Ano 2000 terminou com queda do alambrado de São Januário e final suspensa
Decisão da Copa João Havelange de 2000, entre Vasco e São Caetano, teve que ser remarcada para janeiro de 2001 em razão de grave acidente; relembre
O tão aguardado ano 2000, iniciado sob temor do bug do milênio, terminou de forma caótica no Brasil em razão do futebol. Uma questão judicial relacionada à escalação irregular do atacante Sandro Hiroshi, do São Paulo, em 1999, fez com que o Campeonato Brasileiro daquele ano não fosse organizado pela CBF, mas pelo Clube dos 13, sob o nome de Copa João Havelange. Com 116 clubes divididos em quatro módulos, a competição terminou com título do Vasco da Gama, já no ano de 2001, após uma tragédia em uma das finais diante do São Caetano em São Januário.
Em 30 de dezembro de 2000, o Vasco e São Caetano fariam estádio cruzmaltino o segundo e último jogo da final, depois de vitória da equipe carioca por 4 a 2 no Parque Antárctica (atual Allianz Parque), por 4 a 2. Aquele foi o ano mais goleador da carreira de Romário, eleito Bola de Ouro da PLACAR, que terminaria a temporada com 73 gols em 73 jogos. O Baixinho, porém, seria o protagonista indireto da queda do alambrado de São Januário que deixou mais de uma centena de feridos.
A reportagem de PLACAR estava presenta à decisão e narrou os fatos na edição de janeiro de 2000. Aos 23 minutos do primeiro tempo da partida, uma briga entre integrantes da torcida organizada Força Jovem (uns criticando e outros elogiando Romário, que deixava o campo lesionado por um túnel em frente à torcida organizada), fez com o que o alambrado cedesse e centenas de torcedores fossem pisoteados. O principal motivo do acidente foi o excesso do limite da capacidade do estádio (leia mais detalhes abaixo).
Histórico dirigente vascaíno, Eurico Miranda entrou em campo e insistiu que o jogo fosse retomado, mas o governo do Rio de Janeiro ordenou pela suspensão da partida e interdição de São Januário. O título só seria definido em 18 de janeiro de 2001, no Maracanã, com vitória por 3 a 1 do Vasco, com gols de Juninho Pernambucano, Jorginho Paulista e Romário. Na ocasião, o Vasco jogou com o logo do SBT estampado, por ordem de Eurico, como resposta à cobertura da TV Globo na tragédia.
O blog #TBT PLACAR, que toda quinta-feira relembra um tesouro de nossos arquivos, reproduz na íntegra o texto de Arnaldo Ribeiro sobre o acidente em São Januário.
A casa caiu
Torneio que nasce torto nunca endireita. A confusão na final entre Vasco e São Caetano simbolizou tudo o que precisa mudar
Arnaldo Ribeiro
Por 23 minutos, Vasco e São Caetano conseguiram sepultar a imagem de que a Copa João Havelange foi um fracasso completo, em todos os sentidos. Estádio cheio, jogo emocionante. O volante Claudecir comandando um inacreditavelmente abusado time do ABC paulista que veio da segunda divisão, diante do assustado, mas igualmente motivado, time de estrelas do Vasco. Bola na trave de Hélton, Romário sai machucado. Emoções dignas de uma emocionante final.
Até que… bem, vocês sabem o que aconteceu. Uma briga na Força Jovem (uns criticando e outros elogiando Romário, que deixava o campo por um túnel em frente à torcida organizada), o tumulto, o alambrado rompido e as pessoas, esmagadas, despencando no gramado. Mais de 200 feridos, muitas fraturas, três em estado grave. Uma tragédia. A torcida literalmente veio abaixo, e com ela a última esperança de um desfecho decente para um torneio errado desde o começo.
Mas os cartolas do futebol brasileiro não se abalaram com o sofrimento desses torcedores. Enquanto estes eram levados de maca para as ambulâncias e helicópteros do Corpo de Bombeiros, os dirigentes de Vasco, São Caetano, da federação estadual do Rio e do Clube dos 13 discutiam o prosseguimento do jogo. Sem alambrado, sem segurança, sem clima.
Os jogadores, meros fantoches, aguardavam tudo quietos. No cenário, que se tornou tragicômico, reinava o deputado federal Eurico Miranda, que assume este mês a presidência do Vasco. Um sujeito que se considera acima da lei em “seu” território, São Januário. Depois de limpar o gramado pessoalmente, empapado de suor, ele proclamou: “Vamos recomeçar o jogo.” E todos obedeceram. O comando da polícia era a favor: o cancelamento do jogo traria consequências imprevisíveis em relação ao comportamento da massa.
Instantes depois, o coronel Paulo Gomes, comandante do Corpo de Bombeiros, que havia acatado as ordens de Eurico, comunicava constrangido que o governador Anthony Garotinho telefonou, determinando que a partida fosse encerrada.
“É melhor adiar um jogo do que perder uma vida. Imagine o que faria uma torcida enfurecida caso o São Caetano fizesse um gol”, afirmou o governador (que havia oferecido o Maracanã ao Vasco, antes de fechá-lo para reforma). De fato, ninguém sabia qual seria a reação do povo, fosse dando prosseguimento ao jogo, fosse mandando todo mundo de volta para casa.
“Incompetente, frouxo, imbecil.” Esse era Eurico Miranda vituperando contra Garotinho. “Quando o poder público entra no esporte só se atrapalha.” Esse é Eduardo Vianna, o Caixa D”Água, presidente da federação estadual do Rio. Como se tivessem exemplos a dar. Já esquecido das centenas de feridos (em respeito aos quais certo comedimento era recomendável), Eurico ordenou que seus jogadores, inclusive o cambaleante Romário, voltassem ao gramado, surrupiassem a taça na beira do campo e dessem a volta olímpica. “Vai, Romário!”, ordenou. E o baixinho, manquitolando, foi. Eurico já havia mandado também que começasse o foguetório. Com o estádio praticamente vazio, os vascaínos deram meia volta-olímpica e, envergonhados, se retiraram. “Eurico, Eurico!”, gritavam os remanescentes.
Leia mais: Sibéria, SBT na Globo e outros momentos marcantes de Eurico Miranda
“O Vasco é o legítimo campeão. Tem todos os méritos. Como o 0 x 0 era nosso e o jogo acabou, nada mais natural que a volta olímpica”, disse. Enquanto isso, a poucos metros, o vice-presidente do São Caetano, Luiz de Paula, tentava entrar no clima: “Se ele (Eurico) diz que o Vasco é campeão, o São Caetano se contenta com o vice. Vamos comemorar do mesmo jeito.” Patético final, momento do qual os bons vascaínos certamente não se orgulharão. Os mais neutros, como Caixa D”Água, ponderavam que o mais sensato seriam proclamar os dois times campeões, por falta de datas para um novo jogo. Enquanto isso, todos procuravam algum bendito representante do Clube dos 13, o responsável pela organização do campeonato pela primeira vez. Incompetência total. Irresponsabilidade. Descaso. Mustafá Contursi, presidente do Palmeiras e vice do Clube dos 13, sumiu na multidão.
O pesadelo de São Januário pode servir como verdadeiro livro de regras de como não agir em situação de descontrole de multidões. Aparentemente, não havia qualquer plano de contingência, nem uma brigada de socorro. Só meia hora depois do empurra-empurra foram tomadas providências básicas previstas em qualquer manual, como a formação de um cordão de isolamento e a delimitação de uma área para helicópteros de resgate.
Infelizmente, a tragédia poderia, e pode ocorrer, em quase todos os estádios brasileiros, verdadeiras armadilhas para seres humanos. Os alambrados altíssimos e pontiagudos que impedem invasões de campo são os mesmos que matam, quando os torcedores tentam fugir da debandada. Na Inglaterra, foram abolidos depois da tragédia de Sheffield, em 1989 (95 mortos, mais de 400 feridos), num jogo entre Liverpool e Nottingham Forest.
Lá, também, todas as arquibancadas têm que ter assentos ” torcedores de pé são um enorme fator de risco: difíceis de controlar e sujeitos a corre-corres de consequências imprevisíveis. Além disso, fica impossível saber ao certo quantas pessoas se encontram no estádio. É o item número um de qualquer manual de segurança: como assegurar a integridade física dos torcedores quando nem ao menos se sabe quantos estão no estádio?
E certamente havia em São Januário mais que as 33 000 pessoas que esgotaram os ingressos – é duvidoso, aliás, se o estádio do Vasco pode comportar 33 000 pessoas. PLACAR presenciou, antes do jogo, inúmeras pessoas dando a brasileiríssima, e absurda, carteirada, para entrar sem passar pelas catracas e contribuir para a superlotação. Nesse caso, de quem é a responsabilidade? Do dono do estádio. E quem se considera o dono de São Januário?
A história do futebol brasileiro não dá nenhum motivo para ter esperança de que o incidente de 30 de dezembro seja o ponto de partida para mudanças, tal como ocorreu na Inglaterra. De tempos em tempos, casos assim se repetem, e são esquecidos rapidamente. Quem ainda se lembra do desabamento da arquibancada da Vila Belmiro, que feriu centenas de pessoas num Santos x Corinthians do distante 1964? Quem foi punido pela queda de dezenas de torcedores (quatro mortos) da arquibancada do Maracanã, no Flamengo x Botafogo decisivo de 1992?
O fim dos alambrados, a proibição de arquibancadas sem assentos nos estádios brasileiros, a obrigatoriedade de brigadas de segurança, com planos de emergência definidos (como a legislação exige para os cinemas) são providências que dependem apenas da vontade de dirigentes e legisladores sérios. Coisa que a Copa João Havelange 2000, com sua decisão esdrúxula, provou que não temos.
O estrago do São Caê no mercado financeiro
André Fontenelle e Sérgio Xavier Filho
Você que se acha o máximo porque ganhou 100 reais no bolão do Brasileirão com os amigos, desculpe, mas é peixe pequeno. No mercado financeiro de São Paulo e Rio, nas horas livres entre uma e outra transação milionária, centenas de operadores se divertem especulando, com dinheiro de verdade, e muito (às vezes 100 mil reais, ou mais), sobre as chances dos times no Brasileirão.
Esse mercado paralelo funciona nos moldes do mercado financeiro “de verdade”: operadores oferecem compra e venda de “opções” dos times participantes da João Havelange, assim como fariam com títulos da dívida externa ou papéis do mesmo gênero. O requinte é que um operador que esteja com um time “micado” na mão – que tenha comprado 1 000 reais de Corinthians, por exemplo – pode se desfazer de suas opções antes do final do campeonato, desde, claro, que encontre um comprador.
Outro exemplo: quem comprou Goiás a 7 reais no início do campeonato viu o time de Dill se valorizar, à medida que subiam suas chances de ser campeão. A cotação da equipe é regulada espontaneamente pela lei da oferta e da procura. O felizardo pode revender sua opção antes do fim da competição, realizando um belo lucro, ou esperar um pouco mais, confiando nas chances de ver o time campeão. Se o Goiás é eliminado e ele está com as opções na mão, não ganha um centavo. Mas se o Goiás é campeão, ele recebe 100 reais para cada lote de Goiás que possuir.
De manhã cedo, na hora do almoço ou no fim da tarde, ouvem-se nas salas das corretoras estranhos diálogos: “Você abre um spread pra Vasco?” “Abro.” “Quanto?” “25 e 30.” “Faço igual. Compro no seu preço. Trinta lotes?” “Fechado.” No caso, um operador comprou 900 reais de Vasco.
As histórias reais dos maus negócios (e bons ao mesmo tempo, já que negócio ruim para um necessariamente é bom para outro) se espalham rapidamente. Como a do corretor que vendeu Brasil na véspera da final da Copa da França e comprou um Audi com o dinheiro ” se tivesse esperado o jogo, teria perdido tudo. Ou a dos corretores paulistanos que venderam mil opções de São Caetano a 0,70 real e tiveram que recomprar tudo às pressas, quando o Azulão já estava valendo 30 reais.
É que o título brasileiro do São Caetano os obrigaria a pagar 100 mil reais a quem comprou os lotes. Recomprando a 30, pagaram “só” 30 mil. Tiveram que assumir um prejuízo de 29 300 reais, mas evitaram um de 100 mil ” o que pode representar mais de um ano de salário desses corretores. Não pagar é impensável: as transações se baseiam na confiança, vale a palavra. Se alguém não paga, fica queimado no mundo dos negócios.
Esse mercado, surgido em meados da década de 90, é uma válvula de escape para os operadores, acostumados a lidar com coisas menos empolgantes, como títulos e previsões de taxa de juros. Mas a brincadeira acaba virando fonte de estresse. Os mais fanáticos mantêm no computador planilhas detalhadas com cotações dos times. E, claro, todos acabam acompanhando o Brasileirão com muito mais interesse que você, torcedor durango. “O cara torce pelo time que ele comprou mais que pelo time dele”, diz um corretor.
Miragem azul
O São Caetano garante que veio para ficar. Mas nada indica que ele possa superar o destino efêmero dos bragantinos da vida
Qualquer semelhança… Um time desconhecido começa a crescer, roubar pontos dos grandes, conquistar a simpatia dos torcedores dos outros times, disputar títulos… Foi assim em 1986, quando a Inter de Limeira desbancou o Palmeiras e levantou o Paulistão. Foi assim no início da década de 90, quando o Bragantino também venceu o Paulista e foi vice no Brasileiro. Mas, sem uma estrutura sólida, os dois clubes praticamente desapareceram quando perderam o apoio dos que os mantinham. A vez é do São Caetano. Em três anos, saiu da Terceirona paulista para a final do Brasileiro. Como os antecessores, o Azulão teve ascensão meteórica, mas não tem tradição de títulos nem grande torcida. Se despencar, ninguém segura.
O principal sustentáculo do São Caetano atende pelo nome de Luiz Tortorello, reeleito prefeito (PTB) da cidade do ABC paulista em 2000. Com um bom empurrão do sucesso do time, teve 78% dos votos. Foi durante seu primeiro mandato, em 1989, que a Associação Desportiva São Caetano foi criada por Jaime, seu irmão. Quando Tortorello deixou o cargo, em 1992, o time mergulhou num breve ostracismo e só foi se reerguer em 1997. Adivinhe? Quando o patrono reassumiu o município.
Ninguém no São Caetano assume que o poder público banca o futebol profissional do clube. “A prefeitura só nos ajuda com a cessão do estádio e com o transporte”, faz questão de dizer o atual presidente do clube, Nairo Ferreira de Souza.Mas não há como negar que é a prefeitura que sustenta as categorias de base. Esse é o ponto crucial do Projeto São Caetano. Formar craques em casa, para usufruto e venda. Uma nova safra será lançada em breve: Zenga, Fabinho, William, Clodoaldo, Djalminha e outros menos cotados. Mas e quando Tortorello sair? Vai tudo por água abaixo? “O futuro a Deus pertence, mas ainda bem que o mandato dele está só se iniciando”, afirma o supervisor Carlinhos Baptista. O presidente Nairo de Souza se transforma quando alguém cogita o fim do sonho. “Não somos o Bragantino. O São Caetano veio para ficar.”
Pois vejamos. Além da prefeitura, faz parte do alicerce do São Caetano a Datha Representações. A empresa entrou no clube junto com Tortorello e Nairo, em 1997, e é a responsável pela intermediação de todos os contratos publicitários. Um de seus proprietários, José Carlos Molina, é membro da diretoria do São Caetano e passou a representar alguns dos jogadores, como o lateral César e o volante Claudecir. Foi a Datha que atraiu a Consul para patrocinar o time. Segundo Nairo, o acordo rende 150 mil reais mensais. As outras receitas provêm dos sócios (cerca de 37 mil reais mensais), das cotas da TV (que saltaram de 4 mil para 150 mil reais ao longo do Brasileiro), das placas no estádio e de um bingo.
Em campo, a base do time sobreviveu a duas temporadas de decepções, em 1997 e 1999, quando fez grandes campanhas, mas morreu na praia. Jair Picerni assumiu o time no início de 2000. Não pediu reforços. Mudou o time com o que já estava por lá. Dos titulares, sobraram Sílvio e Daniel. César e o artilheiro Adhemar, que amargou dois anos e meio no banco, entraram para não sair mais. “Mexi muito na parte psicológica. Todo mundo dizia que o time iria amarelar novamente”, afirma Jair.
O sucesso foi conseqüência. Este ano o time vai disputar a Libertadores e ” embora a Traffic, no fundo, preferisse que a CBF mudasse o critério ” a Copa Mercosul, mas com mudanças. As estrelas Claudecir, César e Adhemar estão de malas prontas. “Podem sair um, dois ou até três. Mas não seremos saco de pancada na Libertadores”, diz Nairo. E depois dela?