Caneladas do Flamengo e o vírus bagunçam o Campeonato Brasileiro
Jogadas contraditórias e inconsequentes da diretoria do time irritam os outros dezenove clubes da Série A, a CBF e até o presidente Jair Bolsonaro

O estádio Allianz Parque, em São Paulo, foi o palco da palhaçada: a poucos minutos de Palmeiras x Flamengo, um clássico do futebol brasileiro com transmissão na TV aberta para todo o país, ninguém sabia se haveria jogo. A confirmação chegou com uma liminar de última hora, mas o resultado jogo (1 a 1) ficou em segundo plano diante de tamanha estultice. Se a bola não tivesse rolado, graves precedentes jurídicos abririam as portas do caos. “O Flamengo foi irresponsável e botou todo o sistema em risco”, afirmou a VEJA um dirigente da Confederação Brasileira de Futebol (CBF).
O clube mais popular do país tornou-se, quase na mesma medida, o mais contestado. É até natural que o time dominante — no caso, o atual campeão da Libertadores e do Brasileirão — não goze de simpatia dos rivais. Além disso, a prática de só olhar para o próprio umbigo costuma ser a regra entre os dirigentes. Ainda assim, há um consenso entre os pares que o Flamengo vem dando caneladas nos bastidores da bola, sobretudo por causa de suas ligações com poderosos. As últimas polêmicas começaram na retomada da Libertadores, em viagem ao Equador que culminou na contaminação de ao menos 41 funcionários, incluindo dezenove atletas e o presidente do clube, Rodolfo Landim. A partir daí, o Flamengo, justamente quem mais acelerou o retorno do futebol, acionou o Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) e a própria CBF para tentar adiar o seu próximo jogo, alegando prejuízo técnico e risco de contaminação ao adversário. O pedido foi rejeitado com base no regulamento, que prevê a realização das partidas caso as equipes tenham no mínimo treze atletas saudáveis.
Depois disso, entrou em cena o Sindeclubes, sindicato dos clubes do Rio, presidido por José Pinheiro dos Santos, que vem a ser funcionário da segurança do Flamengo — há aqui, portanto, algum conflito de interesses. Sua ação civil pública pedindo o adiamento foi aceita por tribunais trabalhistas, o que revoltou rivais. “Foi uma atitude nojenta”, afirma o diretor de um grande clube do país. Sergio Sette Camara, presidente do Atlético-MG, chegou a sugerir a exclusão e o rebaixamento do Flamengo, uma bravata, diga-se, sem sustentação jurídica.

O novo coronavírus afetou eventos esportivos em diversas partes do mundo, mas no Brasil, como de praxe, o caos tem sido pior. Ninguém se entende sobre o retorno das torcidas aos estádios. No Rio, os governos do município e do estado autorizaram a abertura parcial de suas arquibancadas, mas outras administrações, federações e times concordaram que a retomada deveria se dar de forma isonômica, ou seja, em todas as regiões do país. O Flamengo também foi um péssimo exemplo nesse caso, querendo levar vantagem sobre os concorrentes. Em uma reunião virtual, Rubens Lopes, presidente da federação carioca (Ferj), bateu boca com o mandatário da CBF. “Não seremos reféns de um time”, esbravejou Rogério Caboclo. Dois dias depois, a CBF marcou nova reunião, mas Flamengo e Ferj faltaram.
Os últimos acontecimentos tiveram efeito imediato, e mal dissimulado: a união de todos os outros dezenove times da primeira divisão contra o Flamengo. Outro episódio foi lembrado: em julho, a equipe carioca brigou pelo direito de transmitir a final da Taça Rio mesmo sendo visitante, o que “rasgaria” não só o regulamento do torneio como também a Medida Provisória 984, que o próprio Flamengo articulou junto ao governo federal.
A soberba do presidente do Flamengo, Rodolfo Landim, tem causado atritos até mesmo com membros do clube — há uma corrente na diretoria que não concorda com as suas atitudes recentes. Landim, que passou a semana com tosse, de cama, também foi repreendido pela mulher por ter viajado em plena pandemia. Outra decepção vem de Brasília: o presidente Jair Bolsonaro esperava maior apoio do Flamengo na luta pela aprovação da chamada “MP do Mandante”, que alterou as regras dos direitos de transmissão e que acabou enfurecendo o inimigo comum, a Globo. A medida é desprezada por quem decide, o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia. Dirigentes do Flamengo e de outros clubes foram à capital nesta semana em busca de solução, mas a tendência é que o texto caduque em outubro. Desprestigiado, o Flamengo rejeita a reconciliação. “O Flamengo está obtendo grandes êxitos esportivos e financeiros, é normal que seja combatido. Há muita inveja”, debocha o vice-presidente jurídico Rodrigo Dunshee. Que desgosto, Flamengo.
Publicado em VEJA de 7 de outubro de 2020, edição nº 2707