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‘Pelé’ na Netflix: a memória como matéria-prima

As imagens raras descobertas pelo pesquisador Antonio Venancio fazem do documentário um comovente passeio pelo Brasil que saiu da democracia para a ditadura

De Luis Buñuel, em Meu Último Suspiro, a autobiografia escrita de mãos dadas com Jean-Claude Carrière: “Precisamos começar a perder a memória, ainda que gradativamente, para nos darmos conta de que é essa memória que constitui nossa vida. Uma vida sem memória não seria vida, assim como uma inteligência sem possibilidade de expressão não seria inteligência. Nossa memória é nossa coerência, nossa razão, nossa ação, nosso sentimento. Sem ela não somos nada.” Memória é a matéria prima do carioca Antonio Venancio, 58 anos, homem que se habitou a navegar pelos meandros de histórias individuais e coletivas, como quem caça no passado pepitas que ajudam a entender o presente e pavimentam o futuro. Venancio é o mais celebrado pesquisador audiovisual do Brasil. Em Pelé, o documentário em exibição da Netflix, ele faz as vezes de Coutinho, metaforicamente, é claro.

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Coutinho foi o centroavante do Santos que, nos anos 1960, fazia as mais espetaculares tabelinhas com o rei do futebol. Sem Venancio, sublinhe-se, a coleção de extraordinárias imagens exclusivas do filme não viria à luz. E convém lembrar: poucos personagens brasileiros tiveram a vida mais esmiuçada, em coleções de cinema e televisão, do que Pelé. Era improvável, para não dizer impossível, que os 108 minutos dirigidos pelos britânicos David Tryhorn e Ben Nicholas entregassem novidades, tendo como referência obras anteriores, de vasto olhar para o camisa 10 – Isto É Pelé (1974), de Luiz Carlos Barreto e Eduardo Escorel e Pelé Eterno (2014) de Anibal Massaini Neto. E, no entanto, há sim, em Pelé descobertas comoventes. Se perdíamos a memória, para voltar a Buñuel, e isso não é de todo ruim, Venancio nos pega para um passeio pretérito de um tempo, o Brasil do final dos anos 1950, os 1960 e os 1970, que saiu da democracia para a ditadura enquanto sorríamos com Pelé.

O produtor de Pelé, Kevin MacDonald, de Munique, 1972 – Um Dia em Setembro, Oscar de melhor documentário em 2000, foi muito bem orientado ao procurar Venancio. O carioca foi o responsável pela arqueologia das excelentes reconstituições de época de No Intenso Agora (João Moreira Salles, 2017), olhar íntimo em torno das insurreições de 1968, e Uma Noite em 1967 (Renato Terra e Ricardo Calil, 2010), adesiva caminhada com lenço e documento pelos festivais de música, além de dezenas de outras produções afeitas a tirar ácaro dos armários, como Democracia em Vertigem (Petra Costa, 2019).

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Antonio Venancio
Venancio: olhar minucioso de quem sabe onde descobrir tesouros iconográficos Reynaldo Zangrandi/Divulgação

“Grande parte dos melhores documentários brasileiros recentes depende de imagens de arquivo, e grande parte desses filmes depende do trabalho vocacionado, rigoroso e apaixonado do Venancio”, diz Calil. “Ele domina os principais acervos do Brasil e do mundo e não descansa até encontrar fontes insuspeitas para materiais raros. O Renato Terra e eu tivemos a sorte de contar com ele como pesquisador. Venancio conseguiu encontrar uma pérola na Cinemateca Brasileira: as imagens da mítica ‘passeata contra a guitarra elétrica’ – que flagravam Gilberto Gil dois meses antes de apresentar “Domingo no Parque” no Festival da Record de 1967, acompanhado do mutante Sérgio Dias empunhando… uma guitarra”.

É o que faz Venancio tão necessário, vital mesmo, para uma escola de documentário que pressupõe minuciosa garimpagem – e assim foi em Pelé. Venancio sabe onde procurar, sabe distinguir o joio do trigo, tem o olho bom e inteligente de um pesquisador com mais de três décadas de janela. E tem proximidade com o futebol. Em 1997, depois de uma temporada de estudos em Nova York, depois de ter trabalhado no escritório americano da Rede Globo, ele foi convidado pelos irmãos Walter Salles e João Moreira Salles a ajudar na colheita para a série documental Futebol, dirigida por João e Arthur Fontes para o canal GNT. E o resto é história, e não seria exagero dizer que, se é preciso material iconográfico, chamem o Antonio. Em Pelé, enfim, ele vasculhou uma dezena de arquivos eletrônicos, já durante a pandemia, para revelar exclusividades – ou, dito de outra forma, para iluminar cenas que a pátina das décadas havia esmaecido. O próprio camisa 10, diante da televisão, se espantou: “Nem me lembrava mais”.

Na Biblioteca Nacional da Suécia, Venancio encontrou um filme colorido de passagens em Estocolmo e Hindas. Descobriu pertencer a uma família escandinava, finalmente localizada com a ajuda de um amigo a quem conhecera em Nova York. Na Bélgica, encontrou outros tesouros. Das sobras – insista-se, das sobras! – do documentário O Torcedor, de Jean Manzon, de 1966, ele pescou cenas da concentração brasileira antes do embarque para o fracasso da Copa do Mundo disputada na Inglaterra. De 9 horas de gravações, selecionou 3 minutos de intimidades da concentração e assédio dos torcedores jamais vistas. “Pesquisar é um trabalho de paciência, de calma”, diz Venancio, com a modéstia de quem navega por onde ninguém navegou.

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Ter as imagens recuperadas por Venancio fazem de Pelé um documentário obrigatório, impregnado de um romantismo em preto e branco e cores pasteis inigualáveis. Se a ideia era mostrar as fragilidades e fraquezas por trás do mito, os erros humanos por trás do totem infalível, o olhar histórico de películas recuperadas no fundo das gavetas raras presta imenso serviço. Termina-se o filme com a nítida sensação de que Pelé nunca foi imodesto ao falar na terceira pessoa do singular, ao dizer que havia o Edson e o Pelé. As pepitas de Venancio dizem isso. Eram dois mesmo.  Mostram o craque, os gols, as celebrações públicas – mas também o olhar tímido, quase assustado, de um jovem descoberto pelo mundo antes mesmo de ele poder entender quem era.

É como se Venancio dissesse a Pelé: olha aqui o Edson. De Buñuel, para não perder o tom da prosa, com insistência: “Uma vida sem memória não seria vida, assim como uma inteligência sem possibilidade de expressão não seria inteligência”. Em tempo: Venancio só não foi mais longe porque a Cinemateca Brasileira, dona de 80% do material de Pelé no Brasil, vive hoje constrangedora e terrível crise, estrangulada pelo descaso e ignorância do governo de Jair Bolsonaro. E, nesse caso, nem mesmo um craque como Venancio consegue tirar das sombras as latas de películas que poderiam contar a trajetória de um país que, na definição de Stephan Zweig, seria do futuro e ainda busca encontrá-lo, desesperadamente. Uma alternativa: olhar um pouquinho para o passado, como nos mostra o cuidadoso pesquisador.

Antonio Venancio
Venancio descobriu valiosas “sobras” em arquivos na Suécia e na Bélgica Reynaldo Zangrandi/Divulgação
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