Enfim uma Copa que lembra a era romântica do futebol
Gols fartos, poucos empates, vitórias suadas — o que mais pedir do futebol?
Antes do encerramento da primeira rodada da Copa do Mundo já corria entre os amantes de futebol, presentes ou não no Brasil, o burburinho de que nunca houve um Mundial tão bom quanto este. É cedo para um juízo definitivo, mas o que se viu até agora justifica o entusiasmo. Para quem confia sobretudo na concretude das estatísticas, o fim do capítulo da primeira rodada, na terça-feira 17, apresentava algumas impressionantes: a média de três gols por partida nos dezesseis primeiros confrontos era a maior desde o Mundial de 1958, quando Pelé tinha 17 anos e o Brasil foi campeão pela primeira vez; o número de empates, apenas dois, foi o menor desde 1954; e a quantidade de “viradas”, seis, superou a da Copa de 1970, quando por cinco vezes a equipe que começou o jogo perdendo conseguiu sair vencedora. Gols fartos, poucos empates, vitórias suadas – o que mais pedir do futebol?
Muito mais, naturalmente, e aí entramos num jogo cujo resultado os números não traduzem tão bem, mas a sensibilidade do torcedor registra infalivelmente. Uma Copa inesquecível precisa de gols bonitos, mais que bonitos, obras-primas da arte de mandar a bola para a rede – como aquele de cabeça de Van Persie, o primeiro dos cinco que a Holanda meteu na Espanha. Precisa de goleadores como o alemão Müller, que marcou três vezes já na estreia. É bom que haja surpresas também, quesito no qual, além da goleada inclemente sofrida pela Espanha em seu primeiro jogo, a derrota do Uruguai diante da Costa Rica teve brilho intenso. Como nada disso ocorre por diletantismo, mas é para valer, também ajuda na receita de um grande Mundial que algum sangue metafórico seja logo derramado, como se viu na eliminação da Espanha pelo Chile no Maracanã – a primeira vez na história em que os detentores do título caíram em sua segunda partida.
A toda essa atividade é preciso acrescentar a moldura de torcedores quase sempre pacíficos, mas – numa competição na qual os brasileiros ocupam posição curiosamente discreta – empolgados e ruidosos. Em cenário tão positivo, até aquilo que a Copa ainda não mostrou contribui para engordar suas promessas: embora Neymar já tenha marcado dois gols, uma atuação convincente dos donos da casa é o item mais precioso desse estoque potencial. Mesmo com o Brasil jogando pouca bola, porém, uma semana desta apaixonante Copa do Mundo foi mais que suficiente para vencer o mau humor inicial do público brasileiro com o evento. Apesar de todos os erros cometidos na preparação, o Mundial do Brasil já é um sucesso.
Cabe a pergunta: por quê? A resposta não deve ser buscada na esfera política, que, inevitavelmente envolvida num torneio esportivo dessa dimensão, passa longe do seu centro de interesse. A explicação mora sobretudo dentro de campo, mas não é cristalina. Cultores de esquemas táticos começam a dizer que a Copa de 2014 entrará para a história como aquela que marca a transição da hegemonia do futebol baseado na posse de bola – corporificado pela desditosa seleção espanhola, que trouxe ao Brasil uma cópia pálida de si mesma – para o reinado das equipes que propõem um jogo de contra-ataques rápidos e letais, simbolizado pelo lépido atacante holandês Robben. Nesse entrechoque de estilos opostos estaria a explicação para a vulnerabilidade defensiva da velha escola e para o grande número de gols marcados nos campos brasileiros.
Seja como for, nenhuma tese estará completa se não levar em conta um fator ao mesmo tempo óbvio e imponderável: tudo isso se passa no país que tem a seleção mais vitoriosa da história e que, para além do clichê, trata o futebol como paixão e esteio de uma certa identidade nacional. Só aqueles que o cronista Nelson Rodrigues chamava de “idiotas da objetividade” negariam que tal ambiente acaba por influenciar os jogadores, na forma de uma motivação adicional. Na quarta-feira 18, o jornalista Barney Ronay escreveu no diário inglês The Guardian que “as coisas parecem diferentes no Brasil. Elas parecem brasileiras: a grama, a luz, a sensação de estar num país realmente vasto, de longe a maior das nações futebolísticas”. Talvez não seja só poesia. Segundo Pelé, toda a equipe brasileira estava especialmente determinada a vencer a Copa de 1966 porque ela se realizava na Inglaterra, país natal do jogo. Deu tudo errado, como se sabe, mas a revelação ajuda a entender o que podem estar sentindo os atletas de todo o mundo no “país do futebol”.
Para ler outras reportagens compre a edição desta semana de VEJA no IBA, no tablet, no iPhone ou nas bancas.
Outros destaques de VEJA desta semana