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Leônidas e o rádio: a história do primeiro herói do Brasil em Copas

Em edição de 1998, PLACAR homenageou o craque brasileiro que encantou os franceses no Mundial de 1938 e virou ídolo nacional

Leônidas da Silva (1913-2004) foi um dos maiores jogadores brasileiros de todos os tempos. Foi também o primeiro grande herói do país em Copas do Mundo, ao encantar os franceses com sete gols e acrobacias que lhe valeram a alcunha de “homem-borracha”, durante o Mundial de 1938. O retorno ao Brasil foi um alvoroço: todos queriam chegar perto do craque do qual ouviram falar pelo rádio, a grande sensação tecnológica da época.

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Em edição de março de 1998, PLACAR convidou o escritor Edmundo Donato (1925-1999), mais conhecido pelo pseudônimo Marcos Rey, para escrever um perfil sobre seu ídolo de infância e aqueles maravilhosos dias de 1938, quando a chance do primeiro título da seleção brasileira escapou por pouco, justamente no jogo em que Leônidas foi desfalque. O blog #TBT PLACAR, que todas as quintas-feiras recupera um dos tesouros de nossos arquivos, republica este texto na íntegra, abaixo:

O primeiro herói

Na Copa de 1938, o Brasil e o mundo acompanhavam, maravilhados, o futebol de Leônidas da Silva

Marcos Rey*

O Brasil todo estava com a atenção no rádio. À palavra então mais pronunciada era estática, ruído chato, que lixava os ouvidos, e fragmentava a narração dos locutores. Mesmo nas transmissões Rio-São Paulo estava presente. E aquela vinha de Estrasburgo, França, muito mais longe, e muito mais sofrida pela ansiedade. Nas Copas anteriores, a de 1930 e a de 1934, o rádio ainda era artigo de luxo, não chegara ao povão. Mas, em 1938, geralmente em formato de igrejinha, ele já era objeto encontrado em todos os lares, talvez a primeira conquista da pobreza nacional.

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Lembro que era domingo e o Brasil enfrentava a Polônia. Foi a maior tarde do futebol brasileiro até aquela data. E maior também por causa de uma prorrogação que torturou a nação inteira. No tempo normal, 3 x 3. E a batalha prosseguiu, prejudicada pela estática da transmissão, até um suado 6 x 5. Na prorrogação um tal de Leônidas, que já fizera um gol, fez mais dois. E nascia o ídolo que enfim substituiria o lendário Arthur Friedenreich.

Ficamos sabendo, do dia para a noite, que o tal Leônidas, com 25 anos de idade, nascido no Rio de Janeiro, não era nenhum novato no esporte. Inclusive participara do selecionado de 1934, na Itália. E que jogara com sucesso no Peñarol, do Uruguai. Os paulistas concentraram-se naquele nome, a grande esperança da conquista do título, coisa tão remota nos anos 30.

Dias depois, o Brasil enfrentou a Tchecoslováquia. Eu cursava o ginásio e estaria em aula durante o jogo. O que adiantava terem colocado um rádio no pátio se não podíamos ouvir? Mas ninguém prestava atenção no professor e todos pediam licença para ir ao mictório. Até que o mestre entendeu o que a classe queria e, democraticamente, com um sorriso largo, decidiu:

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— Vamos todos ouvir o jogo.

A partida, uma tortura, terminou com um empate de 1x 1, tendo Leônidas marcado o nosso gol. Menos mal. Pelo regulamento da época, em caso de empate deveria haver novo jogo. No segundo, o time brasileiro foi constituído de suplentes, menos dois do quadro efetivo, o goleiro Válter e Leônidas. Indispensáveis.

O Brasil poupava-se para a Semifinal com a Itália, dois dias mais tarde, em Marselha. Desta vez vencemos os tchecos por 2 x 1, mais um gol de Leônidas, terminando o jogo cheios de esperança de vencer a Itália. Aliás, a imprensa internacional apontava o Brasil como um dos favoritos para vencer a Copa. Bastaria passar pela Itália. Todos os jornais europeus traziam retratos daquele que poderia garantir a nossa vitória, Leônidas, que mais parecia um homem de borracha.

Com meus 13 anos, foi o primeiro ídolo nacional que vi despontar, ser assunto para todos os papos. Meu pai, que tinha uma gráfica e encadernadora, resolveu dispensar os empregados nos dias de jogo do Brasil. Até minha mãe e minha irmã, que jamais haviam se interessado por esportes, estavam ansiosas. No dia do grande embate com a Itália amanheci febril. Íamos enfrentar a poderosa Itália de Mussolini, que ocupava a Etiópia e desafiava o mundo com 11 milhões de baionetas. Naqueles tempos, a Itália, mais que a Alemanha de Hitler, ainda não testada em conflitos bélicos, impunha respeito e temor. O que poderíamos nós contra ela, mesmo no terreno esportivo?

Os otimistas, porém, sorriam: tínhamos Leônidas. Ele vencera a Polônia e a Tchecoslováquia. A imprensa afirmava que ele era inclusive superior a Zarosi, famoso centroavante húngaro. E infinitamente melhor que Piola, italiano, que marcara perto de 500 gols. No dia do jogo uma notícia amarga começou a circular desde cedo. Leônidas não jogaria, teria se ferido no jogo contra os tchecos. Ninguém acreditou, seria azar demais. O boato aos poucos tomava formato de notícia verdadeira. No Rio, um torcedor deu um tiro de revólver no rádio ao ouvir a notícia confirmada da ausência de Leônidas no selecionado. À nação toda
ficou trêmula, cabreira. Os comentaristas, entretanto, procuravam injetar otimismo no público.

Nosso esquadrão era ótimo. Tínhamos Romeu, que o colunista Thomas Mazzoni considerava melhor que Leônidas, Tim, Patesco, Perácio, Martim e, na zaga, o grande Domingos da Guia. Mesmo sem Leônidas nossas chances eram muitas. Em casa o jogo foi ouvido pela família, sentada ao redor da mesa. O nome de Leônidas vendera milhares de rádios em poucos dias. O volume máximo.

Um choque logo de início. Os italianos abriram a contagem. Tudo pareceu perdido, mas nosso selecionado disputava todas, mostrava garra, Romeu estava ótimo, e depressa empatou. À cidade jamais ouvira tantos rojões, o céu pequeno demais para tanta fumaça. Aquele tinha a cara do gol da virada, que talvez acontecesse na prorrogação. Com a Polônia também houvera empate nos 90 minutos. Mas nos últimos lances do jogo, em nossa área, o juiz apita — era o discutido pênalti cometido por Domingos da Guia em Piola. Válter defenderia? Não. 2 x 1 para a Itália, o longo ooooh da desilusão e logo depois o fim.

Ninguém se conformava. Minha irmã, chorando, jurou que nunca mais torceria por futebol. Sofrera demais. Logo circulou a notícia de que o gol da Itália fora anulado. Pimenta, o técnico, conseguira o milagre. Um vizinho nos deu a notícia, chorando de alegria. Ouvira de uma emissora francesa. Um dos empregados do meu paí, embriagado, festejava. Mas essa falsa notícia não resistiu à luz da manhã seguinte.

Nossa partida final foi com a Hungria em disputa da 3º colocação na Copa. Leônidas jogou e fez mais dois gols, 4 x 2, num total de sete, o goleador do torneio. Sua volta ao Brasil foi triunfante. Tornara-se um dos três nomes mais populares do país, dentro e fora das fronteiras — Getúlio Vargas, Carmen Miranda e Leônidas da Silva. A publicidade viu nele um nome atraente para vender produtos. Os cigarros Leônidas foram lançados com grande estardalhaço pela companhia Sudan, de Sabado D’Angelo, uma das fábricas mais importantes do país. E até hoje existe o chocolate Diamante Negro, da Lacta. Pela primeira vez o nome de um chocolate, não do fabricante, puxava as vendas. Duas empresas paulistas capitalizando o êxito de Leônidas. Sabe-se que em nenhum dos dois casos ele faturara alto. À fama ainda não estipulara seu preço e muita coisa ficava por conta da homenagem.

No regresso, Leônidas assinou novo contrato com o Flamengo, ganhando 80 contos de réis por um ano de contrato. Comprou um carro por 3 contos e mudou de status, mas o que recebia era pouco em comparação com qualquer ídolo esportivo de hoje. Sua fama não desacelerou no regresso. Logo receberia novo empurrão: a bicicleta. Nada mais fotogênico do que Leônidas boiando no espaço com o chute armado. Gol de bicicleta, só o homem de borracha, o Diamante Negro, era capaz disso. Bastava abrir um jornal e lá estava o sorridente da Silva, voando. Apenas os beijos de Mima Loy e William Povell tinham comparável exposição na imprensa. Testemunhei gente dizendo: “Vi Leônidas marcar um gol de bicicleta, agora morrerei feliz”. Pensaram se já existisse televisão?

Em 1942 a vida do grande craque começou nova etapa: transferiu-se para São Paulo, e justamente para o São Paulo Futebol Clube, meu quadro, e que não estava indo nada bem. À notícia explodiu nas manchetes. O Diamante ganhou 200 000 cruzeiros pela transferência. Lembro-me do espanto que essa quantia causava. Um jogador de futebol ganhando tanto, um escândalo! Mas era apenas quanto custava uma residência razoável, num bairro de classe média. Acontece que o amadorismo não estava tão longe assim, quando os jogadores, mesmo os geniais, recebiam apenas presentes e aperto de mão das autoridades.

A chegada de Leônidas a São Paulo, em 10 de abril de 1942, foi uma festa. Dez mil torcedores compareceram à estação do Norte. O locutor são-paulino Geraldo José de Almeida estava enlouquecido. Tirávamos jogador da capital federal, logo quem. Poucas vezes os paulistanos mostraram-se tão vaidosos. Houve grandes festas na recepção do ídolo, uma delas liderada pelo cantor Sílvio Caldas, que em breve também se mudaria para São Paulo. Graças a Leônidas, o futebol conquistava sua maioridade em São Paulo.

Leônidas dando uma bicicleta, jogada que virou sua marca registrada -
Leônidas dando uma bicicleta, jogada que virou sua marca registrada –

Precipitadamente, o craque foi escalado para jogar contra o Corinthians. Sem nenhuma adaptação. Deu empate, 3 x 3, e muita chacota. Uma delas: Brandão, centro-médio corintiano, foi preso; estava com um diamante no bolso. No segundo jogo o São Paulo perdeu para o Palmeiras, 2 x 1, mas esse um de bicicleta, do Leônidas, claro, e ninguém comentou a derrota. São Paulo ganhou de 1 x 2, uma inovação na história da contagem. O resto foi uma enxurrada de vitórias e alguns campeonatos.

No dia 24 de dezembro de 1950, num sábado à noite, no Estádio do Pacaembu, aconteceu a despedida oficial de Leônidas da Silva. Dizia-se que jamais surgiria um jogador igual, impossível. Disseram o mesmo quando Fried aposentou-se. Por maior que seja um esportista ou artista, um dia ele vira páginas de arquivo, lembranças esparsas. No caso do Diamante Negro, sua recordação mais sólida é de chocolate. Frequentei durante muito tempo o bar Pandoro, nos Jardins, em São Paulo, aos sábados, pela manhã, onde Leônidas, já com mais de 70, ia com igual constância. Nunca conversamos, mas gostava de observá-lo da minha mesa e relembrar seus feitos.

O mundo todo o admirara. Às vezes, alguém parecia reconhecê-lo, olhava-o por um instante, e afastava-se. Raros vi aproximarem-se com a mão espalmada. Para a maioria dos fregueses, porém, tratava-se apenas de um homem idoso. A um amigo muito mais jovem que me acompanhava, comentei:

— Ai está Leônidas e ninguém se lembra dele. É injusto.

— Também acho. Mas o que foi mesmo que ele fez?

  • Marcos Rey, 73 anos, é autor dos livros Memórias de um Gigolô e O Mistério de Cinco Estrelas, entre outros
Leônidas, Friedenreich e Pelé: três gênios do futebol brasileiro -
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