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No futebol moderno, não há mais como driblar o profissionalismo

Exigência física cresceu e acompanhamento aos atletas também. Com máquinas de última geração por toda parte, quem não se cuida fica para escanteio

Num passado não muito distante, a figura do jogador de futebol especialmente a dos craques –, era ligada à malandragem e à habilidade para ludibriar os adversários (em campo) e os chefes (fora do gramado). Institucionalizou-se a cultura do migué”, o ato de escapar de situações indesejadas com desculpas esfarrapadas (como uma dorzinha muscular, uma indisposição…) e comportamento pouco profissional. “Cruyff fumava no vestiário, Maradona levava uma vida sem limites, Sócrates bebia em dia de jogo e Romário fugia da concentração”, são algumas das histórias contadas (geralmente com tom saudoso) por muitos torcedores. Essa época “romântica” do futebol, porém, tem dias contados. Cada vez mais, os grandes clubes do Brasil e do mundo investem em profissionais e tecnologia de última geração para desvendar tudo o que acontece no corpo dos atletas. Não é uma caça aos indisciplinados, mas uma busca para melhorar o rendimento, curar e, sobretudo, prevenir lesões. Visitamos os centros de treinamento de Palmeiras e Corinthians, os últimos campeões do Brasileirão, para conhecer as técnicas mais avançadas da medicina esportiva e acompanhar a rotina de um atleta de elite.

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O Brasil integra a elite da medicina esportiva, tanto que muitos atletas que ganharam fama de “bichados” – jogadores propensos a sofrer lesões – no exterior encontraram a cura no retorno ao país. “Por ter o futebol como parte importante da cultura, o Brasil desenvolveu bastante todas as áreas da medicina esportiva, até pela cobrança que existe de imprensa e torcida”, explica Luciano Rosa, analista biomecânico do Corinthians. O sucesso de um time não passa apenas pelo trabalho dos atletas e do treinador, aqueles que brilham diante das câmeras. Dezenas de profissionais e aparelhos voltados a manter a boa forma e melhorar a performance do elenco também contribuem para o resultado final. “Podemos até não ganhar jogos por causa do nosso trabalho. Mas garanto que também não vamos perder por isso”, brinca Altamiro Bottino, coordenador científico do Palmeiras. 

Ainda é possível driblar o profissionalismo?

Segundo os responsáveis por lidar diariamente com os atletas, é praticamente impossível levar uma vida desregrada e seguir jogando em alto nível. O auxílio tecnológico faz marcação cerrada nos indisciplinados: um GPS instalado nos uniformes mostra quanto e em qual intensidade cada atleta corre nos treinos e jogos. Constantemente, os jogadores devem se pesar e realizar exames de urina, para mostrar quanto estão hidratados. Exames de sangue podem apontar consumo excessivo de álcool e há até como avaliar a qualidade do sono dos boleiros. A intensidade que o futebol moderno impõe também exige maior cuidado, pois a forma física pode valer fortunas. “Se o jogador não aguentar o ritmo, prejudicará o time, sofrerá lesões ou perderá espaço e, com isso, contratos milionários”, ressalta Antonio Carlos Fedato Filhofisiologista do Corinthians.

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Fedato Filho tem 16 anos de experiência no futebol – sem contar a infância e adolescência em que acompanhou o pai, Fedato, ídolo do rival Palmeiras como jogador e técnico, morto em 2000. Segundo ele, a conscientização dos atletas cresceu. “Antes eles não se cuidavam, enganavam em treinamento, e isso aumentava o número de lesões. Os atletas hoje buscam mais informação, não temos de impor tanto as coisas.” Fedato pondera que os atletas não estão proibidos de curtir a vida nas folgas, afinal são “jovens de 20 e poucos anos, com dinheiro e energia de sobra”, mas afirma que a intensidade que o jogo e o treinamento impõem praticamente obrigam o jogador profissional a se alimentar bem e descansar.

No Palmeiras, o controle também é diário e intenso. O coordenador científico Altamiro Bottino é uma espécie de elo entre diversas áreas do departamento de futebol e é um estudioso sobre da ciência do esporte. “O Romário fazia em média quatro acelerações em 90 minutos – e decidia o jogo. Hoje tem jogador que chega a 400 numa partida. O jogador precisa de uma condição atlética excepcional, se não tiver responsabilidade, não joga”, afirma Bottino. “Não estou dizendo que hoje o Romário não jogaria, certamente o faria com brilhantismo porque o talento sempre prevalece, mas ele teria de se adaptar a uma realidade diferente.” Na Copa do Mundo de 2014, segundo dados divulgados pela Fifa, o atleta que mais correu foi Thomas Müller, que na campanha do tetra alemão percorreu 84 quilômetros em sete jogos (média de 12 km por partida).

Bottino admite que, em seus mais de 20 anos de profissão, teve de lidar com vários atletas “rebeldes”. Neste caso, a receita é o bom e velho olho no olho. “O primeiro a saber que tem algo errado tem de ser o próprio jogador, porque ele é o único que pode mudar. Não adianta eu me queixar para o companheiro dele, porque quando ele souber vai haver uma quebra de confiança, ele vai se sentir traído. A gente personaliza: meu irmão, você tem um problema, vamos resolver? Se a gente vir que não teve solução, aí sim a gente leva para cima, ao treinador, até gerente, presidente, quem tiver de resolver.” O caso inverso, de um atleta esconder uma lesão para não perder vaga no time, por exemplo, também dificilmente escaparia do DM. “Impossível não é, mas é muito improvável. A lesão vai se manifestar de alguma maneira, não escapa de uma imagem. O jogador pode até não se queixar de uma dor suportável, mas se estiver lesionado, saberemos.”

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Mudança de filosofia: futebol não é atletismo

Basta assistir a alguns minutos de um jogo antigo para perceber o quanto o futebol evoluiu, seja na disciplina tática, velocidade do jogo, qualidade dos gramados e dos materiais esportivos. A medicina, claro, seguiu o mesmo caminho. As infiltrações, por exemplo, que tinham efeito meramente paliativo, pois aliviavam dores e mascaravam lesões – e, por isso, abreviaram as carreiras de craques mundo afora -, foram praticamente extintas. “Hoje não atendemos apenas de uma maneira curativa, mas principalmente preventiva.”, diz Luciano Rosa, analista biomecânico do Corinthians. 

A filosofia de treinamento mudou drasticamente: hoje o trabalho está todo inserido no contexto do futebol, com a bola como protagonista. “O método mudou. Antes era baseado na escola russa, do atletismo, com corridas longas, que desgastam joelho e tornozelo. Hoje os trabalhos são todos com bola, campo reduzido. Alguns clubes ainda mantêm esta herança do atletismo, porque depende do treinador e do preparador físico, mas mudou bastante nos últimos cinco anos”, garante Thiago Santi, do Palmeiras. “O trabalho passou a ser mais curto e intenso, os treinos não passam de uma hora de duração.”, completa o corintiano Fedato.

Paulo Zogaib, professor de Medicina Esportiva da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que foi médico da equipe alviverde na vitoriosa década de 90, confirma a evolução. “No Palmeiras, em 1992, era tudo mais ‘tupiniquim’. Fazíamos testes de corridas de 300 metros, uma estupidez, não tinha utilidade nenhuma.” Ele recorda que alguns jogadores jogavam no lixo os suplementos indicados pelos médicos e revela uma piada que fazia com Edmundo, Evair e companhia. “Eles perguntavam: ‘Isso aí faz gol por acaso?’ Eu respondia “Não, mas você também não faz”, diverte-se. Segundo Zogaib, está provado que a filosofia “No pain, no gain” não se enquadra mais no futebol. “Esqueça essas bobagens de ‘a dor faz parte do uniforme’. Já se sabe que o treinamento ideal depende das particularidades de cada atleta, para não haver uma sobrecarga.”

CET Palmeiras
Altamiro Bottino e Thiago Santi brincam com o colombiano Yerry Mina Felipe Cotrim/VEJA.com

Os atletas passam por uma bateria de exames, sobretudo no início de temporada. Aqueles que apresentam alguma dificuldade (como excesso de peso, potência baixa, lesões) são divididos. “Fazemos um mapeamento no laboratório, na fisiologia e no campo, e com esse diagnóstico, criamos subgrupos para tentar suprir as necessidades. Se dentro desse subgrupo houver um atleta com uma necessidade especial, montamos uma preparação particular, com treino em dois períodos”, explica Fedato.

Diariamente, os atletas têm todos os passos monitorados por sistemas de GPS: os dados registram quanto cada um correu, acelerou e em qual intensidade, a chamada “carga externa”. “Há também a carga interna, que é a frequência cardíaca, a recuperação no dia seguinte, a sensação de dor, qualidade do sono”, explica Thiago Santi. Exames de termografia – fotos que medem o calor e desgaste dos músculos – e um exame de sangue, chamado creatina quinase (CK), reduzem drasticamente o risco de haver uma lesão. Quando os dados mostram que um atleta está sofrendo mais que os colegas, lhe é proposta uma mudança na carga de exercícios. “Por isso é importante ter um elenco vasto e qualificado, para retirar o atleta nos momentos de necessidade sem comprometer o time”, diz Santi.

Apesar de todo o acompanhamento, há lesões – como a de Moisés, do Palmeiras, que torceu o joelho após entrada dura de um adversário – impossíveis de prever. “Não há como prevenir lesões ósseas, fraturas, torções ligamentares. Isso à vezes depende da qualidade do gramado, entradas violentas e outros fatores”, diz Luciano Rosa. Segundo ele, gramados sintéticos, como o da Arena da Baixada – que foi proibido pela comissão de clubes da CBF para 2018 – são prejudiciais aos atletas. “Para a prevenção de lesão, não é recomendado o uso de gramado sintético, porque o atrito do material da trava da chuteira é maior e a chance de entorse se multiplica.”

China, Arábia, Rússia… Os maiores inimigos da equipe médica

Fedato, que já trabalhou na Arábia Saudita, no Catar e nos Emirados Árabes Unidos, conta que estes países têm uma cultura de treinamento obsoleta. E os atletas que retornam ao Brasil depois de uma aventura asiática costumam ter dificuldades. “Nestes países, se o jogador sente uma fadiga, eles param o treino. Eles não têm costume de fazer musculação, muitos nem sabiam como funcionavam as máquinas, não tomam suplementação. Há jogadores que se aposentam porque a religião não permite fazer certas cirurgias. Então o jogador brasileiro volta com o hábito da Ásia, fraco, com potência baixa. Não necessariamente gordo, mas fraco. Isso não é uma lenda, realmente acontece”, conta Fedato. “O atleta às vezes fica anos inserido nesse processo e o corpo dele se adapta a estas situações. O futebol brasileiro é mais exigente, o calendário é apertado, e o jogador acaba sentindo a diferença”, confirma Thiago Santi, que trabalha desde 2015 no Palmeiras e precisou realizar trabalhos específicos de readaptação com o chileno Jorge Valdivia (que chegou dos Emirados Árabes Unidos) e com Cleiton Xavier (vindo da Ucrânia).

O milagre de Vagner Love

Deslocamento, o vilão do futebol brasileiro

Pelo fato de o Brasil possuir dimensões continentais, os clubes do país enfrentam verdadeiras maratonas durante os campeonatos nacionais e internacionais. A logística das viagens muitas vezes atrapalha o planejamento das comissões técnica e médica, que se veem obrigadas a alterar os períodos de treinamento ou descanso. No Brasileirão de 2016, com a impossibilidade de usar o Maracanã por causa da Rio-2016, o Flamengo mandou diversos jogos fora do Rio (alguns em Manaus ou em Brasília), o que certamente atrapalhou a rotina do time. “Para nós foi ótimo”, brinca Bottino, do campeão Palmeiras, lembrando que o time carioca brigou pelo título até as rodadas finais. Em 2017, o Sport, de Recife, será o time que percorrerá os mais longos trajetos no Brasileirão.

Distância entre os clubes da Série A do Brasileirão:

Distância entre estádios

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Os Emirados Árabes Unidos são um país menor que o Rio de Janeiro, então quem joga a liga nacional praticamente não tem desgaste com viagem. Isso também não acontece na Itália, Portugal, Espanha, as viagens são curtas. No Brasil, você pode jogar quarta-feira em Porto Alegre e domingo em Recife. Quem vem de fora sente muito, é uma batalha adaptar o jogador a estas circunstâncias. No exterior, eles jogam quase sempre no mesmo bioma, com pouca alteração de temperatura. Nem os países de dimensões continentais, como EUA, China e Rússia, têm tantas faixas temperadas como o Brasil. Para o torcedor que assiste o jogo na poltrona, nada disso é levado em conta.

Altamiro Bottino – coordenador científico do Palmeiras

Área do Brasil x área dos países das melhores ligas do mundo

 

“A atenção que o jogador recebe no Brasil, não encontra em lugar nenhum” 

A frase é de Thiago Santi, fisioterapeuta do Palmeiras. O clube recentemente inaugurou seu hotel dentro do centro de treinamento da Barra Funda e colocou novas itens em sua academia. O principal “reforço”, chamado Kineo System, é uma máquina italiana pela qual a comissão se encantou em um congresso na Europa. O Palmeiras pagou 150.000 reais por dois aparelhos – é o único clube da América do Sul a possuí-los -, os mais completos do mercado em prevenção de lesões, reabilitação, recuperação e treinamento. “Hoje o clube enxerga isso como investimento, não como gasto”, diz Santi.

O Corinthians não fica atrás: o clube alvinegro é o único do país a possuir um laboratório de biomecânica. Localizado no CT Joaquim Grava, o Lab Corinthians R9 foi batizado em homenagem ao atacante Ronaldo, que durante sua passagem, entre 2009 e 2011, conseguiu convencer a diretoria de que o clube precisava urgentemente melhorar sua estrutura. Desde então, com novo estádio, CT, hotel e laboratório, o clube conquistou os maiores títulos de sua história, além de ter recuperado fisicamente atletas que antes conviviam com muitas lesões, como Alexandre Pato e Renato Augusto. “A ideia é unir três linhas de trabalho: prevenção, reabilitação e rendimento”, explica o fisiologista Fedato.

Existe uma grande diferença entre os tratamentos realizados no Brasil e no exterior.  Na Europa, o jogador passa menos tempo no clube e muitas vezes o trabalho muscular é feito à parte. Por isso, atletas como Neymar e Cristiano Ronaldo montam academias em casa, tem treinador pessoal. “Isso tem a ver com a cultura do povo. Até pelo sofrimento causado pelas guerras, o europeu é naturalmente mais disciplinado”, explica Altamiro Bottino, que não vê o futebol brasileiro pronto para abolir a concentração antes das partidas. “Já melhorou bastante, mas ainda não vejo nos clubes daqui o senso de profissionalismo necessário para isso.”

Um grupo ainda reduzido de atletas no Brasil – geralmente aqueles com experiência na Europa – demonstra cuidados especiais com a forma física. No Palmeiras, Zé Roberto e Felipe Melo compraram aparelhos como botas de crioterapia (tratamento com gelo ou baixas temperaturas) e eletroestimulador para continuar o tratamento realizado no clube em suas casas. “Quando eu tinha 20 e poucos anos, eu jogava um dia e já queria jogar no outro. Hoje não dá mais, mas a estrutura do clube, transferida para minha casa, me ajuda muito”, conta Zé Roberto, de 42 anos, que não descuidou nem nas férias. “Tive de ir na Alemanha resolver umas coisas e aproveitei para correr um dia na neve, a -12°.  Eu gosto de treinar, sempre gostei. Faço corrida e gosto de fazer fortalecimento muscular para prevenir lesões.”

A alimentação dos atletas, claro, também é controlada. Nutricionistas dos clubes passam orientações individualizadas, com base nos dados que lhe são fornecidos. “Não é só para emagrecer, alguns atletas precisam engordar, outros precisam ficar mais fortes…”, explica Antonio Fedato. A refeição dos atletas deve ser feita quatro antes das partidas e geralmente é composta por grande quantidade de batata ou massas. “Mais de 70% dela tem de ser de carboidrato para digerir e encher as reservas de glicogênio.” A cervejinha está liberada, mas em doses moderadas, e, claro, nas folgas.

O smartphone em campo

Os celulares se transformaram no terror de muitos treinadores de futebol. Pep Guardiola, por exemplo, mandou cortar o 3G de algumas partes do CT do Manchester City, para evitar que os atletas acessassem suas redes sociais o tempo todo. No Palmeiras, os smartphones não chegam a incomodar tanto – e até ajudam em alguns momentos. Thiago Santi conta que o veterano Zé Roberto resolveu um problema graças aos apitos do celular. “Quando chegou em 2015, o Zé não estava muito bem hidratado. Ele instalou um aplicativo super simples que sugerimos, chamado Beba Água, e acabou com esse problema. O aplicativo apita, a pessoa bebe 200ml, até completar o que consideramos ideal, que é três litros por dia. E ele viu que isso melhorou seu rendimento.”

O período da noite é o favorito dos atletas viciados em postagens nas redes sociais, especialmente quando estão entediados na concentração. O hábito, porém, pode causar insônia, pois os olhos e o cérebro são mais sensíveis à chamada “luz azul” de celulares e tablets. Por isso, os atletas foram instruídos a ativar o recurso “Night shift” de seus celulares, que aumenta a temperatura da cor da tela (fica mais amarelada). “A tela azul impede o sono profundo, que é justamente o sono reparador. Se o atleta tiver sono leve ou agitado, ele não atuará em sua plenitude na manhã seguinte”, explica Altamiro Bottino.

 

 

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