George Best, na PLACAR #1: ‘Se quisesse, eu poderia ser melhor que Pelé’
Na histórica edição de 20 de março de 1970, o craque norte-irlandês do Manchester United falou sobre seus gols, namoros e apreço pela noite
Em 20 de março de 1970, começou a circular pelo Brasil uma peça histórica do jornalismo esportivo brasileiro, a edição inaugural da revista PLACAR. A capa destacava Pelé e sua “receita para ganhar a Copa”, com as profecias do Rei que meses depois seriam cumpridas no México. Ao folhear as páginas, o leitor da época foi apresentado a outro gênio da bola, uma espécie de Pelé europeu: o norte-irlandês George Best, lenda do Manchester United, então com 23 anos e no auge de sua forma — e fama.
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Eternizado por seus gols, dribles e também declarações espirituosas como “Gastei muito dinheiro em bebidas, mulheres e carros rápidos. O resto desperdicei”, Best concedeu entrevista a Oriel Pereira do Vale, correspondente de PLACAR em Londres, na qual deixou a modéstia de lado e admitiu viver uma vida desregrada. “Se eu tivesse nascido feio vocês não ouviriam falar de Pelé. Dou-me muito bem com as garotas, gosto de divertir-me, de tirar prazer do dinheiro, que ganho e por isso não me dedico inteiramente ao futebol”, cravou o camisa 7.
Em uma era pré-internet e transmissões de campeonatos internacionais, reportagens como esta eram a única forma de o fã de futebol conhecer as lendas do Velho Continente, ainda mais no caso de Best, que jamais disputou uma Copa do Mundo. “Pela primeira vez em minha vida eu desejaria realmente ser inglês, pelo menos durante um mês”, confessou o craque rebelde a PLACAR, citando a disputa da Copa do México. Ele foi certeiro ao apontar Brasil e Itália como favoritos ao título.
George Best morreu em 25 de novembro de 2005, aos 59 anos, de falência múltipla dos órgãos, em decorrência de seu quadro de alcoolismo. Entrou para a história como um dos maiores e mais interessantes gênios da bola. O blog #TBT PLACAR, que todas as quintas-feiras recupera um tesouro de nossos arquivos, reproduz, na íntegra, a reportagem de 1970:
GEORGE BEST, O DEUS
Enquanto seu cabelo crescia, ele se transformava no melhor jogador da Inglaterra. Hoje, George Best é tudo
Reportagem de Oriel Pereira do Vale, correspondente em Londres
Dribla como Garrincha, faz gols como Tostão, tem a genialidade de Pelé, chuta com a precisão de Edu. Se quisesse seria o melhor jogador do mundo, mas está muito feliz e satisfeito em ser o melhor jogador da Inglaterra. George Best, ponta-esquerda de 23 anos, belo como um artista de cinema e excêntrico como um milionário, é tudo o que ele quer ou tem vontade de ser. É deus quando passa velozmente pelas ruas pilotando seu carro último tipo; é diabo quando está em campo correndo ou driblando; é charmoso quando está posando com roupas da moda para as principais lojas de Londres.
George Best é tudo o que ele quer ser porque quase ninguém na Inglaterra tem coragem ou ousadia para contradizê-lo. George Best, o melhor jogador da Inglaterra.
— Se eu tivesse nascido feio vocês não ouviriam falar de Pelé. Dou-me muito bem com as garotas, gosto de divertir-me, de tirar prazer do dinheiro, que ganho e por isso não me dedico inteiramente ao futebol. Eu não serei um monge do futebol apesar de treinar com vontade e jogar com mais vontade ainda. Sinto que posso fazer o que quiser com a bola, não importa o adversário. Por isso poderia ser melhor do que Pelé, se quisesse.
George Best, o melhor jogador do mundo:
São poucos os que têm a valentia do cronista Geoffrey Green — “Ele faz lembrar Garrincha apesar de não ter seu nível técnico” —, pois a maioria pensa como a manchete do jornal The Times — “Best é um gênio” — ou como a definição do Sunday Time — “Ele tem gelo nas veias, fogo no coração e muita precisão e equilíbrio nos pés”.
George Best está esgotando a imaginação da imprensa europeia, que a cada novo jogo se desespera à procura de um adjetivo ainda não usado para qualificá-lo.
Após cumprir suspensão de 28 dias, Best retornou no jógo Manchester United 6, Northampton 0, pela Copa da Inglaterra. Best fez os seis gols. O sóbrio The Times escreveu:
“Best deve ser considerado, indiscutivelmente, um fenômeno do cenário futebolístico. Em sete anos, ele se transformou num culto da juventude — um novo herói folclórico, um James Dean revivido, um herói com uma causa: servir a seu clube, à seu país. e inclusive provar a si mesmo, um dia, que é o melhor jogador de toda a história do futebol.”
George Best. o melhor jogador do mundo. Best. em inglês, quer dizer “o melhor”. Best, para à torcida do Manchester United, para a maioria das garotas, para seus amigos. é simplesmente George. o Jorginho. Ele pode ser encontrado diariamente nas páginas dos jornais (é grande fonte de venda), nas televisões (a BBC 2, na segunda semana de fevereiro, apresentou um documentário colorido de sua vida) ou nas principais boates e nos melhores restaurantes de Londres (quando não está concentrado nem treina na manhã seguinte).
George Best pode ser encontrado também na ponta-esquerda da seleção ideal da Inglaterra? Não. Ele nasceu em Belfast, na Irlanda do Norte, e somente pode jogar peia Seleção de seu país (a Irlanda do Norte. apesar de integrar o Reino Unido juntamente com a Inglaterra, disputa a Copa do Mundo separadamente. como a Escócia e o País de Gales).
ALTO, MAGRO, FAMOSO E MUITO RICO
George Best na ponta-esquerda da Inglaterra seria a solução de todos os problemas de Alf Ramsey, porque os únicos problemas do técnico inglês estão no ataque da Seleção. E, como George Best já superou os atacantes mais importantes da história inglêsa (Tom Finney, Stanley Mathews). é justificada a frustração da torcida, que éle só pode aliviar com esta frase:
— Pela primeira vez em minha vida eu desejaria realmente ser inglês pelo menos durante um mês.
Mas ele mesmo reconhece que iria defender uma seleção fraca.
— A Seleção Inglesa atual nunca jogou a meu gosto, pois seu futebol contraria tudo aquilo de que gosto. Acho-o demasiadamente frio e analítico. Sabem por que a Inglaterra ganhou o Mundial de 66? Porque tinha a melhor defesa do mudo, com jogadores preparados para correr o tempo todo sem parar, ajudados por uma torcida excepcional. Mas, desta vez, defesa não ganha Copa. Quem vai ganhar são jogadores como Pelé ou Riva. Jogadores desse tipo nós não temos na nossa Seleção. Daí a conclusão: Brasil e Itália são favoritos, seguidos por Alemanha, União Soviética, Uruguai e México. À Inglaterra tem jogadores demais na defesa e jogadores de menos no ataque.
George Best. o melhor jogador da Inglaterra.
Tem 1 metro e 80 de altura; pouco mais de 65 quilos (ele é bem magro), olhos azuis, cabelos escuros e exageradamente compridos; longas costeletas; correntinha de ouro com duas medalhas (é protestante) no pescoço: dois anéis ligados por uma correntinha (a última moda) nos dedos da mão direita: pequeno anel de pedra clara no dedo mínimo da mão esquerda; dentes perfeitos, revelados a cada instante pelo permanente sorriso e uma covinha no queixo.
E, quem sabe, talvez se torne também artista de cinema. Apesar de ter recusado convite para o filme Virgin Soldiers (teria que ficar seis meses em Singapura) é muito provável que aceite fazer um filme sobre futebol. depois do Campeonato Inglês. A experiência como modelo vai influir muito. E como modelo George Best vale e cobra 15 000 libras (mais de NCrS 150000,00) por um ano.
Ele diz que não é rico. Mas é. No começo deste ano recebeu as chaves da luxuosa mansão que mandou construir nos subúrbios de Manchester, pela qual pagou 30 000 libras (300 000 cruzeiros novos). E, nos últimos meses, ele trocou de automóveis com tanta frequência que o Daily Mail comentou:
“George Best. o astro que gosta muito de champanha, parece trocar de carros tão depressa quanto de namoradas. No ano passado éle tinha um Jaguar tipo E. e uma Lotus Europa esporte. No mês passado recebeu um Iso Rivolta esporte. que custou 70 milhões e que ultrapassa os 270 quilômetros por hora. Este mês já quer vendê-lo e afirma que a Alfa Romeo ofereceu-lhe um carro de presente”.
Ele é mesmo excêntrico. Certa vez, tomou um avião em Palma de Maiorca. onde passava férias, apenas para cortar cabelo com seu barbeiro em Manchester (só de passagem gastou 50 libras, 500 novos). Também 50 litras foram gastas para um telefonema internacional a uma namoradinha. O povo diz ainda, com ar de segredo, que Best gasta na primeira hora de uma de suas noitadas mais do que a média dos jogadores ingleses ganha numa semana. Paga sapatos a preços que normalmente dariam para comprar ternos de luxo; e manda fazer ternos de 600 cruzeiros novos como quem compra jornal.
George Best, o melhor jogador do mundo.
Sua imagem é explorada pelos colunistas sociais como se fosse um influente diplomata. Quando rompeu o noivado com a modelo dinamarquesa Eva Haraldsted foi procurado por todos os jornais. Explicou: conheceu Eva em Copenhague. enquanto dava autógrafos no hotel. Depois de alguns dias de namoro, convenceu-a a abandonar o noivo, a família e Copenhague. para viver com ele em Manchester. Mas como “não é do tipo que casa”, Best resolveu acabar o noivado imposto por Eva. A consequência foi um complicado processo judicial iniciado por ela. por “quebra de compromisso”.
PEQUENO, MAGRO, SEM FAMA E POBRE
Mas ele não liga para isso porque gosta de aventuras. de ser notícia. Hoje George Best não é o menino pobre do bairro mais pobre de Belfast. que jogava bola pelas ruas o dia inteiro. Sua mãe, ex-jogadora de hóquei. ainda se lembra: George Best já chutava bola com menos de dez meses e enquanto crescia foi aperfeiçoando seu futebol.
Quem primeiro descobriu esse futebol foi Matt Busby, diretor do Manchester United. quando Best tinha quínze anos. Aos dezessete já estava no time titular, precisamente a 14 de setembro, data de sua estreia. Desse dia em diante começou uma série interminável de gols, namoros e excentricidades. Arrasou o Benfica em 68, marcando um gol de placa em Wembley e dando a Copa da Europa para o Manchester. Nesse dia. te driblou toda a defesa do Benfica. Num jogo do campeonato, driblou um zagueiro até derrubá-lo e depois parou e começou a fazer caretas. À torcida levantou-se e riu sem parar. À torcida estava aplaudindo George Best, o melhor jogador da Inglaterra.