As torcidas mais lindas e feias do mundo
Em viagem à final olímpica de 1984, cronista presencia a primeira ‘Ôla!’, dá ‘spoilers’ sobre novas coreografias e as tristes cenas de racismo do futuro
Todo esporte tem a torcida que merece. Vejam o Beisebol, essa inexplicável monotonia (juro que já tentei gostar!) cujas arquibancadas lembram um gigantesco piquenique a céu aberto, com farto consumo de ‘hot-dogs’, refrigerantes e cevada. Já o Basquete, adrenalina pura, inspira o coro voraz de “Defense!”. O mundo do Futebol conheceu ontem, embora sem alarde na mídia, a ‘Ôla!’, coreografia em que os torcedores se erguem, levantando também os braços, e voltam a se sentar rapidamente, num movimento ordenado e contínuo, criando uma ‘onda’ que atravessa a multidão horizontalmente. Daqui a dois anos, na Copa do México, a novidade vai conquistar o Planeta, tanto que será chamada de ‘Ôla Mexicana’. Mas o primeiro registro do efeito num estádio em partida de expressão internacional deu-se neste França 2 x 0 Brasil que amargamos ontem, derrota que adiou mais uma vez nosso sonho de conquistar o ouro olímpico. Sou um torcedor do futuro, vim de 2023 – até o fim da resenha darei várias provas disso –, e daí poder adiantar a vocês, queridos leitores e queridas leitoras de 1984, que os espetáculos de torcidas de futebol vão se sofisticar muito nos próximos 39 anos, incorporando mosaicos (alguns em 3D), luzes, paródias de canções famosas e outros recursos inventivos. Mas infelizmente também veremos surgir, nas plateias do mais popular esporte que existe, manifestações explícitas de racismo, crimes. Deixei o Meu Tempo, maio de 2023, após assistir a um espetáculo deplorável: um estádio inteiro, na Espanha, xingando um jovem talento brasileiro de “Macaco!” – e esse será o décimo ataque do gênero ao atleta. Pergunto: é essa a torcida que o Futebol merece?
Na mesma agitada semana futebolística de 2023, poucos dias antes do incidente, os apaixonados torcedores do Manchester City estarão festejando vitórias no Etihad Stadium e a conquista da Premier League (o campeonato inglês) com o curioso hábito de, nos minutos finais, ficarem todos em pé e de costas para o campo, pulando e cantando. Como quem diz: “Acabou! Ganhamos!” É nesse Futebol que acredito: o da Alegria, do Congraçamento, do Encontro, da Diversão, da Vibração… Um Futebol para todos! Não vou me aprofundar no tema, mas gestos de ódio e discriminação racial nos estádios do mundo serão apenas um dos sinais (ou sintomas) de um recrudescimento das ideias de extrema-direita, mal que se acentuará com o avançar do Século 21 – vai entender! Outra informação importante, queridos leitores e queridas leitoras de 1984, é que casos de insultos racistas nos jogos de futebol também serão recorrentes em nosso país – sim, isso mesmo, essa conversa furada de que não existe racismo no Brasil vai acabar.
Existirão, claro, muitas versões de quem terá de fato inventado a ‘Ôla!”. Ou o palco em que pela primeira vez se formou. Um dos futuros pleiteantes será o Tigres, clube mexicano cuja torcida é famosa pelo fanatismo. O curioso é que defenderão a tal gênese mexicana da ‘Ôla!’ citando um amistoso entre a seleção do país e a Argentina, que se dará, anotem, no Estádio Universitário de Nuevo León, do Tigres, conhecido como ‘El Volcán!”, mas… Daqui a um mês! No próprio México correrá outra história, que remonta aos anos 70, quando, num intervalo do clássico Tigres x Monterrey, a demora dos times para a etapa final teria levado os funcionários do estádio a começaram a ‘brincadeira’, entretendo a torcida. Também vão requerer a paternidade da ‘Ôla!’ torcedores de duas universidades americanas e um líder de torcida do beisebol – olha ele aí! Queimei a boca…
Ontem quem tinha motivo para fazer ‘Ôla!’ ao final do confronto eram os franceses, que não tomaram conhecimento da seleção brasileira de jovens. Como muitos sabem, pela primeira vez os Jogos Olímpicos admitiram a inscrição de jogadores profissionais no Futebol. Se você, leitor ou leitora, não tinha esta informação, não envergonhe-se, pois a CBF (Confederação Brasileira de Futebol) também desconhecia o fim da restrição. Divulgou uma lista de convocados apenas com atletas amadores e teve que se corrigir dias depois. Mas manteve o aparente desinteresse pela competição: conquistamos a Medalha de Prata com um elenco que reuniu 11 titulares do Internacional (RS) e mais seis gatos pingados e sortidos de outros clubes. E fomos bem, ganhando as três partidas da fase classificatória (Arábia Saudita, Alemanha Ocidental e Marrocos), batendo o Canadá nas quartas-de-final (nos pênaltis) e a Itália, com gol na prorrogação, na ‘semi’ (não chegou a ser uma revanche de Sarriá, há dois anos, mas foi bom derrotá-los novamente). Não me surpreenderei, portanto, se você, querido leitor ou querida leitora de 1984, não estava sabendo de nada disso e ontem preferiu acompanhar a final do vôlei masculino, entre Brasil x Estados Unidos. Um sábado pra se esquecer… Derrota dupla! Mas valeu pela festa da torcida brasileira!
Serão bonitas as festas, pá! Pra vocês terem uma ideia: em 2023, a espécie humana terá sofrido uma alteração genética e todos já nascerão com um telefone celular praticamente acoplado ao corpo. E os estádios formarão mensagens ou o nome dos times com as luzes desses aparelhos, toda a torcida participando, criando e curtindo o espetáculo. No mundo árabe, a torcida de um clube de Casablanca, o Wydad, se aperfeiçoará tanto na criação de mosaicos, movimentos sincronizados, uso de computadores na geração de ritmos e outras formas de incentivo ao time, que chegará a ser eleita, em 2022, por um veículo especializado, como a melhor torcida do mundo. Mas no Futebol, todo mundo sabe, a melhor torcida do mundo sempre é a nossa, aquela à qual juntamos nossos gritos de amor ao clube do coração.
E pensar que nos primórdios do Futebol, o público assistia a tudo sem manifestar grandes emoções. No Brasil, credita-se a um torcedor do Fluminense, Chico Guanabara, o pioneirismo de se comportar com paixão e energia explícitas no Estádio das Laranjeiras – exemplo que logo se alastrou, como incentivo aos times. Outra que talvez nem todos saibam: o verbo ‘torcer’ e o substantivo ‘torcida’, no Futebol, são exclusividades da língua portuguesa (apenas no Brasil; em Portugal usam ‘adeptos’) e foram cunhados por outro tricolor, o escritor Coelho Neto (pai do atacante Preguinho, do Flu e da Seleção), que no início do século apelidou assim, como ‘torcedoras’, as mulheres que acompanhavam as partidas agitando e ‘torcendo’ seus lenços brancos, por vezes molhados de lágrimas, tamanho era o nervosismo. Romântico, não? Será o sentimento que me tomará ao assistir mais uma cena de ódio racial no longínquo 2023: vontade de chorar!
P.S.: Detalhe: não vi a ‘Ôla!’. Talvez tenha acontecido no momento em que fui comprar um ‘hot-dog’. Sim, não era Beisebol mas estava em Pasadena, nos Estados Unidos! ‘Nhac’!
PARA VER OS GOLS DA FINAL OLÍMPICA DE 1984
PARA VER O ATAQUE RACISTA A VINÍCIUS JÚNIOR
PARA VER A FESTA ‘DE COSTAS’ DA TORCIDA DO MANCHESTER CITY
https://www.youtube.com/watch?v=ZtPuVEzwLvc
PARA CONHECER A HISTÓRIA DO TORCEDOR CHICO GUANABARA
FICHA TÉCNICA
BRASIL 0 x 2 FRANÇA
Competição: Jogos Olímpicos de 1984 (Final do Futebol Masculino)
Data: 11 de agosto de 1984 (sábado)
Estádio: Rose Bowl
Local: Pasadena, CA – EUA
Público: 101.799 presentes
Árbitro: Jan Keizer (HOL)
BRASIL: Gilmar; André Luiz, Ronaldo, Pinga e Mauro Galvão; Ademir, Dunga, Gilmar Popoca e Kita (Chicão); Silvinho e Tonho Gil (Milton Cruz)
Técnico: Jair Picerni
FRANÇA: Albert Rust; William Ayache, Michel Bibard, Dominique Bijotat e Francois Brisson (Patrice Garande); Philippe Jeannol, Jean-Claude Lemoult, Jean-Philippe Rohr e Jean-Louis Zanon; Guy Lacombe e Daniel Xuereb (Patrick Cubaynes)
Técnico: Henri Michel
Gols: Segundo Tempo: François Brisson, aos 10’; Daniel Xuereb, aos 15