória por 2 a 0 sobre o Paraguai na última Data Fifa, o técnico ainda fez elogios a Matheus Cunha, que por diversos momentos da partida atuou como um camisa 10, enquanto Vini Jr., habitualmente o ponta esquerda, surpreendeu surgindo como falso 9.
Enquanto treinava o Real Madrid, Ancelotti chegou a declarar publicamente que foram acrescentados “movimentos sem bola” e o entendimento que é possível “jogar por dentro e por fora” ao antigo comandado, não ficando somente preso a uma faixa do campo – geralmente ao lado esquerdo do ataque.
“Ele me convenceu a mudar de posição, eu não queria. Ele me ensinou a jogar por dentro também. Em um ano, evoluí mais do que em todo o anterior”, confirmou o camisa 7 durante uma entrevista ao longo da temporada 2023/24, em que terminou com a segunda colocação na Bola de Ouro e o prêmio The Best, da Fifa, de melhor jogador do mundo. Complica ainda para Neymar a boa fase de de Lucas Paquetá, outro bastante elogiado por Ancelotti.
“Paquetá é um meio-campista que tem característica que diferente de Casemiro e Bruno. É um meia e por esso tipo de característica está muito bem no grupo. Pode jogar como “mediapunta” (meia), ou com três meio campistas. Pode ajudar em diferentes posições no campo”, avaliou o italiano.
Raphinha, do Barcelona, é outro bastante elogiado por Ancelotti – Alexandre Battibugli/Placar
O mais direto recado de Ancelotti a Neymar foi quando respondeu sobre “qual o recado que daria aos jogadores que pretendem em maio estar na lista final para a Copa do Mundo”: “creio que três coisas: uma, obviamente, é a qualidade. Todos aqui tem qualidade para estar na seleção. Disse outro dia que precisam estar 100% fisicamente e que se encaixem bem com a equipe, que joguem para equipe e não individualmente. Eu escalo jogadores que podem ter menos qualidade técnica, mas que são melhores coletivamente”, explicou o italiano, que deixou claro: não haverá Neymar dependência.
Ancelotti fez justamente o oposto de seu antecessor. Em março deste ano, pouco antes de ser demitido, Dorival Júnior foi duramente criticado por externar ter montado a seleção em volta de Neymar, que fez sua última aparição pelo país em 17 de outubro de 2023, e havia jogado naquela ocasião apenas nove partidas – com 550 minutos em campo – no mesmo recorte de tempo.
Ancelotti preteriu-o mesmo com atuando os 90 minutos em sete partidas consecutivas, alegando que o via ainda com problemas físicos.
Neymar atuou os 90 minutos da partida contra o Fluminense com uma proteção na coxa – Raul Baretta/Santos FC
A questão vai além: nas últimas três Copas do Mundo (2014, 2018 e 2022), tudo na seleção girou em torno de Neymar – com privilégios concedidos até mesmo fora de campo. Uma recente fala do ex-lateral Leonardo, que trabalhou com Neymar enquanto dirigente do Paris Saint-Germain, reforça a dificuldade nos bastidores.
“Nós tivemos nossos problemas, tivemos nossas discussões em alguns momentos bem acirradas, mas depois também tivemos uma relação de respeito porque entendemos os dois lados. Dar limite, muitas vezes, não é fácil: ‘isso pode, isso não pode. Ah, por que isso pode e isso não pode?’. É difícil, mas era necessário, principalmente dando limites onde antes algumas coisas pudessem e aí não pode mais. Aí fica mais complicado. Tirar privilégios é complicado”, disse em recente entrevista ao Charla Podcast.
Se na primeira Data Fifa a frente da seleção, em junho, Ancelotti contou ter entrado em contato direto Neymar para lhe explicar os critérios para não convocá-lo. Chamou a atenção mais recentemente o fato de o treinador ter afirmado não ter o procurado, assim como Rodrygo, alegando que ambos possuem o número de seu telefone e podem ligar para questioná-lo quando quiserem: “eu não preciso falar com eles para explicar isso. Se eles querem explicações, podem me chamar. O Rodrygo tem meu número, não sei se o Neymar tem, mas acho que sim”.
Enquanto Neymar não embala desde a volta ao Brasil, Ancelotti parece não estar disposto a abrir mão de convicções – mesmo sem um confronto direto. Há menos de um ano para a Copa, sobram riscos e dúvidas ao atacante.
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