Não é só o Flu: City também jogou terceira divisão em 1999
Finalistas do Mundial de Clubes amargaram capítulos mais tristes de suas histórias no fim do século passado; relembre no blog #TBT PLACAR
Fluminense e Manchester City conquistaram seus primeiros títulos continentais em 2023 e na próxima sexta-feira, 22, a partir das 15h (de Brasília), lutam no Estádio King Abdullah, em Jedá, na Arábia Saudita, pela inédita conquista do Mundial de Clubes da Fifa. Outra coincidência, bem menos alegre, une as equipes dirigidas por Pep Guardiola e Fernando Diniz: em 1999, tricolores e citizens viveram o capítulo mais triste de suas histórias, ao disputar a terceira divisão.
Vale ressaltar que, assim como o Fluminense, o Manchester City também já era um clube tradicional e com títulos importantes (fora campeão inglês em 1937 e 1968), mas desde sua fundação em 1880, já ficou fora da elite por 27 temporadas e possui sete títulos de Série (dois a menos do que na primeira divisão).
O ano mais triste para a ala azul de Manchester foi mesmo 1999. Não bastasse a Tríplice Coroa conquistada pelo rival United (feito que só seria igualado na Inglaterra este ano pelo esquadrão de Guardiola), o City ainda teve de disputar a terceira divisão pela primeira e única vez em sua história. O retorno à Segundona ainda se deu de maneira absolutamente dramática, com triunfo nos pênaltis, após buscar um empate em 2 a 2 diante do Gillingham, em Wembley, nos playoffs de acesso.
Ao contrário do Fluminense, que foi beneficiado pela criação da Copa João Havelange de 2000 e, na prática, saltou da terceira para a primeira divisão, o City amargou longos anos longe da elite. O clube só voltaria à elite em 2002 e, desde a chegada do investimento árabe, a partir do fim desta década, viveria sua era mais gloriosa.
O calvário do Fluminense é mais conhecido dos brasileiros e foi devidamente destacado nas páginas de PLACAR. Ainda em 1998, o Tricolor das Laranjeiras foi rebaixado para a Série C após empate em 1 a 1 com o ABC, no estádio Machadão, em Natal (RN). Pelo regulamento, caiam os últimos de cada um dos quatro grupos com seis equipes em cada, e mais os dois piores entre os times restantes. Com duas vitórias, cinco empates e três derrotas, o Fluminense fez companhia a Náutico, Atlético-GO, Juventus, Americano e Volta Redonda, os outros rebaixados.
Parecia o fim da linha e até mesmo tricolores ilustres pareciam ter perdido a fé; João Havelange, ex-mandatário da Fifa e então presidente de honra do Tricolor, chegou a dizer: “Desse jeito, o Fluminense vai acabar”. Não acabou, muito pelo contrário, vive hoje o auge de seus 121 anos, mas passou por maus bocados. Para a disputa da Série C, o clube repatriou um velho ídolo: o técnico Carlos Alberto Parreira, campeão brasileiro com o Flu em 1984 e tetracampeão mundial com a seleção em 1994 – portanto, apenas cinco anos antes de rodar o Brasil profundo na disputa da Série C.
Em agosto de 1999, Parreira concedeu entrevista a PLACAR, na qual foi apresentado como o “Messias do Flu. Na época, o treinador prometia levar o time de volta à elite em 2001. Acabaria sendo mais rápido: liderado pelo meia Roger Flores, que chegou a ser comparado com Diego Armando Maradona, o Fluminense venceria a Série C em 1999 e entraria já no Módulo Azul, ao lado de outros grandes na Taça João Havelange, o remodelado Campeonato Brasileiro de 2000, disputado por 116 times.
Confira, abaixo, alguma das perguntas e respostas de Parreira, em 1999:
O Fluminense será campeão da Terceirona?
Temos que formar um time competitivo, apesar da dificuldade financeira. Não basta chegar na Terceira Divisão só com o nome. Isso aconteceu no ano passado e não deu certo. Não seremos apenas participantes, como fomos no Rio-São Paulo e no Carioca, onde os favoritos eram Vasco, Flamengo e Botafogo. Na série C é diferente, o Fluminense é um dos favoritos.
Quando o Fluminense subirá para a Primeira Divisão?
Muita coisa pode acontecer no ano que vem. Dizem que pode ser lançada uma Liga Nacional. Mas se tudo continuar do mesmo jeito, vamos vencer a Série C este ano; em 2000, ganharemos a Série B e, no ano seguinte, estaremos na Série A.
O senhor já disse que o atacante Roger, do Flu, lembra o Maradona…
Não. Nunca o comparei ao Maradona. O que eu disse foi com relação ao seu estilo de jogar, pois os dois são canhotos. Nada mais. Hoje, o futebol brasileiro tem muitas promessas, como Ronaldinho, o gaúcho; o Alex, um jogador frio e calculista, mas com grande habilidade. Gosto muito também do Araújo, do Goiás.
Qual a situação que o senhor encontrou ao chegar às Laranjeiras?
Calamitosa, fruto de dez anos de desmandos. O vestiário era horroroso. O time já saía perdedor. Não tínhamos computador, o Departamento Médico não tinha condições de atender ninguém, a sala de musculação tinha aparelhos velhos e quebrados. Criamos uma estrutura profissional. Hoje, o vestiário está bom, a sala de musculação tem aparelhos novos e estamos usando o Centro de Treinamentos de Xerém, que estava largado. Pode-se dizer que isso não faz gol, mas garanto que muda a disposição dos jogadores. Quando chegamos, havia 62 atletas. Hoje, temos 24.
Tirar o Fluminense do buraco é pagar uma dívida de gratidão?
É claro. Tive oito anos maravilhosos no Flu, onde fui campeão carioca, como preparador físico, em 1971 e 1973, e, como técnico, em 1975; e campeão brasileiro em 1984. Estou aqui porque quero fazer parte deste momento de reabilitação.
Dois meses depois, PLACAR voltou às Laranjeiras para acompanhar o drama da equipe na Série C. A repórter Martha Esteves narrou o momento e reforçou que “o tetracampeão Parreira confere dignidade à campanha do Fluminense na Terceira Divisão”; O blog #TBT PLACAR, que todas as quintas reproduz um tesouro de nossos 53 anos de arquivo, transcreve na íntegra a matéria de 1999:
A estrela sobe
Ele é um milionário que poderia estar vivendo à sombra da fama e da riqueza conquistadas em quase 30 anos de carreira vitoriosa. Mas Carlos Alberto Parreira, 56 anos, age como um rico excêntrico. Em vez de pisar nos melhores gramados do planeta, frequentar os hotéis cinco estrelas mais luxuosos do mundo e enfrentar equipes de primeira linha do futebol internacional, ele passa seus dias vivendo a dura realidade da Terceira Divisão.
Os amigos insistem em saber o porquê de tal sacrifício. O técnico que comandou o Brasil na campanha do tetra relembra os duros tempos em que atuava como goleiro no futebol amador. No final dos anos 60, o candidato a guarda-metas colocava o seu time na boléia de um caminhão para jogar em campinhos espalhados pelo subúrbio carioca. “Era tudo por amor. Por isso não sinto qualquer constrangimento em estar aqui no Fluminense disputando a Terceirona”, justifica. “Ao contrário, tenho a maior honra.” A identificação de Parreira com o Fluminense decorre do fato de ter trabalhado durante dez anos nas Laranjeiras e de ter sido campeão brasileiro em 1984. “Tenho a certeza de que vamos tirar o clube dessa situação, apesar das dificuldades”, promete o técnico, ratificando que honrará seu compromisso com o Tricolor até dezembro.
Aristocracia decadente
O Fluminense, considerado o mais aristocrático clube do Brasil, se despiu da imponência e chega aos 97 anos como plebeu. O dinheiro é escasso e o elenco limitado. Mas a chegada de Parreira, um técnico que trabalhou na Espanha, nos Estados Unidos, na Turquia e nos Emirados Árabes, mudou vertiginosamente as condições de trabalho do time. Apesar do rebaixamento para a terceira divisão, o Fluminense deste ano mostrou evolução em relação ao de 1998. Senão no campo, pelo menos na infra-estrutura. A vinda da comissão técnica tetracampeã do mundo impôs melhorias. O departamento de futebol, o vestiário e a sala de musculação foram reformados com aparelhagem de última geração em um investimento de 100 mil reais. “A terceira divisão é uma outra realidade mas se temos um ideal, temos que nos adaptar à ela”, constata Parreira que, recentemente, recusou propostas do Santos e do Corinthians para voltar à primeira divisão.
A ajuda financeira da CBF é zero. Com o caixa à beira do CTI, a única fonte efetiva de receita é, ironicamente, a Unimed Assistência Médica, que estampa o nome na camisa. Um contrato que rende 180 mil reais por mês. Para se ter uma idéia, o Flamengo recebe do seu patrocinador, a Petrobrás, 450 mil reais por mês.
Na areia movediça que é a Série C, o Fluminense está pagando para enfrentar times como o Dom Pedro II, uma equipe formada por bombeiros de Brasília. Segundo o presidente tricolor, David Fischel, o gasto mensal da equipe está em torno de 1,25 milhão de reais, incluindo: folha de pagamento (cerca de 400 000 reais), viagens e despesas com hospedagem ao longo dos quatro meses de competição. O Vasco, por exemplo, gasta mensalmente cerca de 3,75 milhões de reais.
“O Fluminense desembolsa 20 000 reais por jogo. Estamos conscientes do prejuízo. E, mesmo que alcancemos o único objetivo de ascender à Série B, a receita dos jogos nem sequer dará para empatar com as despesas”, conta Fischel, resignado. Além do fracasso financeiro, a Série C é uma pedreira. A maioria dos gramados é ruim, os estádios têm condições precárias e as torcidas ficam em cima dos adversários. “E todos querem tirar uma casquinha do Fluminense, que é a principal atração e tem a obrigação de vencer”, admite Parreira.
Para afrouxar o nó da gravata, o clube conta com a cota de 1 milhão de reais paga pela tevê, que transmitirá 60% dos jogos do Tricolor. Se estivesse na Primeira Divisão, o Flu receberia o mesmo que seus primos-ricos: 9,5 milhões de reais. Mas não fosse por esse milhão, os salários de jogadores e comissão técnica do Fluminense estariam atrasados.
Monza 93
Mas, e o time? Bem, se antes de assumir a vice-presidência de futebol em janeiro, Francisco Horta dizia que o time de 1998 precisava usar crachás que identificassem os jogadores, o deste ano, que ele ajudou a montar, não está diferente. Dezesseis reforços foram contratados de várias partes do país, todos por empréstimo, um gasto total aproximado de cerca de 1,5 milhão de reais. Alguns vieram de graça. De Betinho, do Botafogo da Paraíba, a Rogério, do Veranópolis, do Rio Grande do Sul, a média salarial é de 12 000 reais. O jogador mais bem pago do Fluminense é Roni, homem de Seleção Brasileira, que recebe cerca de 80 000 reais por mês.
No exterior, o Fluminense foi buscar o desconhecido goleiro argentino Sandro Airet. Até na Macedônia (ex-república iugoslava), Horta julga ter encontrado a criatividade que faltava ao meio campo tricolor contratando apoiador Viktor Trenevsky. “Chegamos a receber por dia cerca de 30 indicações de jogadores. Se contratássemos todos…”, lembra o supervisor Américo Faria. Segundo Parreira, o clube não investiu em grandes nomes porque não tem dinheiro em caixa. “O clube aproveitou oportunidades trazendo jogadores por empréstimo dentro de sua realidade financeira. Esperamos que dêem certo”, torce Parreira.
O poder aquisitivo do elenco também caiu. Enquanto a maioria dos jogadores de Vasco e Flamengo desfilam em importados Cherokees e Mercedes último tipo, os do Fluminense chegam às Laranjeiras em carros nacionais. O atacante Róbson, por exemplo, tem de se contentar com um Monza 93. Somente Roni, estrela da Seleção Brasileira, pilota um Audi do ano. Em matéria de elegância o grupo também perdeu em charme. O ex-capitão Nonato, que desfilava roupas e calçados de grife, deixou as Laranjeiras em julho. Em seu lugar, o que se vê são jogadores de bermuda, camiseta e tênis desamarrados. Até Roni, com seu status de Seleção, dá de ombros ao requinte e se veste despojadamente. “Me sinto mais à vontade”, admite.
Sentir na pele
Mas, o que importa é vencer a Terceira Divisão. Para isso, Parreira conta com os olheiros Duílio e Clayton Val, encarregados de assistir aos jogos dos adversários desconhecidos. Além das dicas para neutralizá-los, os observadores dão informações sobre os acanhados estádios (verdadeiros alçapões), onde o Tricolor tem de jogar. “Antes de iniciar a competição, já sabíamos que iríamos enfrentar todas essas dificuldades. Como nosso objetivo é voltar à Série B, temos de nos sintonizar no clima da Terceira Divisão e coroar nosso trabalho com o título”, finaliza Parreira.
Para enfrentar os gramados irregulares da Terceirona, o preparador físico Moraci Sant’Anna tem um cuidado todo especial. “Trabalhamos mais para que os jogadores fiquem menos expostos a contusões. Após os treinamentos, submeto os atletas a pelo menos 15 minutos de alongamentos para que a intensidade dos exercícios não prejudique relata Moraci.” Para o zagueiro Alexandre Lopes, o esforço físico é o menor de todos os problemas. “Quando jogamos fora de casa, a torcida adversária fica em cima, colocando até mesmo a vida dos jogadores em risco. Estamos sentindo isso na pele.
Mas vale tudo pelo objetivo nobre de recolocar o Fluminense na elite.” Já a estrela Roni não pensa assim: “A gente só se lembra que está na Terceirona quando entra em campo. No Fluminense, há estrutura e motivação”. Se tudo der certo para o Flu – e tudo continuar errado para o Botafogo -, no ano que vem, os dois times cariocas finalmente poderão se reencontrar num campeonato nacional, no caso, a segunda divisão do brasileiro.