Como PLACAR cobriu o 1º título europeu do Liverpool, em 1977
Reportagem de Lemyr Martins registrou a festa inglesa em Roma e o "futebol jogado por música" pelo time da terra dos Beatles
Liverpool e Real Madrid decidem o título da Liga dos Campeões no próximo sábado, 28, no Stade de France, em Saint-Denis, nos arredores de Paris. A equipe inglesa é hoje reverenciada como uma das mais tradicionais do planeta, com seis taças da Champions — só o próprio Real, 13 vezes campeão, e o Milan, sete, estão à frente. Esta história começou há 45 anos, em Roma, e PLACAR estava lá. O #TBT, que todas as quintas-feiras recupera um tesouro de nossos arquivos, relembra o título de 1977, diante do Borussia Monchengladbach, da Alemanha.
Assine #PLACAR digital no app por apenas R$ 6,90/mês. Não perca
Lemyr Martins, fotógrafo de PLACAR enviado à capital italiana, narrou, em texto e imagens, a festa britânica e os detalhes saborosos daquele duelo, como a inglória missão do alemão Berti Vogts de parar o craque inglês Kevin Keegan. Depois do título inaugural na Itália, os Reds voltariam a conquistar a Europa em 1978, 1981, 1984, 2005 e 2019.
Confira, na íntegra, a matéria publicada na PLACAR de 3 de junho de 1977:
O FUTEBOL JOGADO POR MÚSICA
Os ingleses invadiram Roma, derrotaram os alemães e carregaram a Copa dos Campeões. O melhor futebol da Europa voltava à Inglaterra depois de oito anos, com o time dos jovens da cidade dos Beatles
As luzes do imenso painel eletrônico do estádio Olímpico de Roma piscaram, o placar que registrava Liverpool 3 x 1 Borussia Mônchengladbach apagou-se e, em faiscantes letras garrafais, anunciou: Liverpool campeão da XXII Copa Européia dos Campeões Nacionais. Nas arquibancadas, começava um autêntico carnaval.
Mais de 35 mil ingleses cantavam, beijavam-se, abraçavam-se e, enrolados nas coloridas bandeiras, corriam sem rumo pelos maravilhosos jardins do estádio. Saudaram as estátuas dos deuses da mitologia, colocaram uma bandeira na coroa de louros de Zeus e, misturando o God Save the Queen com o Save Liverpool, passaram a chorar.
Eles estavam, na maioria, embriagados. Pela cerveja, que começaram a tomar desde as primeiras horas da manhã, quando assaltaram Roma desfilando da estação Central até o Coliseu. aos gritos de Liverpool. Muito alarido, desafinados hinos e estridentes buzinas. Pela vitória, uma revanche da Copa da UEFA (Clubes Campeões de Taça), perdida para o mesmo adversário em 1975. Finalmente, o título de campeão da Europa voltava à Inglaterra.
Nove anos depois da conquista do Manchester United, em 1968, o mais importante título europeu passava às mãos do Liverpool, o jovem Liverpool F.C. como chamam seus torce dores, uma impressionante massa formada em sua maioria por uma juventude cabeluda que, numa alusão aos Beatles, manteve, nas arquibancadas, uma curiosa inscrição: “Éramos quatro, agora somos onze para dominar o mundo.” A festa começou no próprio campo, quando o juiz francês Robert Wurtz apitou, apontando o final do jogo. Os jogadores identificaram-se com seus jovens torcedores, receberam as cartolas coloridas, as faixas de campeão, as bandeiras jogadas em campo e, saltitantes, deram a tradicional volta olímpica.
Foi uma ruidosa comemoração que assustou os italianos, magoou os poucos alemães que se arriscaram a assistir a partida e desmentiu tudo – que se possa imaginar da chamada sobriedade britânica. E com um toque até emocionante. Aos gritos, a torcida pedia — suplicava mesmo — que seu maior ídolo, Kevin Keegan, ficasse no Liverpool (ele estava sendo negociado ao Hamburger da Alemanha).
Suor e cerveja
Depois dos memoráveis 3 a 1, um imenso cortejo saiu do estádio direto para a Piazza della Republica, quartel-general da torcida inglesa no centro da cidade. Cinco mil carabineiros ficaram de plantão toda a noite para evitar os alegres abusos daquela comemoração. E, agora, a música preferida, entre refrões de Liverpool, Liverpool, era o Arivederci Roma, em versão inglesa, molhada com mais cerveja e muito suor naquela noite quente (28 graus) da quarta-feira passada, 25 de maio.
Nada mais justo. Afinal, o Liverpool mostrou um futebol que justificou a conquista do título. Um futebol humilde, brigador, valente em tudo. Duro na defesa e insinuante no ataque. Encurralou o Borussia Mônchengladbach, superando o futebol total dos alemães com um jogo de competição, mesclado entre a aplicação dos veteranos zagueiros Tommy Smith e Ray Kennedy, a categoria de Neal, a dureza de Joey Jones e o comando perfeito de seu líbero-capitão Emilyn Hughes.
Case, à frente da zaga, formava com Callaghan e Steve Heighway o bloco de meio-campo. E, na frente, Medermott fugia para os espaços que o excelente Kevin Keegan abria. Com a bola dominada, na defesa ou no meio-campo, o time inglês subia todo para o ataque. Como também voltava — e com uma rapidez incrível — para defender-se. Mas a melhor arma do hábil técnico do Liver pool chamava-se Keegan.
Era notório e este foi o grande assunto explorado por todos os jornais na véspera da decisão: a Copa seria decidida no duelo Keegan x Vogts. O próprio Bob Paisley, treinador do Liverpool, anunciava suas instruções: Keegan deveria se deslocar o máximo possível para arrastar o líbero e capitão do Borussia consigo, abrindo espaços para o ataque inglês.
O duelo decisivo
Não deu outra coisa. Vogts marcou Keegan desde sua área até as laterais da defesa adversária e tentou reeditar sua grande façanha na Copa
de 74, quando colou em Cruijff (cometeu o pênalti que abriria o placar da final do Mundial mas, depois, acabou com o holandês e empurrou a Alemanha Ocidental à grande vitória).
O próprio Hugo Latek — há dez anos técnico do Borussia — confessava, mal-humorado, depois do jogo, que não tinha alternativa. Só tinha mesmo um jogador para parar Keegan — um homem de 6 milhões de volts, segundo os ingleses. Era Vogts. Não responsabilizou o jogador pela derrota mas, depois do jogo, só tinha uma resposta para todas as perguntas, todas as críticas:
— Você viu a partida?
Para todos que acompanharam a grande final, não havia dúvidas: era lógico e evidente que aquele duelo decidiu a parada. E nada melhor do que a história dos gols para confirmar a previsão:
O primeiro, logo aos 11 minutos do primeiro tempo, aconteceu depois de Keegan deslocar-se e lançar Mcdermott na cara do goleiro Kneib. O segundo, aos 20 minutos do segundo tempo, surgiu depois de um córner mal marcado por Wurtz. Keegan corria pela ponta-esquerda, Vogts apressou-se em desarmá-lo e fez a falta. O juiz optou pelo escanteio. E, quando todos corriam para cercar Keegan na grande área, Smith subiu e cabeceou livre.
O medo alemão
O terceiro e último, marcado de pênalti por Neal aos 37 minutos, aconteceu depois que Keegan — sempre ele — bateu três alemães e sofreu a falta de Vogts dentro da área. Mas nem tudo foi espetáculo nessa final da Copa Européia de Clubes Campeões. Nos primeiros 20 minutos, o mais bonito do jogo corria pelas arquibancadas: nas cantorias e no tremular das bandeiras da torcida inglesa que cobria de vermelho um terço do estádio.
Aquelas 35 mil pessoas faziam mais barulho que os outros 50 mil assistentes, na maioria italianos, que acompanhavam a decisão. No gramado, a partida era nervosa e ruim. O Borussia, com seu grandalhão goleiro Kneib vestindo um agasalho curioso, tinha levado apenas um susto, num chute forte de Jimmy Case, que passou por cima. Os alemães preferiam ficar na tocaia: esperavam o Liverpool e partiam para o contra-ataque.
Vogts acompanhava Keegan enquanto os três outros zagueiros — Vitkamp, Wohlers e o sofrível Klinhammer — paravam o ataque inglês ou com faltas ou com chutões desesperados. Bonhof, Wimmer — dupla da Seleção alemã — e mais Schaffer, que deveriam jogar no meio-de-campo, guardavam a frente da defesa, formando uma retranca forte mas ridícula.
Aos 15 minutos, Latek sentiu o problema e mudou. Sacou Wimmer e o lateral Wohlers, lançando Hannes e Kulik. Como Stielike e Heynckes (também jogador da Seleção) eram anulados pela defesa inglesa, ele recomendou que os ataques ficassem por conta do louro, cabeludo e baixinho Simonsen, um ágil ponteiro que o Borussia foi buscar no futebol dinamarquês.
Uma pequena amostra
As mexidas melhoraram um pouco o ataque alemão. E houve alguns mormentos de perigo para os ingleses, principalmente depois que Simonsen empatou o jogo aos 6 minutos do segundo tempo. Mas foi é aí que Ray Clemence mostrou por que é chamado de novo Banks pelos ingleses. Evitou pelo menos três gols em oportunas saídas de gol nos pés dos atacantes alemães.
Foi nesse segundo tempo que se pôde ver, claramente, o futebol europeu. O polivalente Keegan passou a jogar em toda a parte, com ou sem
bola. Hughes, o capitão inglês, passou a desmarcar o adversário e sair para o ataque jogando com rápidos passes laterais. O forte e combativo Mecdermott passou a deixar o ataque e foi aliviar, na sua área, os cruzamentos perigosos do Borussia. O veloz Simonsen passou a se mexer constantemente, da ponta para o meio, ou vice-versa, sempre buscando o jogo mas sem muita ajuda. Bonhof passou a mostrar toda a sua vitalidade — batido pelo meio-campo inglês mas não se entregando nunca.
E, mais que tudo, as divididas se sucederam. Cada vez com mais vontade, mais violência, tanto por parte dos ingleses como dos alemães. E tudo parecia um novo esporte: a caça à bola. Às vezes, com muita classe; outras violentas e ridículas. Mas ninguém parava em campo. No final, o técnico Bob Paisley confessava sua admiração:
— Eu não esperava tanta bravura depois de uma temporada tão dura.
Não era para menos. O Liverpool ganhou o Campeonato da Liga Inglesa na semana retrasada (dia 13); perdeu a final da Taça da Inglaterra no sábado anterior ao jogo de Roma (dia 20), para o Manchester United. E disputava, ali, o europeu de clubes.
A volta, com os Beatles
Acima de tudo, o Liverpool, campeão da Europa de 1977, provava ser um time valente. Ganhou o seu primeiro título de campeão da Liga Inglesa em 1900, vencendo mais oito vezes. Tem duas Recopas (Copa de Vencedores de Copas) e dois títulos da Copa da UEFA (Copa dos Ganhadores das Taças de seus países).
Caiu para a segunda divisão, voltando à primeira em 1962, pelas mãos do técnico escocês Bill Shankly, quando começou a ressurgir no futebol inglês ao mesmo tempo em que o conjunto da cidade, os Beatles, formado por quatro jovens cabeludos, começava a espalhar sua música e a febre da beatlemania por todo o mundo.
Por isso. talvez, sua torcida é jovem: garotos que torcem desde seu acesso à primeira divisão vendo o Liverpool ganhar oito taças em 12 anos. Lamentável, porém, foi a declaração de seu técnico, logo após a memorável vitória no Olímpico de Roma. Depois de muita champanha, ele afirmava que o título intercontinental não interessava ao Liverpool.
No placar, as luzes piscavam iluminando a inscrição: “Campeão da Europa”.
Na arquibancada, a faixa, desafiante, permanecia aberta: “Éramos quatro, agora somos Onze para dominar o mundo”.
Lemyr Martins (Enviado especial)