O passo à frente do futebol
Viajante vai até a Copa de 1962 ver Nilton Santos disfarçar para evitar um pênalti e dá ‘spoilers’ sobre polêmicas na ética do esporte
Desde já peço mil desculpas a todos vocês, queridos leitores e leitoras de 1962, pelos erros que provavelmente vou cometer neste texto. “Errar é humano”, mas sinto informar que o provérbio será esquecido lá pelos idos de 2022, de “quando” venho. Uma escalada positiva (mas dolorosa) de debates éticos, lutas por direitos de minorias, patrulhas ideológicas e ressignificação de linguagens, entre outros ingredientes, nos levará ao terreno perigoso e medieval das sentenças sem direito à defesa. Traduzindo: mesmo pessoas que assumam o erro e queiram se corrigir serão atiradas à vala comum dos ‘imperdoáveis’ – tal criminosos atávicos onde a pena de morte é aceita. Daqui a exatos 70 anos, o lance que vimos ontem neste Brasil 2 x 1 Espanha, em que Nilton Santos derrubou Enrique Collar dentro da área e deu um passo à frente, enganando o juiz, ainda será lembrado, mas estarão abafadas as vozes que por anos vão enaltecê-lo como ‘malandragem’. Não quero antecipar em décadas o debate e sim trazer boas novas: o lateral jamais será crucificado e nem vai pagar o resto da vida por isso. No Século 21 estará listado entre os 100 maiores jogadores de todos os tempos, batizando dois estádios no Brasil e apontado por alguns como principal responsável pelo resultado final do Brasil nesta Copa no Chile. E justamente por este pequeno passo que deu ontem. Verdade seja dita: foi graças a ele que… Avançamos!
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O curioso é que cairá no esquecimento lance muito mais capital que deu-se imediatamente após a ‘traquinagem’, chamemos assim, na cobrança da falta. Bola alçada da área e lindo gol de bicicleta de Joaquín Peiró – e não do craque Puskás, como a imprensa brasileira vai insistir em assinalar no futuro, dando o crédito do gol a quem, ontem pude me certificar, fez o cruzamento). Embora o atacante espanhol estivesse sozinho na meio da área, com 3 ou 4 defensores brasileiros entre ele e a meta de Gilmar, o juiz, o chileno Bustamante, ninguém jamais saberá porque, anulou o tento – impedindo o 2 x 0 pros espanhóis, vitória que eliminaria o Brasil do Mundial. Alerta de ‘spoiler’: sem saber, este cidadão determinou a classificação do algoz do escrete do Chile, em confronto que se dará na semifinal. E agora sou obrigado a revelar notícias não tão boas do futuro: o tempo não vai melhorar as arbitragens no futebol. Mas neste caso os críticos falarão mais de ‘qualidade”, e pouco de ‘ética’. Vá entender…
Há outro lance desta gloriosa geração do futebol brasileiro que oscilará na corda tênue e bamba entre “malandragem” e “comportamento reprovável”. Daqui a 8 anos, no Mundial do México, Pelé (ainda com a ‘amarelinha’, uhu!) vai sofrer um pisão de um jogador uruguaio e em seguida, numa disputa de bola, dará o ‘troco’ com uma discreta e certeira cotovelada no rosto do adversário. Reportagens, documentários e entrevistas incluirão o lance – batizado de “a cotovelada perfeita’ – entre os ‘melhores momentos do Rei’. Obra da mesma mídia que, em agressões semelhantes de outros atletas, vai sair dando paulada também.
Jornalistas erram, claro. No futuro, muitos serão reincidentes em criticar o surgimento de jovens jogadores com nomes compostos – Bruno Silva, Thiago Medeiros, etc. – e bradar pela volta dos apelidos no futebol (Pelé, Garrincha, Didi, Vavá…), esquecendo que, desde 1958, estamos encantando a Europa com dois laterais ‘Santos’, Djalma e Nilton. Deslizes de árbitros são igualmente corriqueiros e especialmente registrados em jogos entre Brasil e Espanha por Copas do Mundo. Anotem: daqui a 24 anos, em Mundial no México (sim, serão dois lá!), teremos mais uma vez a vitória (1 x 0) facilitada pelo “apito amigo” do australiano Christopher Bambridge, que, após chute espanhol no travessão, não vai ver que a bola descerá quicando dentro da nossa meta. Ou não vai querer ver. Quem nunca?
A vida nos ensina que muitas vezes o cérebro é imperativo sobre o sentido da VISÃO. Enxergamos o que nossos pensamentos querem, ou cumprindo ordens de nossos sonhos e desejos. Ontem mesmo, ao final da partida, visitei a área da imprensa e tive a felicidade de encontrar o grande Fiore Gigliotti, narrador esportivo, que transmitiu o embate pela Rádio PanAmericana. Pois eis que, para minha surpresa, tanto ele como seus colegas de equipe estavam chamando a penalidade máxima de “encenação” espanhola e considerando o golaço de bicicleta “muito bem anulado” pelo juiz. São os olhos da paixão. Menos mal que, nesses anos 60, ainda temos direito a rever nossas posições em vez de sermos imediatamente condenados e banidos do convívio e do respeito social. É como o bordão do mestre: “E o tempo passa…”
À parte o lance polêmico, o duelo particular entre Nilton Santos, com seus 37 anos, e o atacante Enrique Collar, 27, foi vencido pelo brasileiro. Mas na maior parte do tempo, reconheçamos, a Espanha dominou o Brasil. Observei que no exato momento em que Puskás se preparava para bater a falta que terminaria no gol anulado, o treinador Aymoré Moreira foi até a lateral do campo dar instruções específicas a Amarildo, substituto de Pelé. Devem ter sido palavras mágicas, pois daquele momento em diante o Brasil cresceu no jogo e o estreante no ataque mostrou-se gigante. Os últimos minutos da partida foram emocionantes, com chances reais para ambos os lados e o gol derradeiro de Amarildo aos 38’. Mas além de Aymoré Moreira, a vitória teve por trás a sabedoria de outro ‘macaco velho’ da bola: Nilton, o ‘Enciclopédia’.
O apelido dele entre os jogadores é outro: ‘Chiado’, surgido pelo tanto que o lateral fala, opina e orienta no grupo, sempre em tom severo, reclamando, cobrando. Na véspera do confronto, a história revelará, Nilton Santos teve conversas particulares com Amarildo, seu colega no Botafogo, e Didi, que nutria especial revanchismo contra Di Stefano, desde que ‘não se bicaram’ atuando juntos no Real Madrid. Mesmo sabendo que o argentino – naturalizado espanhol especialmente para a Copa, como o húngaro Puskás – ainda não deveria ter condições, por lesão, de entrar em campo, tendo estreia prevista para a próxima fase deste Mundial. A propósito, com a eliminação espanhola, Stefano, para tristeza do futebol, encerrará a carreira sem jamais disputar um jogo de Copa.
Já Nilton Santos está pela quarta vez disputando a maior competição do mundo entre seleções. Alto (1,84m), destro (embora na esquerda) e dono de um futebol técnico e vigoroso (será dele eternamente o mérito de ter inventado a subida ao ataque dos laterais), o craque dará muitas entrevistas sobre o tal pênalti, mais do que sobre projetos sociais e outras iniciativas que ainda terá em vida. Pouco preocupado em dar justificativas, será sincero ao dizer que agiu “instintivamente”. “Só vi que foi pênalti revendo o lance. Na hora, na dúvida, dei dois passos. O árbitro estava longe, não viu. Foi pura malandragem, daquelas que a gente aprende nas peladas”, serão suas palavras. O espanhol Collar também será compreensivo com as motivações do brasileiro. “Foi inteligência. São coisas do futebol. Não tenho queixa alguma. Ele fez o que tinha que fazer por sua equipe.” Como se vê, o olhar pessoal, o tempo e o contexto são protagonistas neste jogo difícil de julgar as pessoas. E isso não se aprende nas Enciclopédias. Aliás, em 2022 elas nem existirão mais. A intolerância, sim.
FICHA TÉCNICA
BRASIL 2 × 1 ESPANHA
Data: 6 de junho de 1962
Estádio: Sausalito, em Viña Del Mar (Chile)
Árbitro: Sérgio Bustamante (Chile)
Auxiliares: Esteban Marino (Uruguai) e Jose Antonio Sundheim (Colômbia)
Público: 18.715
Brasil: Gilmar; Djalma Santos, Mauro Ramos, Zózimo e Nilton Santos; Zito e Didi; Garrincha, Vavá, Amarildo e Zagallo
Técnico: Aymoré Moreira
Espanha: Jose Araquistain; Rodrí, Echeberría e Gracia; Martín Vergés e Pachín; Enrique Collar, Joaquin Peiró, Ferenc Puskas, Adelardo e Francisco Gento
Técnico: Helenio Herrera
Gols: Adelardo (35’/1º tempo), Amarildo (27’/2º tempo) e Amarildo (41’/2º tempo)
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