Como PLACAR cobriu o drama de Ronaldo antes de reviravolta fenomenal
Em 2000, reportagem acompanhou a cirurgia e a recuperação do atacante, que lesionara o joelho pela segunda vez; naquele momento, o penta não passava de um devaneio
Neymar enfrenta neste momento um duríssimo período de recuperação da lesão mais grave de sua carreira, o rompimento do ligamento cruzado anterior (LCA) e menisco do joelho direito. A situação lembra bastante a vivida pelo principal jogador do país na geração passada. Em abril de 2000, Ronaldo – então Ronaldinho – lesionou o joelho pela segunda vez. PLACAR acompanhou a cirurgia e o drama vivido por milhões de brasileiros, que se perguntavam: nosso craque conseguiria retornar? Sim, conseguiu, como se sabe, e o resto é história.
O blog #TBT PLACAR, que todas as quintas-feiras recupera um tesouro de nossos 53 anos de arquivos, reproduz abaixo, na íntegra, a reportagem especial sobre o drama do Fenômeno, que anos depois se tornaria o herói do pentacampeonato na Copa do Mundo do Japão e da Coreia do Sul; confira abaixo:
TEM VOLTA
Por Fernando Eichenberg, de Paris, e Arnaldo Ribeiro
Aconteceu no Estádio Olímpico de Roma, em Tóquio, Corumbá, Toronto e Bombaim. Alguns viram ao vivo, outros em videoteipe, muitos apenas nos noticiários da noite. Podia-se gostar, odiar, torcer, abominar ou até desprezar o personagem. O fato é que todos reagiram de um jeito muito igual. Mãos na cabeça, olhos vidrados e frases como “coitado”, “que coisa horrível”, “Nossa Senhora”. A cena de Ronaldinho desabando no gramado não permitia indiferença. A vítima agonizou, a compaixão foi mundial. PLACAR interrogou médicos franceses e brasileiros, vasculhou pesquisas e estudos. Descobriu que as chances de Ronaldinho ser de novo Ronaldinho são de 50%
Na noite da quinta-feira, 13 de abril, quando despertou no seu leito do quarto 739, no Hospital Pitié-Salpêtrière, após uma cirurgia de duas horas e ainda atordoado pela anestesia geral, Ronaldinho deve ter se perguntado se não havia retornado no tempo. Ele encenava o replay do que vivera 20 semanas antes: foi operado na mesma sala do hospital parisiense, pelo mesmo médico, por causa de uma ruptura do mesmo tendão do joelho direito. Dessa vez, no entanto, a lesão fora mais grave. A cirurgia de 30 de novembro do ano passado reparara uma ruptura parcial do tendão. Agora, a ruptura era total.
Na sexta-feira, 14 de abril, diante de uma curiosa imprensa internacional, o médico Gérard Saillant foi dubitativo na conclusão: “Ninguém honesto poderá dizer, hoje, que Ronaldo nunca mais poderá jogar futebol, nem que voltará a jogar a 100%.” Antes mesmo disso, os palpites já se multiplicavam, a começar pelo médico da Lazio, Andrea Campi, minutos depois de socorrer Ronaldinho no Estádio Olímpico de Roma: “Lamentavelmente, estou convencido de que as chances de ele jogar futebol de novo são de apenas 50%.” E nem precisava ser médico para dar pitaco no joelho do Fenômeno. “Todo mundo agora é especialista em tendão, em como recuperar joelho. Seu país é assim?” queixou-se o assediado Saillant ao fisioterapeuta do jogador, Nílton Petrone, o Filé.
Não, nem todo mundo é especialista em joelho; ao contrário. Dois argumentos principais são usados para evitar uma previsão sobre as chances de Ronaldo:
1. Cada caso é um caso e não dá para saber como será a recuperação, e
2. Só os médicos que operaram Ronaldinho podem saber como ele está.
Mas eles não são inteiramente verdadeiros, porque…
1. Sim, cada caso é um caso, mas os ortopedistas dispõem de estatísticas sobre casos parecidos com o do brasileiro, que permitem fazer um prognóstico razoável.
2. Nem os médicos que operaram Ronaldinho podem saber, em seu estado atual, como será a evolução da recuperação, que depende de muitos fatores.
Mas é possível encontrar pistas do que Ronaldo terá pela frente na literatura especializada – que inclui obras do próprio Gérard Saillant. Dois estudos franceses debatidos em dois congressos de traumatologia – na Martinica, em 1989; e em Munique, em 1995 – revelaram resultados semelhantes: numa segunda cirurgia, 50% dos atletas operados de uma ruptura total do tendão patelar retomaram a atividade esportiva no mesmo nível anterior.
Um livro organizado por Saillant em 1992, com diversos artigos sobre lesões em atletas, traz outro número. Nele figura uma pesquisa com 142 joelhos operados de tendinites. 95% dos operados puderam retomar a atividade esportiva; destes, 77,5% no mesmo nível de antes. Mas, quando o tendão é operado pela segunda vez, nota-se uma inversão de expectativa: 72% obtiveram um resultado “médio” e “ruim”, e 26%, “bom” e “excelente”. Tendinite não é o mesmo que rompimento do tendão. Mas é bom não esquecer que a origem do problema de Ronaldo foi uma tendinite.
Para piorar, o caso de Ronaldinho é raro no futebol. A ruptura do tendão patelar é característica de esportes de impulsão, como basquete, vôlei, salto em altura ou em distância. “Em dez anos como médico do Paris Saint-Germain, nunca vi uma”, testemunha Alain Simon, hoje atendendo na Clínica do Esporte, em Paris. Outro especialista em joelho, o médico da seleção brasileira e do Corinthians, Joaquim Grava, viu apenas três casos de rompimento total em 22 anos de medicina.
Grava faz uma ressalva à recente cirurgia feita por Saillant – reconstruiu o tendão rompido e reforçou-o com ajuda do tendão de cima, o quadricipital, que liga o fêmur ao joelho. Grava costuma usar enxertos artificiais – fios de aço – para reforçar o tendão. O fisioterapeuta Nivaldo Baldo também tem uma restrição à técnica do francês: “Mexer no ligamento bom (o quadricipital) de um joelho reconhecidamente problemático não era o mais adequado”, afirma.
“Apesar de todo o sofrimento, eu acho que a natureza foi boa com o Ronaldo. Essa ruptura permite que se possa reposicionar a patela (rótula) dele e curar o problema de vez; se ela não acontecesse, ele poderia continuar sofrendo com as tendinites”, pondera Grava.
Mesmo que isso se verifique, resta o problema do joelho esquerdo, que também apresenta um quadro de tendinite crônica. Segundo Saillant, Ronaldinho não tem mais dor no local atualmente, mas isso provavelmente só ocorre porque o joelho esquerdo pode descansar no longo período de recuperação entre a cirurgia de novembro do ano passado e a do último dia 13.
Saillant atribuiu a lesão a uma fragilidade natural dos tendões do jogador e à especificidade de seus movimentos. “Todo mundo tem seu ponto fraco, e o dele são os tendões. Acrescente-se a isso seu estilo de jogo. É um jogador explosivo, de muita velocidade”, sustenta.Em fevereiro de 1996, na Holanda, Ronaldinho sofreu a primeira cirurgia no joelho direito, originada pela doença de Osgood-Schlatter, uma má-formação na fase de crescimento. Nessa intervenção, foram retirados fragmentos de cartilagem que grudaram no tendão patelar. A doença de curioso nome não tem relação direta com o estado atual do jogador, mas, segundo Alain Simon, pode ter influído indiretamente. “A Osgood-Schlatter é curada totalmente com tratamento e repouso. Mas aos 14 ou 15 anos, Ronaldo provavelmente continuou a jogar de forma intensa, e, quando mais tarde foi necessária a cirurgia, talvez tenha propiciado uma fragilização do tendão”, supõe.
Joaquim Grava tem outra opinião. Ele conta que Ronaldo sofre com tendinites nos dois joelhos desde os 18 anos porque seus joelhos não têm o posicionamento correto. Mas acha balela a história de que a transformação de menino franzino em atleta musculoso tenha a ver com o problema. “O Ronaldo é bem dotado fisicamente desde os 15 anos”, atesta o coordenador-técnico da CBF, Marcos Moura Teixeira, que acompanha Ronaldinho desde 1992, nas seleções brasileiras de base.
Nem todos os especialistas, porém, concordam com essa tese de “fragilidade natural” dos tendões de Ronaldinho. Num artigo intitulado “Ronaldo: uma recaída previsível”, publicado no jornal Le Figaro, o traumatologista Jean-Pierre Mondenard, com 28 livros sobre medicina esportiva no currículo, insinua que a segunda ruptura do tendão do jogador foi causada por precedentes infiltrações de corticoides, prática arquicondenada no meio médico.
Se injetados no joelho, os corticoides rapidamente desgastam os tendões, agravando o problema. Se ingeridos (como comprimido), tiram a dor, mas só mascaram o problema. Nesse aspecto, é famoso o caso de Garrincha, que tomou infiltrações no auge da carreira e nunca mais foi o mesmo.
“Os corticoides fragilizam o tecido conjuntivo. É eficaz porque esconde, mascara a dor”, confirmou Alain Simon, sem, no entanto, se referir ao caso de Ronaldo. “Às vezes há pressão, cobrança pelo fato de o atleta não jogar, e mete-se a seringa de cortisona”, acrescenta Mondenard, sem, porém, acusar diretamente os médicos de Ronaldinho.
José Luiz Runco, outro médico da seleção, afirma que Ronaldo assegurou-lhe nunca ter tomado uma infiltração no joelho, mas é inegável que ingeriu um sem-número de comprimidos de Voltaren (antiinflamatório e analgésico usado para tendinites), sobretudo durante a Copa do Mundo de 1998. Anestesiados e tensos, os ligamentos e tendões dos joelhos do craque ficaram expostos às lesões.
Mondenard reprova também nesse caso o uso do Voltaren. Alain Simon é mais indulgente: “O Voltaren, por ser um antiinflamatório não-esteroidal, não é tão nocivo.” Nílton Petrone, o Filé, afirma que o jogador não sofreu infiltrações nem tomou Voltaren. “Pelo menos não que eu tenha conhecimento”, ressalva.
A data de retorno de Ronaldo à competição, quatro meses e meio depois da cirurgia de 30 de novembro, foi outro gerador de polêmica. O próprio Saillant reconhece as dificuldades da decisão. “É preciso saber que a passagem do período medicado ao não-medicado é frequentemente difícil de negociar. Um bom resultado passa por um bom diálogo entre o cirurgião, o atleta, o treinador e o preparador físico, sem esquecer o dirigente esportivo”, escreveu na introdução de um de seus livros. No caso de Ronaldinho, poderiam ser acrescentados a essa lista os patrocinadores.
Considerada uma das melhores especialistas em medicina esportiva de joelho da França, a doutora Elisabeth Brunet-Guedj, do Hospital Édouard-Herriot, de Lyon, considera seis meses o tempo médio para a volta aos treinos depois de uma primeira operação. “Após uma segunda cirurgia, o período é maior”, aponta. Saillant estima, hoje, entre sete e oito meses o período para que Ronaldo volte a jogar.
As pressões externas sobre o atleta são evocadas tanto por Alain Simon como Jean-Pierre Mondenard. “Fui médico de clube, e muitos dirigentes não entendem quando você diz que o atleta terá de ficar meses sem jogar, principalmente quando os salários são enormes. Há os patrocinadores que querem espetáculo, o treinador que exige resultados, o dirigente que paga os jogadores. Diria que agora ele deveria esperar um ano para voltar”, diz Simon. Na opinião de Mondenard, o jogador deveria ter retomado a atividade em partidas menos importantes.
Nivaldo Baldo não tem dúvida de que Ronaldo voltou antes do tempo. “Ele retornou claudicando. Qualquer especialista percebe que ele se apoiava na perna esquerda”, diz. Baldo não concorda também com os exercícios durante o período de recuperação, que devem ser repetidos agora. Ele os rotula como “exercícios provocativos” ao joelho. “São exercícios na caixa de areia, na cama elástica e sentado na bicicleta.” Ronaldo fez tudo isso sob a supervisão de Nílton Petrone, o Filé. “É natural que as pessoas culpem os envolvidos, mas estou tranquilo. Todas as etapas do meu trabalho foram supervisionadas pelos doutores Saillant e Piero Volpi, médico da Inter”, rebate Filé.
Enquanto isso, na superacademia de ginástica que montou no andar de cima de sua casa, na Via Pinerolo, em Milão, Ronaldo segue à risca o programa de reeducação elaborado pela equipe médica. Tudo para em 2001 estar incluído na parte saudável dos 50% das vacilantes estatísticas médicas.
O joelho da discórdia
O caso Ronaldinho ressuscitou, entre jornalistas, torcedores e até autoridades médicas, um mal que assola a humanidade desde que o mundo é mundo: o “achismo”. De uma hora para a outra, todo mundo passou a “achar” alguma coisa sobre o que aconteceu com o Fenômeno. Mais que isso: todo mundo se sentiu na obrigação de achar. Pior: todo mundo passou, também, a acusar. Acusar os médicos, a Inter, a Nike ou quem quer que seja de precipitação. Outros, ao contrário, garantiam que todo mundo era inocente. Isso sem que nenhum desses achistas – jornalistas, torcedores, médicos brasileiros – tivesse convivido nem íntima nem ultimamente com Ronaldo. Ou, ao menos, estado presente no estádio na hora do drama.
Na mesma tarde, uma rede de televisão anunciou, para aquela noite, uma mesa-redonda especial só para debater o caso Ronaldo. Fiquei pensando, como jornalista e como telespectador, o que aquilo poderia acrescentar. Debater o quê? Os presentes, àquela altura, deveriam saber tanto quanto nós, que, atônitos, acompanhamos a sequência dos fatos diante da TV. Mesa-redonda àquela altura, sem Ronaldo, Filé ou algum membro da equipe médica que o acompanhou, não valeria de nada.
O que se viu, a partir dali, foi uma avalanche de gente querendo aparecer, dando palpites, que iam sobre o funcionamento de um joelho até as implicações da grana que o mundo do futebol envolve. Tudo em um mesmo pacote. Raros foram os colunistas que, baseados em suas fontes, procuraram justificar suas teses descrevendo fatos e argumentos coletados no dia-a-dia. Como podem tantos médicos aparecerem dando seus diagnósticos sobre o futuro do jogador, positivos ou negativos, se, como qualquer mecânico de automóveis, eles sabem que “cada caso é um caso”, e que não é prudente ficar analisando problemas de gente que eles nunca examinaram? Como podem tantos jornalistas compararem o caso dele com os de Reinaldo, Zico e outros? Ronaldo pode ter sido vítima da fama, mas não foi a única. Tem muita gente, por aí, vendendo credibilidade em troca de cinco minutinhos dessa mesma mercadoria.
Celso Unzelte
Brasileiros de fora
Um misto de inconformismo, revolta, inveja, ciúmes e palpites tomou conta de médicos, fisioterapeutas e preparadores físicos brasileiros após o desastre ocorrido com Ronaldo. Talvez por ter sido um jogador que construiu a sua carreira no exterior, criou-se uma barreira quase intransponível entre o craque e as pessoas que transitam em torno do futebol no seu país de origem. Mesmo sendo considerado um patrimônio nacional, nem a cúpula da CBF consegue interferir no tratamento a que ele foi, está sendo e será submetido.
Cheio de dedos, o técnico Wanderley Luxemburgo, da seleção, sugeriu recentemente aos dirigentes da Internazionale que aceitassem a participação do coordenador-técnico, preparador físico e fisiologista Marcos Moura Teixeira no programa de reabilitação de Ronaldo. Após ouvir um não, Teixeira, resignou-se: “ O jogador não é da CBF, é da Inter. Não posso me intrometer, apenas me colocar à disposição”. Hoje, a CBF só fica sabendo do que ocorre com Ronaldo por intermédio de Filé.
Entre os especialistas de joelho no Brasil a frustração é a mesma. Ronaldo não é paciente deles. Se fosse, garantem, poderia não estar vivendo esse novo calvário. ”Não pretendo criticar o doutor Gérard Saillant, mas o Brasil tem ótimos médicos de joelho e também ótimos fisioterapeutas”, afirma Moisés Cohen, chefe do centro Traumatologia do Esporte da Universidade de São Paulo e um dos mais respeitados cirurgiões do país. O que mais irrita a classe médico-esportiva brasileira é a falta de informação sobre o histórico do atleta.
”Faltam os relatórios da primeira, da segunda e da terceira cirurgias; hoje em dia, toda operação de joelho é filmada, documentada e fica à disposição de todos para auxiliar no tratamento”, reclama o fisioterapeuta Nivaldo Baldo, autor da máxima: “joelho operado fica melhor ou pior; igual, nunca.”
Mais do que voltar ou não ao futebol, o grande temor, de fato, é: em que condições Ronaldo vai voltar? A resposta é quase unânime entre os brasileiros: dificilmente ele voltará a ser o mesmo jogador, de arrancadas e dribles em direção do gol. ”Ele deve ter uma performance menor e uma mudança instintiva no estilo de jogo”, prevê Moisés Cohen. “Alguns movimentos característicos dele, como as freadas buscas e a mudança de direção ficarão comprometidos”, avisa José Ricardo Pécora, ortopedista e médico-assistente do grupo de joelho do Hospital das Clínicas.
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