A ‘neura’ do Mundial
Solidário na derrota do Palmeiras para o Chelsea, Comentarista do Futuro vai a 1951, muda letra da ‘musiquinha’ e fala do masoquismo no futebol
“O futebol brasileiro não tem memória”, está aí algo de que todos se lembrarão daqui a 71 anos. Numa análise mais profunda, me arrisco a dizer, caros torcedores e torcedoras de 1951, que o tempo nos fará desenvolver com o “esporte bretão” uma estranha relação de culto ao fracasso, sendo pródigos e infalíveis em guardar nomes e detalhes dos momentos de tristeza e derrota — e não das vitórias. Um bom exemplo é a perda da tão sonhada Copa do Mundo, há um ano e seis dias (ainda contabilizamos…), que atravessará décadas como incômoda presença nas campanhas da seleção canarinho, revivida a cada reencontro com a Celeste. O mesmo não vai se verificar com a épica redenção que hoje todos festejam nas ruas, após conquista do Palmeiras (em final com a Juventus, da Itália) que deu a nós, brasileiros, o orgulho de, enfim, erguermos um título mundial de clubes. Pois sinto informar aos milhões hoje aplaudindo os heróis alviverdes que em 2022, de “quando’ venho, o triunfo não terá reconhecimento, oficial ou popular. Sinal inconteste de que, integramos, todos nós, uma torcida única de raízes psicológicas: o “Masoquismo Futebol Clube”!
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E dou aqui outras provas da inapelável neurose que o futuro há de confirmar. Barbosa, nosso guarda-metas na Copa, será eternamente lembrado e injustamente culpado do ‘Maracanazzo’, enquanto ficarão fadados ao quase esquecimento, com raras citações, goleiros decisivos em triunfos que estão por vir — Félix e Marcos, por exemplo, caso queiram anotar alguns nomes. Chegaremos ao próximo século remoendo insistentemente um pênalti não convertido em 1986 por um super craque do nosso escrete, mas fazendo pouquíssimas referências (e reverências) a outro camisa 10, decisivo em futuras conquistas — Rivaldo, assim o chamaremos. Olhar o passado do futebol, acreditem, terá para o torcedor brasileiro muito daquela história de ‘só enxergar o copo vazio’. Engulam essa!
Dito isso, pouco importa se, no Amanhã, a Fifa será hesitante, ora declarando-se a favor, ora contra, na oficialização deste Mundial que o Brasil conquistou ontem. Às favas! O empate (2 x 2) no segundo jogo final com a ‘Vecchia Signora’ (Juventus, campeã italiana de 1949/50) foi o grand finale do alviverde paulistano no Torneio Internacional de Clubes Campeões, que teve a própria Fifa como um dos organizadores e reuniu equipes de peso, uma “briga de cachorro-grande”! O Palmeiras venceu deixando pra trás o poderoso Vasco (campeão carioca de 1950 e base da nossa Seleção), o Áustria Viena (campeão austríaco de 1949/50), o temido Nacional (campeão uruguaio), Sporting (bicampeão português), Estrela Vermelha (campeão iugoslavo) e o Nice (atual bicampeão francês).
Mesmo assim, no Século 21 os palmeirenses serão alvo de chacota constante dos adversários, o que me leva a aproveitar esta resenha para sugerir que adotem, desde já, um antídoto: novo cântico nas arquibancadas, que deve ser entoado na melodia de “História pro Sinhôzinho” (Dorival Caymmi, gravação de 1947) e com os seguintes versos: “O Palmeiras já tem Mundial/ O primeiro a ter Mundial/ Só ele que tinha, e já tem Mundial/Só ele que tinha, e já tem Mundial”
Deixei o futuro poucas horas após derrota por 1 a 0 do Palmeiras para o Chelsea (Inglaterra) numa finalíssima do Mundial de Clubes – nome que, em 2022, batizará a disputa. De hoje até lá, teremos outras versões e modelagens do torneio, com nomes diferentes (um deles batizado por uma marca de automóveis) e, já a partir de 1960 (Copa Intercontinental), uma importante alteração: os times participantes vão representar não mais países e sim continentes, habilitando-se ao vencer competições entre nações vizinhas. Deste modo, estarão em campo, a cada ano, o clube campeão da Europa, o da América do Sul, da América do Norte + Central + Caribe, da África, da Ásia e o da Oceania — agregando-se, portanto, regiões que, ressalve-se, hoje ainda não têm relevância no Mundo da Bola. Será justo a maior abrangência o principal argumento da Fifa ao resistir em reconhecer os títulos anteriores ao primeiro “Mundial oficial”, que se dará em 2000, quando, sinto informar aos palmeirenses, se sagrará vencedor o rival-mor Corinthians — e claro que disso vocês jamais se esquecerão.
Foi triste testemunhar ontem o brio do Onze alviverde no Maracanã e pensar que terá pouco valor e reconhecimento em 2022. Não éramos favoritos, todos os brasileiros sabem, principalmente levando em conta que, na fase classificatória, sofrêramos impiedoso 4 x 0 da Juventus, time dos dinamarqueses Hansen e de Boniparti, artilheiro do torneio. Após passar pelo favorito Vasco na semifinal, o Verdão alcançou inesperada vitória na primeira partida da final (1 x 0), bastando um empate para erguer a Taça. Ao adentrarem o gramado, os bravos palmeirenses repetiram a cena com que, há quase 10 anos, marcaram a passagem do italiano Palestra ao nacionalíssimo Palmeiras: conduzindo a bandeira do Brasil. E naquele instante pude sentir no ar — e nos gritos dos mais de 100 mil torcedores presentes — que estravam em campo também os 50 milhões de brasileiros ainda abatidos pelo gol de Gighia e acometidos pelo pesado ‘complexo de vira-lata’.
Eram dramáticas as expressões esculpidas nos rostos das arquibancadas ao encerrar-se a primeira etapa com vitória parcial da Juventus, gol de Praest, ao 18’. Ufa que logo aos 2 minutinhos do segundo tempo, Lima acertou a trave e, no rebote, Rodrigues empatou, fazendo o Maracanã rugir. Chato que 16 minutos depois, um dos Hansen, Karl, fez ressuscitar o fantasma de 50. Mas tínhamos Liminha, queridos leitores e leitoras de 51, e foi ele a driblar dois defensores, chutar, pegar a sobra e entrar com bola e tudo pra dentro das redes italianas. Deu-se o fim do estigma! Fomos e somos capazes de ganhar títulos mundiais no futebol! A festa ganhará todo o país e até uma cachaça comemorativa será lançada — e em 2022 ainda estará nos mercados, eternizando no rótulo o ano da conquista eterna: 1951.
Pois bebam e aproveitem muito o momento, amigos, já que o tempo — e a progressiva discrepância do poderio econômico da Europa — nos trará de volta essa sensação de inferioridade, a constatação do inatingível, sublinhadas pelos números de conquistas de cada um dos dois continentes mais fortes no futebol. No Mundial de Clubes ‘oficial’ da Fifa (iniciado, como já dito, em 2000, e retomado em 2005), chegaremos a 2022 com 14 das 18 edições vencidas por clubes europeus e apenas 4 triunfos sul-americanos (todos brasileiros), o último deles já completando 10 anos. Em 21 Copas do Mundo, serão 12 conquistas europeias, quatro delas nas últimas quatro edições, completando-se 20 anos da última conquista sul-americana (menos mal que brasileira!). Uma primazia europeia que dará sinais de estar aumentando mais e mais…
Mas olhemos o copo cheio. Outros grandes clubes nacionais alcançarão o triunfo mundial — a começar pelo Fluminense, já ano que vem, na mesma Copa Rio — e formaremos grandes Escretes que nos darão cinco Copas do Mundo. Um viva a todos eles! Pena que o tal ‘masoquismo coletivo’ do torcedor brasileiro nos fará citar, relembrar, enaltecer e endeusar muito mais outro momento do futuro: uma derrota que nos levará às lágrimas em 1982. Freud explica. Nelson Rodrigues também.
FICHA TÉCNICA
PALMEIRAS 2 × 2 JUVENTUS
Data: 22 de julho de 1951
Estádio: Maracanã, Rio de Janeiro
Competição: Copa Rio
Árbitro: Gaby Tordjman (França)
Público: 100.093
Renda: Cr$ 2.783.190,00
PALMEIRAS: Fábio Crippa, Salvador, Juvenal, Túlio, Luiz Villa e Dema; Lima, Ponce de León (Canhotinho), Liminha, Jair Rosa Pinto e Rodrigues. Técnico: Ventura Cambón.
JUVENTUS: Viola; Bertucelli e Manente; Mari Jacomo, Parola e Bizzoto; Muccinelli, Karl Hansen, Boniperti, John Hansen e Praest. Técnico: Jesse Carver
Gols: Prest (18’) do 1ºT; e Rodrigues (2’) Karl Hansen (18’) e Liminha (32’) do 2ºT
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