Um coração safenado
Comentarista vai ao jogo inaugural do Maracanã, Cariocas 1 x 3 Paulistas, e faz um ‘eletrocardiograma do futuro’ do estádio para os leitores de 1950
O tempo, obras ilegais e aterramentos criminosos farão com que, cada vez mais, a Lagoa Rodrigo de Freitas tenha o formato que lhe garanta a reverência de ‘Coração do Rio de Janeiro’. Na próxima vez que subir o Corcovado, caro leitor e leitora de 1950, observe o traçado… Mesmo sem nenhum de seus arquitetos ter tido ideia semelhante e premonitória, o Estádio Municipal do Rio inaugurado ontem, às pressas, para o Mundial do mês que vem, chegará a 2022 (de “quando” venho) ainda pulsando como ‘Coração do Futebol’. Mas marcado por uma série de arritmias políticas e episódios cardíacos (entupimento de bolsos de escroques) que deixarão marcas e inúmeras ‘pontes de safena’ no, desde já e sempre, ‘Maior do Mundo’. Viajei na Máquina do Tempo para assistir a este Seleção Carioca de Novos 1 × 3 Seleção Paulista de Novos e tentar prescrever a todos algumas medidas e medicamentos que precisam ser tomados para evitar o enfarte fatal deste gigante. Com as histórias – felizes ou não – que ali se passarão nos próximos 72 anos, o estádio terá lugar cativo em milhões de outros corações. De todos os brasileiros.
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Os registros oficiais não atestarão, mas a primeira vez que a bola rolou no novo gramado da cidade foi na véspera, noite do dia 16, quando deu-se a ‘pelada’ entre o time dos engenheiros contra o escrete dos operários da obra. O autor do eterno primeiro gol do Estádio Municipal foi, assim, outro ‘jogador’, desconhecido, e não o meia Didi, do Fluminense, que abriu o placar ontem para os Cariocas (alerta de ‘spoiler’: daqui a 8 anos, esse estiloso armador será eleito o craque da Copa, na Suécia). Como todos sabem, os dois selecionados foram a campo com o que tinham de melhor na falta de seus atletas convocados para a Mundial, e já treinando duro em São Januário. A ‘paulistada´ é que foi malandra, escalando entre os seus o carioquésimo Ponce de León (ex-Botafogo e há duas temporadas no São Paulo), autor do tento que decretou a virada. O terceiro gol, derradeiro, deu-se pelos pés de Augusto aos 44 da etapa final. Mas era amistoso. Não deu pra matar ninguém do coração.
Não passaram de 100 e poucos mil os presentes nas arquibancadas, quase metade da capacidade projetada. Isso porque, foi impossível esconder, a obra, faltando 30 dias para a Copa, ainda não está pronta. Além de andaimes sustentando partes da marquise, levando gente a se pendurar perigosamente, atrás de um dos gols erguia-se um enorme tapume de madeira, impedindo que ali se posicionasse parte da torcida. Foram apenas 675 dias de construção, empreitada que começou em 2 de agosto de 1948 com 200 operários mas logo teve que saltar para o contingente de 3.500. Completinho, completinho mesmo, o estádio junto ao Rio Maracanã só ficará em… 1965! Quase quatro copas de atraso! Explode, coração!
Mas, verdade seja dita, a decisão de usar o descampado do antigo Derby da cidade para erguer este gigante se provará acertada, para tristeza do detratores da ideia, como Carlos Lacerda. O jornalista Mario Filho, de quem vocês já devem provavelmente ter lido algum libelo a favor do ‘Maraca’ (é ou não é um jeito bacana de chamar o novo campo?), acabará ganhando, em 1966, justa homenagem pelo feito – mas a manterei em segredo pra não estragar a festa. Desde ontem, portanto, gabem-se: é do Rio o maior estádio de futebol do mundo, deixando para segundo lugar o portentoso e até aqui absoluto Queen Park (futuro Hampden Park), de Glasgow, onde cabem 155.000 pessoas. Neste novo gramado da Zona Norte, chegaremos, creiam-me, a ter 199.854 presentes (173.850 pagantes), recorde que, aliás, acontecerá ainda este ano. Haja coração!
Mas agora segurem essa: em 2022, de ‘quando’ vim, ações inescrupulosas farão com que a capacidade do Maior do Mundo reduza-se a 78.838 espectadores. Um crime contra a cidade, os brasileiros, o futebol… Daí eu ter vindo do futuro para, como já disse, receitar antídotos a fatos da história que ainda vêm por aí. Vamos então ao que interessa:
- Nos próximos 30 dias, recomenda-se a todos muitas gotas de humildade e, toda noite, uma colher de xarope contra soberba, em especial na véspera da final da Copa que se aproxima. Duas colheres, no caso dos jogadores da nossa seleção;
- Para um novo Mundial no Brasil, daqui a 64 anos (vai acontecer!), prescrevo laxantes na véspera da semifinal, contra a Alemanha. Jogadores que devem tomar o medicamento: David Luiz e Fernandinho, em especial;
- Meses antes disso, ao anunciarem a ‘reforma’ e ‘adequação aos padrões Fifa de estádios’, doses diárias e cavalares de soníferos aos políticos e empresários envolvidos com este projeto;
- Rivotril também para quem falar em reforma lá pelos idos de 1999 e, principalmente, para quem aventar a possibilidade de acabar com a Geral (sim, virão com essa!);
- Ah, claro, e para quem aparecer com a ideia de mudar o nome do estádio para ‘Pelé’ (será um craque, o maior de todos, vocês ainda vão conhecer!)
- Para julho de 1992, prescrevo confinamento (quarentena) para todos na cidade, impedindo o acesso de torcedores ao jogo final do Campeonato Brasileiro entre Flamengo x Botafogo. Aos responsáveis pelo abandono que deixará as arquibancadas do estádio prestes a desabar, longa internação. Em presídios.
Acho que é o suficiente. Poderia avançar, tentando impedir derrotas chatas e vexames que aqui serão sofridos pelos quatro grandes clubes cariocas, mas coisas assim fazem parte da delícia do futebol. Chegaremos a 2022 com o Estádio Municipal famoso no mundo todo, palco de duas finais de Copa, do milésimo gol do maior jogador de todos os tempos, de shows de artistas, festival de rock, final Olímpica, missa do Papa… Até Papai Noel vai aparecer aqui. Contra tudo e contra todos, este gigante sempre será um santuário do esporte, capaz de abraçar e acolher a todos, de qualquer origem e paixão. Mas do que o coração do esporte. Um coração de mãe! Imenso como o de um jovem soldado, de 19 anos, que encontrei nesta passagem, um dos muitos recrutas convocados para ajudar na reta final da obra. O rapaz cresceu jogando bola justo ali, no descampado, trabalhou na construção e ainda vai dar serviço de guarda ali em alguns jogos do Mundial. Mas o futuro o fará brilhar ainda mais na história de nosso futebol. Anotem aí o nome do pracinha: Mario Jorge Lobo Zagallo! Coração verde-amarelo!
FICHA TÉCNICA
Seleção Carioca de Novos 1 × 3 Seleção Paulista de Novos
(Amistoso de inauguração do Maraca)
Data: 17/06/1950
Estádio: Estádio Municipal do Rio de Janeiro
Local: Rua Professor Eurico Rabelo, Rio de Janeiro
Árbitros: Alberto da Gama Melcher (primeiro tempo) e Mario Viana (segundo tempo)
Público: 120 mil torcedores
Seleção Carioca de Novos: Hernani (Luis Borracha), Laerte e Wilson; Mirim, Irani e Sula; Aluísio (Alcino), Carlyle, (Simões), Silas (Dimas), Didi (Ipojucan) e Esquerdinha (Moacir Bueno)
Seleção Paulista de Novos: Oswaldo; Homero e Dema; Djalma Santos, Brandãozinho e Alfredo; Renato, Ponce de León (Carbone), Augusto, Rubens (Luizinho) e Brandãozinho II (Leopoldo)
Gols: Didi (10’/1ºT); Augusto (16’/1ºT e 44’/2ºT) e Ponce de León (33’/2ºT).