Eficiente e discreto: Lucero, o argentino goleador do Fortaleza
Aos 33 anos, camisa 9 ainda foge dos holofotes, mas vive no Brasil a melhor fase na carreira; de Junín a capital cearense, ele narra sua história à PLACAR
Texto publicado na edição 1517, de novembro de 2024
Pouco se sabe sobre Juan Martín Lucero para além de sua notória capacidade goleadora. “Sou uma pessoa simples e humilde, de perfil discreto”, diz o atacante argentino do Fortaleza ao justificar os quase dois anos de futebol brasileiro praticamente ileso a entrevistas. Foram raras aparições em coletivas de imprensa e apenas um papo exclusivo, a um jornal argentino. Aos 33 anos, o artilheiro do Laion optou por se preservar.
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“Eu sou de falar pouco e me manter à margem de tudo. Quando as coisas vão bem, eu sei que vou receber elogios, mas as pessoas não estão preparadas para as coisas negativas. Então eu sou da mesma maneira, nos momentos bons e ruins, não troco minha forma de ser”, conta, em bom portunhol à PLACAR.
“No futebol, quando eu comecei, havia jogos que eu saía muito aplaudido e em outros acontecia o oposto. Eu não entendia muito bem, mas, conforme vamos ganhando experiência, passamos a entender como as coisas funcionam. O que mais me serviu na vida e na minha carreira foi manter esse equilíbrio”, prosseguiu.
Dentro de campo – onde mais importa –, Lucero se comunica bem, especialmente com a torcida tricolor. Na atual temporada, marcou 23 gols até o fechamento desta edição. É o maior goleador estrangeiro no futebol brasileiro no ano e terceiro artilheiro geral do futebol brasileiro na temporada, ainda correndo atrás da artilharia do Campeonato Brasileiro. Em pouco tempo de casa, também se tornou uma referência do elenco. Lidera por exemplo, fala pouco e joga muito.
Questionado sobre suas inspirações, Lucero surpreende, como em um toque por cobertura. “Gosto muito do Benzema, ele joga muito, mas isso todo mundo vê. Então assisto a outros camisas 9 de divisões inferiores, para aprender com eles.”
A personalidade é reflexo de sua criação. Da pequena Junín, cidade localizada na região de Mendoza, mais próxima de Santiago do Chile do que da capital argentina, Buenos Aires, Lucero criou os laços de paixão com o futebol: “Meu pai e minha mãe contam que eu via qualquer coisa redonda e queria chutar, falava gol, futebol e pelota (bola em espanhol)”.
O apelido de “El Gato Chico” (o pequeno gato) vem dessa época e é herança do pai, que desde pequeno subia nas árvores para recuperar as bolas perdidas. Lucero passou a acompanhá-lo nos jogos quando criança. Agora adulto, assumiu a alcunha de El Gato.
“Meu pai quando jogava era um ponta-esquerda, canhoto, como um extremo. Ele me acompanhava nos jogos somente nos fins de semana porque trabalhava muito”, conta.
Apesar da influência, ele destaca o papel da mãe, que o levava aos treinos da liga mendocina quase sempre de bicicleta. Aos 13 anos, mudou-se sozinho para Buenos Aires para jogar em um clube parceiro do River Plate. A aventura se deve a um olheiro chamado Daniel Venturi, que apareceu na casa da família Lucero com a proposta de levá-lo até a capital.
“Ele mudou a minha vida. Se não tivesse batido na porta de casa, eu ainda estaria por lá”. Eles mantêm contato e a inspiração foi tão grande que o artilheiro já pensa em seguir o mesmo caminho quando parar. “Se eu continuar no futebol, vai ser criando oportunidade para os jovens. Senão, vou virar amigo de algum arquiteto e construir algo”, brinca.
Lucero é um dos vários andarilhos da bola. Profissionalizou-se pelo Defensa y Justicia e em seguida rumou para o Independiente, mas não se firmou no tradicional clube de Avellaneda.
Aceitou, então, a proposta de um mercado alternativo: Malásia (leia mais no box abaixo). Após pouco menos de um ano na Ásia, sentiu falta de maior exigência competitiva. De lá foi para o Tijuana, do México, e depois para o Godoy Cruz, pertinho de casa. Com o time mendocino, avançou às oitavas de final da Libertadores em 2019, quando foi eliminado pelo Palmeiras.
Ao final do empréstimo, retornou ao Defensa y Justicia e experimentou uma incrível redenção na carreira. “Foi como recomeçar a minha carreira do zero, depois de todo esforço que eu havia feito. Fui, mas não tão convencido. No segundo dia eu me machuquei, panturrilha. Me recuperei e na sequência veio uma lesão no joelho. Fiquei praticamente seis meses fora”, conta. “Estava muito abaixo, mas era tudo uma questão mental. Nas férias, pedi mais seis meses para o presidente, fiquei treinando, me recuperando, e voltei a jogar e a fazer gols. De repente, em março, veio a pandemia e parou tudo.”
O protagonismo e o espírito artilheiro foram retomados, mesmo, já com a camisa do Vélez Sarsfield, a mando do técnico Mauricio Pellegrino. Pelo time de Liniers, participou de 27 gols na temporada. Foi quando, enfim, chamou a atenção do Fortaleza.
Na PLACAR de março deste ano, o técnico Juan Pablo Vojvoda exaltou o verdadeiro amor encontrado em Fortaleza. O sentimento do compatriota
é semelhante. “Eu me sinto em casa, mas os primeiros meses foram difíceis”, diz, citando o calor escaldante como empecilho inicial.
“Agora eu amo, vou à praia, as noites são boas para caminhar na Beira–Mar. Só vou morar em cidade de praia, nunca mais no frio.” Falar da capital cearense fez o tímido artilheiro se soltar. “As pessoas que vivem em cidades muito grandes vivem em outro ritmo, com muito estresse. É mais difícil de perceber as pessoas ao lado. Aqui todo mundo é muito mais atento ao que o outro necessita. Não só no clube, mas eu percebo isso andando na rua, mesmo.”
Em equilíbrio, como ele mesmo destaca inúmeras vezes ao longo da conversa, os números e o desempenho do Gato Lucero subiram e chegaram a chamar a atenção até mesmo de gigantes como o Boca Juniors. O argentino, no entanto, não planeja retornar à terra natal tão cedo.
“Boca, River… são equipes históricas, mas é preciso ter um combo completo. O país está ruim, muita instabilidade e insegurança. Jogar lá não quer dizer que vai ser tudo linear, é preciso equilíbrio. Eu busco isso mais que qualquer outra coisa hoje”.
Não é à toa que o contrato com o Fortaleza foi renovado por mais três anos, até o final de 2027. “É um clube muito organizado e tudo funciona à perfeição. O equilíbrio econômico e esportivo, essa visão de crescimento, é algo que eu busquei durante muito tempo. Estamos as duas partes à procura de um crescimento mútuo.”
Lucero também destaca a força que irrompe das arquibancadas: “É uma torcida muito fanática, que é pura e está exclusivamente por amor. Os grandes times levam torcedores ao estádio pelo que fizeram ou o que foram, mas aqui é como um amor de bairro, de cidade, que cresce e fica cada vez mais forte”.
A campanha do Laion, na briga pelo título do Campeonato Brasileiro a poucas rodadas do fim, já é histórica. El Gato acredita no projeto e vê a equipe caminhando para um título – quem sabe até uma Libertadores: “É a glória eterna, como dizem. Se fizermos uma boa fase de grupos, no mata-mata tudo pode acontecer”. A vaga já está garantida. Por enquanto, os objetivos são mais “singelos”: retomar a boa fase e bater os 24 gols da última temporada. Falta pouco.
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A BRIGA (FORA DE CAMPO)
Saída do Colo-Colo para o Fortaleza ainda pé alvo de disputas judiciais
Lucero era desejo antigo do Fortaleza. O argentino já havia sido procurado pelo Leão do Pici em 2021, mas preferiu jogar no Colo–Colo. No Chile, disputou a Libertadores e vitimou o próprio Fortaleza na fase de grupos: gol e assistência em dois jogos. A atuação fez crescer o interesse tricolor, e o namoro, enfim, acabou em casamento – e litígio com o antigo amor.
O próprio jogador pagou a rescisão contratual, mas o Cacique de Santiago entendeu o cenário como aliciamento do Fortaleza e entrou com uma ação que corre no CAS (Corte Arbitral do Esporte) e se estende por mais de um ano. Durante esse período, três audiências já foram realizadas envolvendo os clubes e a Fifa. A entidade máxima do futebol chegou a aplicar um transfer ban de duas janelas ao Fortaleza e a suspensão de Lucero por quatro meses, mas o clube entrou com efeito suspensivo.
Houve uma tentativa de acordo financeiro entre as partes que até agora não saiu do papel. O veredito do caso não tem um prazo para sair. Lucero demonstra confiança.
“Não me preocupa (ser suspenso), porque não fiz nada de errado. Segui exatamente o que dizia meu contrato e o que o meu advogado me permitiu fazer. Agora eu só tenho que esperar, mas estou tranquilo, está tudo muito claro. Prefiro não falar muito até que se defina a situação, mas vai dar tudo certo. Acredito muito no trabalho dos advogados”, diz.
“Trabalho muito com meus psicólogos para que essa situação não cause nenhum tipo de ansiedade. Tento ver o lado positivo de tudo, ou de uma maneira que não me afete”, completa.
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AVENTURA MALAIA
Em 2016, após viver uma má fase no Independiente, Lucero recebeu um convite inesperado. O Johor Dahul, da Malásia, apresentou uma proposta e o argentino, que já conhecia o time por causa de um ex-companheiro, topou o desafio
“Gosto desse tipo de aventura. Era uma mudança financeira para mim e para minha família, e não me arrependo. Conheci uma cultura que eu acreditava não existir mais. O time pertence ao príncipe, filho do rei da Malásia. Os dois mandam em tudo por lá, controlavam a cidade. Me chamava a atenção o respeito que todas as pessoas tinham com os dois.
O dono morava em um palácio e convidava sempre algumas pessoas para jantar por lá. Eles tinham tudo, uns mil carros de colecionador, barcos de todos os tipos, ilhas, tudo que se pode imaginar, e protegido pelos soldados. Ele queria ganhar todos os campeonatos e não tinha rival, então conquistamos a Liga da Malásia, a Copa da Malásia, a Taça da Malásia e até a Recopa.
Quando empatávamos, tinha muita cobrança, ele entrava no vestiário de forma agressiva gritando com os próprios malaios. Ele queria demonstrar para nós, gringos, que estava chateado, mas não falava inglês, então era como se fosse uma indireta para nós. O time tinha o melhor de tudo, ótima infraestrutura, mas decidi sair porque comecei a ter saudades de jogar em alto nível, de aparecer na televisão… de tudo.
Não queria desaparecer. Eu sentia que estava ganhando bem, mas perdendo no esporte.”
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