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A Colômbia nos tempos de Saldanha

Em mais um de seus divertidíssimos textos aqui publicados, Agamenon escreve que acompanhou A Segunda Copa Mundial (1939-1945) ao lado de João Saldanha. E logo emenda: “O Saldanha na verdade não foi, mas mentiu pra todo mundo dizendo que tinha ido”. Gaúcho de nascimento, carioca por adoção e cidadão do mundo, João Saldanha foi um […]

Em mais um de seus divertidíssimos textos aqui publicados, Agamenon escreve que acompanhou A Segunda Copa Mundial (1939-1945) ao lado de João Saldanha. E logo emenda: “O Saldanha na verdade não foi, mas mentiu pra todo mundo dizendo que tinha ido”.

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Gaúcho de nascimento, carioca por adoção e cidadão do mundo, João Saldanha foi um dos mais fantásticos personagens da história do futebol brasileiro. Jornalista esportivo e comentarista de rádio e televisão, comandou nossa seleção nas eliminatórias para a Copa de 70, inventou as “feras”, como batizou seus jogadores, reacendeu o orgulho nacional em torno do escrete – desacreditado a partir do fracasso de 1966 -, era comunista desde criancinha e contava histórias como ninguém.

Em todas, aparecia como protagonista. Não vamos dizer que costumava mentir, como brincou Agamenon, pois o verbo é muito forte, mas soltava a imaginação, digamos, ao relatar suas fabulosas aventuras. Até 1990, quando morreu durante o Mundial da Itália, em Roma, aos 73 anos, garantia que estivera presente em todas as Copas, exceto a de 1930, embora não conseguisse provar. Dava a escalação completa de qualquer time, de qualquer época, citando mesmo alguns reservas (quem teria informação suficiente para contestá-lo?). Jurava que havia marchado com Mao Tsé-Tung na revolução chinesa de 1949. De temperamento explosivo, foi atrás do goleiro botafoguense Manga, com revólver em punho, e atirou duas vezes sem atingi-lo. (É fato.) Para acertar contas com outro desafeto, o truculento técnico Yustrich, invadiu armado a concentração do Flamengo. (Verdade também.)

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Apesar de brigar muito e do pavio curto, era uma companhia adorável. Um dos meus maiores privilégios como repórter foi ter convivido algumas vezes com ele, durante coberturas da seleção. O período mais longo foi nas eliminatórias para a Copa de 78. Ficamos mais ou menos um mês em Bogotá, vizinhos de quarto em um pequeno hotel. Ele adorava hotéis econômicos. Volta e meia, nas horas de folga dos canarinhos, que se adaptavam à altitude com vistas a um jogo contra a Colômbia, chamava o fotógrafo Rodolfo Machado – uma figura maravilhosa, sempre de bom humor – e eu para dar umas voltas nas redondezas. Bogotá era um tanto feia e pobre, bem diferente da moderna cidade em que se transformou. Ele conhecia cada esquina. Aliás, outra especialidade sua: parecia guardar na cabeça, de cor, os mapas das metrópoles do mundo inteiro, nome das ruas, avenidas, transversais, paralelas, mãos de direção…

“Eles atiravam daquela sacada”, apontava para um prédio. “E daquela ali, daquela outra… Escapei por pouco.” Referia-se às revoltas que ensanguentaram a capital da Colômbia em 1948, no episódio que ficou conhecido como Bogotazo. Perto do que aconteceu por lá, as manifestações de junho do ano passado no Brasil foram uma brincadeira infantil. No Bogotazo, morreram cerca de 3 000 pessoas e perto de 130 000 imóveis foram incendiados. Saldanha, evidentemente, estava presente, combatendo ao lado dos revoltosos.

De repente, do nada, ele nos disse que uma companhia de balé soviético acabara de chegar a Bogotá. Achamos estranho, pois não tínhamos lido nada a respeito. “Vão dar um espetáculo esta noite e fazem questão de minha presença”, explicou. “Mais uma história do Saldanha”, cochichou Rodolfo no meu ouvido. Quando voltamos ao hotel, ele estava sendo aguardado na recepção por dois russos sisudos, com jeitão de agentes da KGB. Entregaram para ele um envelope e se retiraram. “São os convites”, afirmou. “Vocês vão comigo.” No caminho para o teatro, onde lhe reservaram o melhor camarote, falou sem parar sobre balé, bailarinos, coreógrafos, compositores, grandes montagens.

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O homem entendia de tudo, mas naqueles dias, enquanto a seleção treinava, ele mal tocava no jogo que se aproximava. Enfrentar a Colômbia? Ora, uma moleza. Relatou que o único feito conhecido do futebol colombiano, até então, fora um dramático empate com a União Soviética – Saldanha logo deu a ficha dos jogadores, começando pelo goleiro Yashin, a Aranha Negra – na cidade chilena de Arica, pela Copa de 62. Com 11 minutos de partida, a URSS vencia por 3 a 0. No fim, a Colômbia arrancou um heroico e raro placar de 4 a 4. Anos depois, nas eliminatórias de 1970, suas feras goleariam os colombianos por 6 a 2. Era essa a tradição. Tratava-se de um freguês. E no entanto, para pasmo geral, inclusive de Saldanha, que surpreendentemente não previu nada, os cafeteros, como já eram tratados, empataram por 0 a 0 com o Brasil. O resultado provocou a demissão do técnico Osvaldo Brandão, que na véspera decidira barrar o lateral-esquerdo Marinho Chagas e seria substituído no cargo pelo capitão Claudio Coutinho.

Faz muito tempo. Brandão, Marinho e Coutinho estão mortos. O Bogotazo é uma página do passado de um país plenamente democrático, cuja economia emparelhou com a da Argentina. Aquele futebol inocente da Colômbia não existe mais. Hoje, em meio a esses recuerdos, eles nos deixam com o coração na mão. João Saldanha, se estivesse entre nós nesta ensolarada Fortaleza, talvez lembrasse do dia em que, no meio das batalhas de 1948, conheceu um sujeito que deveria ser o avô de James Rodríguez.

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