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A briga entre a Globo e os clubes pelos direitos de transmissão dos jogos

Com apoio de Bolsonaro, o Flamengo enfrenta a emissora e acelera uma nova forma de consumir futebol no Brasil

“O senhor quer tirar 3 bilhões de reais da Globo?” A provocação, feita a Jair Bolsonaro no mês de maio, atraiu na hora a atenção do presidente, que não perde a chance de revelar seu incômodo com a emissora. A frase foi ouvida durante audiência em Brasília com os representantes dos dois maiores clubes do Rio, Flamengo e Vasco. No encontro, discutia-se uma alteração no artigo 42 da Lei Pelé, que o Poder Executivo realmente poria para andar dias depois, por meio de medida provisória. O item rege a quem cabe o chamado “direito de arena”, ou seja, quem tem a prerrogativa de negociar a transmissão de eventos esportivos, a principal fonte de renda dos grandes clubes brasileiros.

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Até o mês passado, vigorava o entendimento de que o interessado em promover a exibição de uma partida de futebol deveria ter a anuência das duas partes envolvidas: o time da casa e a equipe visitante. A MP editada por Bolsonaro incluiu no texto constitucional a palavra “mandante”, tirando a necessidade de acordo com a outra parte, o que mudou as regras do jogo (com ele em andamento, diga-se). Como consequência prática, o rubro-negro carioca se sentiu autorizado a passar em seu canal oficial no YouTube, a Fla TV, a partida contra o Boavista, no dia 1º de julho, que marcou a volta do futebol no Brasil depois de quase quatro meses de paralisação em decorrência da pandemia. Empoderado por Bolsonaro, o Flamengo não aceitou os 18 milhões de reais pagos aos grandes do Rio pela Globo e partiu para a briga. A transmissão feita pela internet atingiu uma audiência inédita para um evento esportivo: pico de 2,2 milhões de usuários simultâneos na live do rubro-negro, além da arrecadação de 900 000 reais com inserções publicitárias e 70% das doações feitas por seus torcedores na plataforma de vídeos do Google — 30% ficaram com o gigante de tecnologia.

APOIO – Bolsonaro, antes do resultado positivo para Covid-19, com cartolas: mais times interessados. Marcos Corrêa/PR

A Globo, então, rescindiu o acordo assinado com os demais clubes do Carioca e com a federação de futebol do Rio, sob a alegação de “quebra de exclusividade”, embora tenha concordado, seguindo seu alto padrão de correção, em pagar os valores referentes à competição deste ano (o contrato valeria por outras quatro temporadas). Sem a Globo, inapelavelmente, na quarta-feira 8 de julho, essa nova modalidade de ver futebol fez história: a final da Taça Rio entre Flamengo e Fluminense, vencida pelo tricolor, atraiu 3,6 milhões de pessoas ao mesmo tempo no canal do YouTube do Fluminense. A transmissão de um jogo quase desimportante, de um campeonato pouco valorizado pelos próprios times que o disputam, superou a marca anterior de 3,3 milhões da live da sertaneja Marília Mendonça, celebrada como um grande sucesso da pandemia.

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São cifras poderosas que demonstram a potência do esporte como um dínamo na economia. O futebol é um dos principais produtos vendidos pela Globo ao mercado publicitário. Estima-se que a emissora fature 1,8 bilhão de reais com a venda das seis cotas anuais de propaganda vinculadas às suas transmissões de futebol, além de outro 1,4 bilhão recolhido dos torcedores que pagam pelo serviço pay-per-view dos jogos no seu canal Premiere. “A medida provisória foi feita para atender a interesses particulares, da presidência e do Flamengo”, disse a VEJA um alto executivo do mercado de transmissões esportivas. “Mas ela pode acabar beneficiando os demais clubes brasileiros. Tanto o rubro-negro quanto o governo atiraram no que viram e acertaram no que não viram.”

REFERÊNCIA - Inglaterra: ali o bolo de dinheiro é dividido de modo mais igualitário. Paul Ellis/Getty Images

Embora a motivação seja totalmente questionável, do ponto de vista político e da quebra de contrato, a mudança vai eliminar, de fato, um grande empecilho para a entrada de novos participantes interessados no mercado brasileiro de transmissões esportivas. Hoje, além da Globo, que possui acordos até 2024 com dezenove dos vinte clubes da Série A para os jogos de TV aberta e onze dos vinte nos canais por assinatura, somente a Turner, empresa americana que controla o canal Esporte Interativo, tem contrato para a exibição de jogos do Campeonato Brasileiro. Pelo texto original da Lei Pelé, 182 das 380 partidas da primeira divisão nacional não poderiam ser exibidas por reunir equipes que possuíam acordos com empresas diferentes. O atual formato de comercialização do direito de arena encarecia os valores — afinal, de nada valia ter acordo com apenas uma equipe. “Por mais que a Turner tenha chegado, não houve rompimento do monopólio dos produtos centrais (Brasileirão, Copa do Brasil e Estaduais)”, afirma Guilherme Bellintani, presidente do Esporte Clube Bahia. Isso mudou. Na largada, a MP já beneficia torcedores que foram privados de assistir a tais jogos na temporada passada.

Mas, assim como ocorre em alguns campeonatos importantes, essa disputa ainda terá jogo de volta — e será jogado em Brasília. Mais de noventa parlamentares já apresentaram emendas ao texto assinado por Bolsonaro, o que pode provocar mudanças — para um lado ou para o outro — no resultado final. “Acho bom estarmos discutindo o futebol pelo lado que importa, o da gestão, e não o das dívidas. Nesse aspecto, a MP é positiva”, diz o deputado federal Pedro Paulo Carvalho (DEM-RJ), um dos que sugeriram mudanças. “Ela nos aproxima das melhores práticas internacionais. Mas não toca no passo definitivo, que é a negociação coletiva.”

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É nesse ponto que o Brasil também se distancia dos demais países. Enquanto nas principais (e mais ricas) ligas esportivas do mundo os direitos de transmissão são negociados em bloco, por aqui impera o sistema de comercialização individual, em que cada clube defende o próprio interesse. Na Europa, tal modelo é seguido por campeonatos menores, como em Portugal, onde hoje se arrecada ainda menos dinheiro (veja no quadro abaixo). Ter a mão do Estado costuma ser ruim, mas na Inglaterra e na Espanha as regras de negociação dos direitos de TV do futebol local foram alteradas pelo governo e acabaram por aumentar o bolo, depois repartido de maneira mais equânime. “Se na Espanha a diferença de valores do time que ganha mais para o time que ganha menos é de três vezes, no Brasil a distância é de seis vezes e meia”, diz Bellintani, mandatário do Bahia.

Por aqui, aliás, há um modelo de sucesso. A Copa do Nordeste, que reúne os principais clubes da região, é administrada comercialmente pelas próprias equipes. Livre das amarras da cartolagem tradicional, houve boas inovações, inclusive em torno das transmissões das partidas: além da TV aberta (SBT) e fechada (Fox Sports), a popular “Lampions League”, como foi apelidado o campeonato, exibe jogos no YouTube e por meio de um aplicativo próprio, como fazem a NBA e a NFL, as ligas de basquete e futebol americano, referências incontornáveis. “A fragmentação do mercado estava posta. É um fenômeno maior, o da digitalização dos hábitos do consumidor, que independe da legislação sobre direitos”, diz Bruno Maia, vice-presidente de marketing do Vasco entre 2018 e 2019 e atual consultor na área. “É movimento que barateou os custos de realizar uma transmissão de qualquer tipo de evento e atraiu novas empresas, principalmente aquelas ligadas ao setor de tecnologia.”

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É prematuro, contudo, supor que as TVs sumam do mercado agora — e um erro desdenhar da excelência da Globo nas transmissões. Mas há ventos de mudança. Na Europa e nos Estados Unidos os direitos de exibição de diversas modalidades já são disputados também pela tríade Amazon, Facebook e Google. No Brasil, a empresa de Mark Zuckerberg adquiriu os direitos de partidas da Copa Libertadores e da Champions League. Com a chegada das primeiras redes de 5G, a tendência é que o streaming se fortaleça ainda mais. E cabe, portanto, a estrondosa indagação: o esporte desaparecerá da TV? Não, ao menos a curto prazo. Mas os canais tradicionais terão de se acostumar a dividir o espaço com novos atores — e a audiência do Fla-Flu de quarta-feira 8 deu a largada para um campeonato extremamente difícil, mas muito interessante.

Com reportagem de Alexandre Senechal e Luiz Felipe Castro

Publicado em VEJA de 15 de julho de 2020, edição nº 2695

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