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O elogio da honestidade

O VAR será para sempre lembrado como a grande boa novidade tecnológica da Copa de 2018, do primeiro ao último jogo

Numa Copa em que o VAR, o árbitro assistente de vídeo, foi a grande novidade, soou quase como uma imposição ele ter se destacado também na final. Muito se falará, a favor ou contra, do pênalti que o juiz argentino Nestor Pitana demorou a marcar a favor da França, e que resultaria no 2 a 1, gol do sempre elegante Antoine Griezmann. Os juízes na cabine em Moscou avaliaram que a bola desviou na mão de Perisic. Os croatas, claro, discordarão para sempre. E salve o VAR, recurso tecnológico sem volta.

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Não houve, de fato, na Rússia em 2018,   nenhuma grande surpresa no modo de postar as equipes em campo, como aconteceu com a Holanda de Rinus Michels e Johan Cruyff, em 1974. Não houve um craque que a tudo tenha arrastado, um tsunami de habilidade como foram Garrincha em 1962 e Maradona em 1986. Não houve Pelé, é claro (mas houve Mbappé, não há comparação possível, embora o francês de 19 anos tenha também marcado numa final, como Pelé fez duas vezes em 1958). Lá no futuro, quando formos olhar para a Copa do Mundo de 2018, haverá um par de lembranças, e uma está intimamente relacionada à outra: o Neymar cai-cai, o burlador, o ator e o VAR, o árbitro assistente de vídeo. Um – Neymar – deu muito errado. O outro – o VAR – deu muito certo, apesar do ruído na finalíssima. Deu-se o casamento entre ambos aos 32 minutos do segundo tempo da partida entre Brasil e Costa Rica, no estádio do Zenit, em São Petersburgo. O placar estava zero e zero. Supostamente empurrado pelo zagueiro Giancarlo González, Neymar caiu dentro da área, urrando como se tivesse sido atingido por uma saraivada de AK-47. O juiz, o holandês, Bjorn Kuipers, não teve dúvida: pênalti. Enquanto os jogadores da seleção celebravam a marcação da penalidade, a equipe do VAR em Moscou, reviu o lance, conversou com o árbitro pelo ponto, ele fez o retângulo imaginário no ar e foi para a margem do gramado de modo a revisar o lance. O que os comentaristas tratavam como mera possibilidade virou certeza: Neymar se jogara, quis enganar o mundo e o juiz. Kuipers anulou a decisão e, pela primeira vez na história das Copas, uma penalidade máxima foi cancelada.

Neymar fora desmascarado e, a partir daquele instante, a fama de cai-cai que hoje lhe impregna, começou a ser construída. O VAR, até então um imenso ponto de interrogação, novidade que estava sendo construída com a Copa em andamento, saiu da infância e entrou na idade adulta. Puxa vida, então é para isso que serve o VAR, para impedir a contravenção, as faltas inventadas, os pênaltis fabricados? Sim. Adeus, truques baratos como os de Neymar. Bem-vinda a tecnologia a favor da honestidade, e é apenas disso que se trata. A alegação de que o VAR quebraria o ritmo das partidas, tiraria do futebol a graça da dúvida, das reclamações de mesa de bar, não durou um verão russo. As coisas são ou não são, sem interpretações que servem apenas à confusão e a um romantismo tolo.  Já não dá mais para achar graça de Mano de Diós de Maradona – e ele mesmo, um pouco antes do início da Copa, admitiu que com o VAR a farsa que virou lenda, o gol de mão contra a Inglaterra, em 1986, estaria natimorta. Já não dá também para rir discretamente da malandragem de Nilton Santos, “a enciclopédia”, que numa partida contra a Espanha, na Copa de 1962, deu um passinho para a frente, e o que seria pênalti virou falta. Com o VAR, esses dois momentos, supostamente históricos, mas inaceitáveis, nunca teriam vindo à luz. Não existiriam.

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Para quem pôde acompanhar boa parte dos jogos da Copa do Mundo, foi nítida a transformação do VAR ao longo da competição – no início, era personagem ruidoso, que poderia salvar uns e enterrar outros, o bandido número 1 dos comentaristas sem ter o que dizer. Lá no meio do torneio, e especialmente em seu terço final, o VAR parecia ter sumido. Continuava ali, é claro, mas discreta e silenciosamente, até reaparecer em Moscou no domingo do derradeiro jogo. Foi, tudo somado, depois de 64 embates, como se a honestidade, ancorada na tecnologia, se sobrepujasse à esperteza. E assim deveria ser na vida, em todas as situações, o tempo todo, mas não é. Louve-se, portanto, a fundamental mensagem do VAR, o anti-Neymar. A percepção de que os olhares se acostumavam ao árbitro de vídeo, como se ele não mais existisse, pode ser confirmada pelas estatísticas. São interessantes, e conclusivas – a grande notícia do futebol em muito tempo.

Segundo a Fifa, nos 48 jogos da primeira fase da Copa, houve 335 consultas ao vídeo, numa média de 6,97 por partida. Em 14 oportunidades, o juiz voltou atrás da decisão que tomara. Entre as oitavas e as semifinais, foram 110 consultas ao VAR em 14 jogos, numa média de 7,85 – mas apenas duas revisões. Na primeira fase, houve uma revisão a cada 300 minutos. A partir das oitavas, uma a cada 700 minutos de bola rolando. Pode-se argumentar, é claro, que os juízes simplesmente começaram a apitar melhor, sem a necessidade de apoio. É possível. Outra possibilidade, muito grande: a de que os árbitros – tanto os das cabines de vídeo quanto os de campo – desenvolveram a sintonia fina dos lances, e, desde então, apelaram poucas vezes para o equipamento de revisão. É certo também que, o clássico agarra-agarra dentro da área foi minguando, reduzindo o número de pênaltis tolos. No começo da Copa, viam-se jogadores fazendo o gesto do retângulo, gritando pelo VAR – no final, nas partidas de mata-mata, não mais.

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Evidentemente, a Fifa comete bobagens em profusão, e o passado corrupto não a absolve das boas iniciativas atuais. Mas é inquestionável: o VAR foi uma aposta que deu certo e prosseguirá. É um novo elemento no futebol – soa estranho para alguns, mas, insista-se, a Copa da Rússia representou excelente aprendizado e magnífico avanço. Com a palavra o presidente da Fifa, Gianni Infantino, com o perdão pela extensão do que ele disse, mas é interessante, merece ser lido e relido com atenção, por marcar o início de um novo tempo – ainda que a celeuma em torno do pênalti que resultou no segundo gol da França, marcado por Griezmann, permaneça vivo por muito tempo.

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“Futebol é um esporte de contato e há intepretação, quem decide é o árbitro. Nem todo contato é falta, e o juiz interpreta. Com o super slow motion, tudo parece falta, mas não é. O importante é que com o VAR ele pode fazer uma dupla checagem para ter a certeza, mas o VAR decide os lances claros. Não sei se vocês perceberam, o gol em impedimento morreu no futebol. Vocês nunca vão ver novamente, porque é um lance claro, está impedido ou não. Há outro lado, que é a educação: veja quantos cartões vermelhos. Nenhum cartão vermelho em decorrência de jogada violenta. Com a ajuda do VAR, o atleta sabe que se fizer algo de errado, o juiz verá e tomará a decisão. Temos certamente uma competição mais justa com o VAR.”

E mais, segundo Infantino: “Para ser honesto, eu estava cético, mas se não tentássemos, não saberíamos se funciona. Os resultados, e aqui falo de fatos, e não se sentimentos e percepções, são positivos. Houve 14 decisões ruins alteradas para decisões boas. O VAR deixou o futebol mais transparente, ajudando os árbitros a fazer um trabalho muito difícil. Graças ao VAR melhoramos de 95% para 99% a taxa de acertos. Ainda não é 100%”.

Não há dúvida, o VAR mudou o futebol – basta ver, como experiência, o abismo que a partir de agora se criará entre os torneios sem VAR e os torneios com VAR. É como se em alguns coubesse a patifaria, e em outros não. É como se em alguns o erro fosse uma presença inevitável, e em outros não. Longa vida ao VAR! Nos lances interpretativos, aqueles das infindáveis conversas de torcedores, ele poderá ainda deixar espaço para dúvidas. Mas sempre corrigirá os erros absurdos.

Logo depois do apito final, a França campeã, Infantino disse: “Graças a Deus existe o VAR, que ajudou o juiz a ver um pênalti que não havia visto”.

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