Todos pro chuveiro, por favor!
Ainda nem existia cartão vermelho, mas em 1954 juiz expulsou os 22 jogadores de Botafogo x Lusa; Comentarista do Futuro queria ver essa de perto e foi lá
Embarquei num desses garbosos ‘Chevrolet Fleet Master’ rumo ao Pacaembu e ao som dos lamentos do motorista de praça, impecável como sempre: punhos abotoados, barbatanas nos ombros e boné. “Minha mulher me deixou”, disse ele, sem tirar os olhos marejados do trajeto. “É, Doutor, como falam os jovens… Levei ‘um fora’!” Tentando um atalho no rumo da prosa, me ocorreu de contar que, no futuro, virão muitas novas gírias para separação de casais — como levar um ‘Pé-na-bunda’ ou ‘Toco’ —, não sem antes explicar que acabara de chegar do futuro, de 2021. Exatamente como a maioria de vocês, queridos leitores e leitoras de 1954, o cidadão, obviamente, mas em respeitoso silêncio, não acreditou. Não ‘marquei touca’: contei que escolhera viajar pelo Tempo para assistir ao certame Botafogo x Portuguesa, pelo Torneio Rio-São Paulo, porque a partida entraria para a história, quando, aos 31 minutos da segunda etapa, o juiz iria expulsar os 22 jogadores em campo — o que, como hoje todos sabem, de fato se deu. E que daqui a 16 anos o Futebol adotará um pequenino cartão colorido como sinal para mandar o jogador pro chuveiro mais cedo. E fechei a divagação dizendo que minha gíria preferida será, justamente, uma inspirada no esporte: levar um “Cartão Vermelho” de alguém! Resultado: acabei levando ‘um’! O chofer me mandou descer do carro…
A esta altura, ao ver se concretizar o que parecia ser apenas “profecia de passageiro maluco”, suponho já ter ao menos um paulistano a crer na veracidade de minhas credenciais. Mas cheguemos ao jogo. O fuzuê que vimos na manhã de ontem ‘é de lascar o cano’! Não há o que justifique tamanho ‘bafafá’ entre dois clubes dessa envergadura. Mesmo com os craques Djalma Santos, Brandãozinho e Julinho (pela Lusa) e Nilton Santos (Botafogo) defendendo a Seleção na Suíça (que venha a Hungria!), ainda estavam em campo jogadores do quilate de Nena, Ceci ou Renato, da Portuguesa, ou Garrincha, Floriano e Jaime, do alvinegro carioca. Mas foi o zagueiro Thomé que começou a “bagunçar o coreto’, quando, 4 minutos após o terceiro gol da equipe paulista, ao ser atrapalhado na cobrança de um tiro de canto, partiu pra cima de Ortega, dando um tapa que foi o estopim das cenas de boxe no gramado. Detalhe: o rosto do atacante, consegui ver, ficou tal o futuro e referido cartão: vermelho.
Na bola, o onze paulistano saía-se melhor, tendo encerrado a primeira etapa vencendo por 2 x 1. O problema é que, bem antes de ampliar o placar aos 27 da fase derradeira, iniciou uma ‘catimba’ daquelas, o que irritou o esquadrão carioca. O árbitro Carlos de Oliveira Monteiro, o ‘Tijolo’, ficou só de ladinho, na ‘boca de espera’, como se diz, até dar-se o ‘esparramo’. Aplainada a ‘fuzarca’, foi ‘sopa no mel’: mandou todo mundo tomar… banho!
É ‘fogo na roupa’ esse senhor ‘Tijolo’ — apelido que vem dos tempos de jogador, pelo chute potente. Gosta de ‘charlar’! Pra quem não se lembra, foi ele que, há 15 anos, na decisão da Copa Roca de 1939, botou a bola na marca e mandou o Brasil cobrar o pênalti que marcara, ignorando o fato de que os jogadores argentinos, revoltados, haviam se retirado de campo. Fomos campeões, batendo a penalidade máxima sem goleiro! Há dois anos, ninguém entendeu ‘patavinas’ quando, num confronto entre Vasco e Peñarol, ele expulsou o nosso carrasco uruguaio Obdúlio Varela (será a única expulsão de sua carreira) e levou uma vaia da torcida vascaína, que queria ver o adversário em campo. ‘Tijolo’ jamais entra em campo antes dos times e nem corre em direção ao meio-campo ou a qualquer lance, preferindo ir vagarosamente, “pra dar tempo de pensar”, justifica. Ontem, foi rápido no gatilho. E estabeleceu um recorde mundial que no futuro, pelo limite de atletas em campo, jamais poderá ser batido. No máximo, igualado.
E será. Daqui a 15 anos (3/11/1969), numa partida de pouca relevância na Inglaterra, debandarão do gramado, por ordem do juiz, os 22 jogadores de Tongham Football Club e do Hawley Youth Club. O ‘senhor de preto”, ao que parece, estará com a mão afoita pois, acreditem, não satisfeito, expulsará também um dos dois bandeirinhas. Situação ainda mais patética, sinto informar, testemunharemos no Brasil, em 1971, quando, sinto ainda mais, estaremos vivendo um período de ditadura, com militares no Poder. Para homenagear o aniversário do Golpe que destituirá o governo eleito, políticos e militares de alta patente de Santa Catarina vão organizar um Avaí x Figueirense. Diante de dezenas de autoridades, fardadas ou não, os dois times vão abandonar a bola e preferir dar um espetáculo de socos e pontapés, fazendo o árbitro, Gilberto Nahas, levantar o cartão vermelho (que já estará em uso por aqui) e, girando o corpo, expulsar todos os 22 atletas, dando fim à ‘cerimônia’. Como leis, Estado de Direito e Justiça não estarão nada prestigiadas nesses futuros anos de Linha Dura, uma série de artimanhas nos dias seguintes ao jogo determinará o cancelamento das 22 expulsões.
Mas falemos de boas novas que estão por vir. A admissão do ‘Cartão Vermelho’ no Futebol acontecerá em 1970, numa Copa do Mundo. Ele surgirá junto com outro, o ‘Amarelo’, pra ser usado como advertência, um severo alerta que pode ser traduzido por: “Na próxima, tu tá fora!” A necessidade de um código visual nas decisões disciplinares do árbitro ficará evidente quatro anos antes, na Copa de 1966. Numa partida entre Inglaterra e Argentina, o juiz mandará um (ou mais, sempre existirá a dúvida) jogador sair de campo usando apenas o dedo em riste, pois não falará inglês e nem espanhol: só alemão! Terá que deixar o gramado escoltado. Ken Aston, inglês responsável pela arbitragem, terá a ideia ao chegar à sede do próximo Mundial. No trajeto entre o aeroporto e o seu hotel, vai observar os semáforos nas ruas e — ‘pimba’! — ‘matar a charada’. Com o teste positivo nos jogos de 1970, a Fifa dará Sinal Verde para os cartões no futebol.
O sucesso não será maior que o do recém-lançado (e incomparável) cantor americano Elvis Presley (já ouviram?), mas cartões acabarão adotado por outros esportes. Dirigentes mais empolgados vão propor a incorporação de outras tarjetas, Verde e Azul, mas ambas vão levar Cartão Vermelho da Fifa. O número de cartões de um time numa competição chegara a ser, pasmem, critério de desempate, inclusive em Copa. Como se vê, caros leitores e leitoras de 1954, o Cartão Vermelho virá pra ficar. E assim vai se incorporar, como já disse, à linguagem, ao condenar algo ou alguém ao fim, inclusive histórias românticas.
Mas registre-se: ano que vem — alerta de ‘spoiler’ —, num jogo entre o Atlético-MG e seu mais antigo rival Villa Nova, novo ‘bafafá’ levará o juiz a expulsar 21 jogadores, deixando apenas um em campo. O que me faz refletir: seja hoje, nos anos 50, ou em qualquer tempo, ao darmos um Cartão Vermelho a alguma pessoa importante em nossa vida, não devemos nos espantar se, depois, descobrirmos que alguma coisa restou em nosso coração. Mas esse já é outro jogo. O tal ‘Jogo do Amor’.
FICHA TÉCNICA PORTUGUESA (SP) 3 X 1 BOTAFOGO
Local: Pacaembu, São Paulo
Data: 20 de junho de 1954
Renda: Cr$ 44.005,00
Público: 17.330,00 pagantes
Árbitro: Frederico Carlos de Oliveira Monteiro (“Tijolo”) Assistentes: Wilson
PORTUGUESA: Lindonfo, Nena e Válter; Hermínio, Clóvis e Ceci; Dido, Renato, Osvaldinho (Nelsinho), Edmur e Ortega.
Técnico: Abel Picabéa
BOTAFOGO: Pianovsky, Thomé e Floriano; Araty (Ruarinho), Bob e Juvenal; Garrincha, Dino da Costa, Carlyle, Jayme e Vinícius
Técnico: Gentil Cardoso
Gols: Osvaldinho (16’); Dino da Costa (17’); e Edmur (33’) – 1º Tempo; Edmur (27’) – 2º Tempo
Cartão Vermelho: não existia, mas todos os 22 jogadores foram expulsos
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