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La garantía soy yo! Gamarra era tido como melhor zagueiro do mundo em 1998

Consagrado na Copa do Mundo da França, na qual não fez uma falta sequer, capitão do Corinthians abriu sua intimidade à PLACAR

Carlos Alberto Gamarra Pavón. Este era o nome que representava segurança para os torcedores do Corinthians e preocupação para os atacantes há 25 anos. Um dos zagueiros mais importantes da história do futebol brasileiro, ídolo também no Internacional e com passagens apagadas por Flamengo e Palmeiras — Gamarra viveu seu auge após a Copa de 1998, quando a seleção paraguaia foi eliminada pela campeã França nas oitavas, com um gol de ouro na prorrgação. O camisa 4 se destacou com sua técnica e capacidade de desarmar, e, sobretudo, pelo fato de não ter cometido uma falta sequer. De volta ao Parque São Jorge, passou a ser tratado como o melhor e mais leal defensor do mundo, e fez jus a isso na campanha do título alvinegro.

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Na edição de setembro de 1998, Gamarra abriu sua intimidade ao repórter Alfredo Ogawa e contou que, de fato, se preocupava em não ser um jogador violento. “Sempre penso que o outro é um profissional, pode ser um pai de família como eu.” E se a falta for o único jeito de evitar o gol? “Eu faço a falta. Mas não precisa ser desleal”.

Colegas de peso, como o goleiro Chilavert e o técnico Paulo Cezar Carpegiani (responsável por transformá-lo de volante em zagueiro), o consideravam o melhor da posição. O chileno Elias Figueroa, ídolo colorado, reforçava o coro e não se importava em ser comparado ao paraguaio. “Hoje, ele é o melhor do mundo”, elogiou Figueroa à PLACAR.

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O blog #TBT PLACAR, que todas as quintas-feiras recupera algum tesouro de nossos arquivos, reproduz abaixo a reportagem na na íntegra:

La garantía soy yo!

Após uma brilhante Copa da França, a torcida do Corinthians e o resto do Brasil entenderam por que o paraguaio Carlos Gamarra é celebrado como o melhor zagueiro do mundo

Por Alfredo Ogawa

Todo metido a valentão, o homem se aproximou de Gamarra. A cena aconteceu numa festa, no Paraguai, e a frase veio como um desafio: “Vou dançar com a sua mulher. Apostei uma caixa de cerveja com um amigo que eu conseguiria”. Isso foi em 1994, Gamarra tinha 23 anos e defendia o Cerro Porteño, do Paraguai. Apesar da pouca idade, já desfrutava a fama de ser um jogador técnico, incapaz de fazer uma falta desleal. Era um cavalheiro em campo. “Pergunte se ela quer”, foi a resposta fria, que deixou o fanfarrão eufórico. A aposta estava ganha. O “não” de Norma, esposa do jogador, não esmoreceu o homem, que insistiu, puxando pelo braço.

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Aí ele ouviu: “Ela disse não”. O murro, de direita, atingiu o rosto em cheio e encerrou ali mesmo a história. Gamarra sabia que Norma diria não e, garante, só esperou a melhor hora de pegar o cara. “Eu sou assim”, explica o zagueiro do Corinthians. Não perder a calma sob pressão. Escolher o momento para agir. Assim se ganha uma briga (ele jura: essa foi a última em que se meteu).

Como Gamarra descobriu também, ganha-se da mesma maneira um jogo de futebol e, no seu caso, a fama internacional. “Gamarra possui a capacidade de se antecipar ao adversário no instante decisivo”, elogia sempre Wanderley Luxemburgo, seu treinador do Corinthians e novo técnico da Seleção Brasileira. “Ele sabe se posicionar como poucos e tem força, habilidade e velocidade para desarmar qualquer atacante”, garante Paulo César Carpegiani, treinador da Seleção Paraguaia na Copa de 1998. “E sem apelar para a violência.”

Teve gente querendo inscrever no Livro dos Recordes a marca de 724 minutos sem infração (equivalente a oito partidas) que zagueiro acumulou no Mundial e nas primeiras rodadas do Campeonato Brasileiro. “Nasceu com uma estrela própria”, diz Romerito, ex-meia do Fluminense na década de 80 e, até hoje, considerado o maior craque paraguaio a jogar no Brasil. Outro compatriota, o goleiro Chilavert, resume a história. “Gamarra é o melhor zagueiro do mundo”, afirma o arqueiro. “A Copa é a prova.”

Oitavas-de-Final da copa, 28 de junho. França x Paraguai. Quase fim de jogo e 0 x 0 no marcador. ” Doutor, o que aconteceu? Está doendo demais “, reclamou Garrama, fora do campo, atendido depois de cair de mau jeito tentando cortar um cruzamento. “Está feio, filho. Você deslocou o ombro “, respondeu o médico da Seleção, Agustin Casaccia. O exame feito após o jogo constatou que o osso estava 2 centímetros fora de lugar. Uma dolorosa enormidade em termos médicos.

Gamarra, do Corinthians, comemorando gol contra o Santoas, no Estádio Vila Belmiro.
Gamarra, do Corinthians, comemorando gol contra o Santoas, no Estádio Vila Belmiro.

“Dá para jogar, doutor? ” perguntou o zagueiro, preocupado com a prorrogação, que seria disputada em seguida. “Sim, mas vai doer muito ” disse Casaccia ” A decisão é sua. “Doutor, se é para morrer, vou morrer em campo “, respondeu Gamarra. “O “Colorado” nunca se dá por vencido”, atesta Chilavert, citando o apelido do ruivo Gamarra. “Eu imagino a dor que ele sentiu e, mesmo assim, foi um jogador completo.” O Paraguai acabou perdendo o jogo, com um gol na morte súbita. O time foi eliminado, mas a vida não seria a mesma para Gamarra. Eleito pela Fifa um dos melhores zagueiros do Mundial, voltou incensado à América do Sul. “Foram dois anos de trabalho, desde as Eliminatórias”, conta Gamarra. “Quando a Copa começou, era só mostrar para o mundo que sabíamos jogar um pouquinho.”

Com a linha Gamarra-Ayala-Enciso, o Paraguai barrou Bulgária, Espanha e Nigéria, antes de levar os franceses ao desespero. O estilo limpo e técnico derrubou o mito de que zagueiro bom é aquele que mata jogada e jogador. Caiu por terra também a imagem do beque sul-americano catimbeiro, que provoca o adversário o tempo todo. Na verdade, comparado aos zagueiros”normais”, Gamarra quase não abre a boca.

Fora de campo não é muito diferente. Queixo quase cravado no peito, olhar no chão ou nas mãos e frases curtas. É assim que Gamarra “conversa” com gente nova. “Ele é muito tímido”, atesta Norma, sua mulher. “Mas melhorou bastante.” Entre amigos, ele fala, brinca e, acredite, até conta piadas. Mas com pessoas estranhas… Basta voltar àquele ano da pancadaria na festa. Um empresário o procurou no Cerro Porteño, querendo saber quanto ele gostaria de receber para deixar o clube. Gamarra pegou a caneta do homem e marcou o valor num pedaço de papel. Virou as costas e foi embora. Nem “adiós” ele disse.

Era uma época boa para procurar Carlos Alberto Gamarra Pavón, que estava decidido a deixar o país. “Ficar no Paraguai não adianta”, explica o zagueiro. Mesmo hoje, um craque de Seleção que atue nos clubes locais não ganha além do equivalente a 4 000 reais por mês. (No Corinthians, um garoto quase sem nome que se profissionaliza recebe de 1 000 a 3 000 reais no primeiro contrato.) Gamarra já tinha tentado a vida no Independiente, da Argentina. Foi uma decepção. “Em nove meses, tive quatro técnicos”, lembra o beque, ou, durante esse tempo ruim, o volante.

A meia-cancha era o sonho do jovem Gamarra. Tinha 17 anos e trabalhava numa olaria em que o pai Nicanor é gerente até hoje. Fazia tijolos de manhã e saía correndo para o treino à tarde, no Cerro Porteño. Era um bom volante, mas dificilmente se tornaria o melhor camisa 5 do mundo. “Aí apareceu o Carpegiani no Cerro”, lembra Gamarra. Em 1991, o técnico brasileiro transformou o volante em zagueiro, que gostou da vista lá de trás. “Você enxerga melhor o avanço do adversário e tem mais tempo para se posicionar”, explica o beque. Tem seu lado ruim. “Não é o lateral, o meia ou o atacante. Quando o time leva um gol, o culpado é sempre o zagueiro”, reclama.

Assim como acerta um soco em quem mexe com a mulher, será que Gamarra, pelo menos no começo, não enfiava a botina nos jogos? “Não, nunca chutei”, afirma o beque, que só foi expulso uma vez em oito anos de carreira. “Sempre penso que o outro é um profissional, pode ser um pai de família como eu.” E se a falta for o único jeito de evitar o gol? “Eu faço a falta. Mas não precisa ser desleal.” Palavras bonitas, que não passariam disso, se ele deixasse o atacante na cara do gol. Para vencer, o futebol exige talento, que o paraguaio sempre teve, e dedicação para superar os defeitos. Gamarra era um magricela de 70 quilos quando começou. Hoje tem 85 quilos e muitas horas de musculação no currículo. Não cabeceava bem. Viciou-se em meia hora pós-treinos só cortando cruzamentos. Quase não subia ao ataque. Criou coragem e, no caso do Corinthians, até já marcou um gol, diante do Inter, dia 23 de agosto, pelo Brasileirão.

Houve um fator que quase estragou todo o esforço: o preconceito. Com 1,80 m, Gamarra era olhado com desconfiança. Em 1995, Vasco, São Paulo e Santos não quiseram investir 500 000 dólares. O argumento era o mesmo. “Ele é baixinho para um zagueiro, né?”, ouviu o procurador Jorge Benitez, ex-goleiro do Palmeiras e Internacional, quando ofereceu o passe de Gamarra a um diretor do… Corinthians. (Três anos depois, o clube lascou 5,5 milhões de dólares, ou onze vezes mais.) O Inter decidiu apostar. Antes, os cartolas deram um telefonema, em busca de referências.

“Pode mandar buscar. Ele tem tanta capacidade quanto Figueroa. Daí para mais.” Era Carpegiani aparecendo outra vez na vida de Gamarra. A comparação com Elias Figueroa, o chileno que dominou a zaga colorada nos anos 70, foi um escândalo à época. Mesmo “Don Elias” não tem a resposta definitiva. “Jogamos em épocas distintas”, afirma Figueroa, com elegância. Um era mais líder. O outro é mais rápido. Figueroa foi três vezes o melhor da América. Gamarra fez sucesso numa Copa, algo que o chileno não conseguiu. Em comum, só o fato de terem trabalhado juntos quando Figueroa foi treinador do Inter em 1997. Dessa convivência veio a convicção: “Hoje, ele é o melhor do mundo”, elogia Figueroa.

Nem todos concordam. “Ele é um grande zagueiro, mas acho exagerado dizer que é infalível”, afirma o atacante são-paulino França, com o cacife de quem venceu a disputa com o beque na Final do Campeonato Paulista de 1998. “Ganhei várias bolas dele na partida, tanto de cabeça quanto nas jogadas de velocidade.” Há quem critique seus atos fora de campo, como o ex-procurador Benitez. Na derrota ou na polêmica, Gamarra tem a mesma atitude. Ele vai para casa. Na verdade, em qualquer situação ele vai para casa, uma cobertura no Tatuapé, bairro próximo à sede do Corinthians. “É difícil fazer o Carlos sair”, testemunha a mulher Norma. No final de agosto, Gamarra foi convencido a assistir a um show, mas só porque era do sertanejo Leonardo. Não se deve perder tempo insistindo com teatros ou restaurantes.

Já um churrasco… Uns tirinhos de rifle… Que tal juntar um com o outro? Gamarra gosta mesmo é de caçar. Quando está de folga no Paraguai, ele traz o almoço direto de fazendas de caça da região. “Pego javalis ou veados”, diz. A pedido de Priscilla, a filha mais velha e a parte mais ecologista da família, Gamarra diminuiu as incursões armadas. Tem que se contentar agora em praticar tiro ao alvo com algumas das suas 23 armas no stand que montou no sítio em Caaguazu, Paraguai. Por Priscilla, 11 anos, Jorge, 8, e Macarena, 4, o beque faz qualquer coisa. Até treinar a dança da bundinha com a caçula. Bem, quase tudo. “Bater em outro jogador, não”, afirma Gamarra.

Alex, do Palmeiras, contra Gamarra, do Corinthians, no jogo da Libertadores de 1999.
Alex, do Palmeiras, contra Gamarra, do Corinthians, no jogo da Libertadores de 1999.

“Gamarra é um ingrato”

Quando trocou o Internacional pelo Benfica, de Portugal, em 1997, Gamarra realizou o sonho de atuar na Europa. Jogou bem, fez sucesso, mas apenas meia temporada depois estava de volta ao Brasil, com o passe comprado pelo Banco Excel, patrocinador do Corinthians. O que tinha acontecido?

Mergulhado em dívidas, o Benfica precisava urgentemente de dinheiro e por isso aceitou a oferta do Excel. Mas havia outro problema. “Caí numa fria”, conta o zagueiro. “Fiz um mau contrato.” A questão não era o clube, mas sim Juan Maria Minguella, empresário espanhol que havia comprado seu passe do Inter e repassado para o Benfica. “Assinei uma procuração que deixava o cara fazer o que quisesse com a minha carreira durante quatro anos”, conta Gamarra.

O beque só teria assinado o documento por orientação do seu ex-procurador Jorge Benitez. “Ele disse que estava tudo bem e eu acreditei”, conta. “Gamarra é um ingrato”, afirma Benitez. “Conseguimos para ele um salário de 850 000 dólares limpos por ano. Isso é um mau contrato?” A cifra é bem superior aos 300 000 dólares anuais que Gamarra recebia no Inter, mas inferior ao 1,2 milhão de dólares que o paraguaio ganha no Corinthians.

Minguella diz que até perdeu dinheiro no caso. “O Benfica só me pagou três das 24 promissórias pelo passe do jogador”, informa. O empresário tem uma arma poderosa: a tal procuração, válida até 2001. No final de agosto, quatro clubes europeus estavam atrás do beque. Como legalmente Minguella ainda é o representante do jogador, ele poderia entrar na história. “Mas não pretendo usar esse direito”, garante o empresário.

Gamarra, do Corinthians, comemorando a conquista do Campeonato Brasileiro, contra o Cruzeiro, no Estádio do Morumbi.
Gamarra, do Corinthians, comemorando a conquista do Campeonato Brasileiro, contra o Cruzeiro, no Estádio do Morumbi.
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