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Especial Placar

Racismo, xenofobia e mais: uma chaga sem fronteiras

Ofensa racista sofrido por Luighi, do Palmeiras, causou revolta e ampliou debate sobre o preconceito na América do Sul. Mas não se deixe enganar: crimes raciais e xenofóbicos crescem também no quintal de casa

Publicado por: Enrico Benevenutti em 28/05/2025 às 07:00 - Atualizado em 28/05/2025 às 21:11
Racismo, xenofobia e mais: uma chaga sem fronteiras
As mazelas preconceituosas da sociedade sul-americana inseridas também no futebol - Arte / PLACAR

Reportagem publicada na PLACAR de maio, edição 1523, já disponível em nossa loja, nas bancas e em versão digital (vire membro)

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Moacir Barbosa do Nascimento, nascido em 27 de março de 1921 e condenado no dia 16 de julho de 1950. Preto de nascença e de morte, um dos maiores goleiros de sua época e ídolo do Vasco da Gama. A história de Barbosa é amplamente conhecida e relembrada quando necessária – e esquecida tantas outras vezes. O chute de Alcides Ghiggia que o superou na final da Copa do Mundo de 1950, e criou o termo Maracanazo para denominar o título uruguaio, sentenciou Barbosa como “o homem que fez o Brasil chorar”, e criou o estigma de que preto não deveria ser goleiro. Ainda em 1921, quando Barbosa era apenas um recém-nascido, o Brasil disputara a Copa América na Argentina apenas com jogadores brancos, uma recomendação do então presidente Epitácio Pessoa acatada pela CBD para “preservar a reputação do país no exterior”.

A justificativa caiu como uma resposta conivente ao episódio racista do ano anterior, quando o jornal argentino Crítica publicou uma charge representando os jogadores brasileiros, entre eles o histórico Arthur Friedenreich, como macacos. Episódio semelhante se repetiu em julho de 1996, quando o tradicional periódico argentino Olé estampou na capa “Que vengan los macacos”, em nova referência à seleção brasileira.

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Inúmeros episódios poderiam ilustrar esta abertura, mas a interligação destes fatos em períodos tão distantes ajuda a compreender como o racismo está presente nas sociedades: “Uma das marcas do colonialismo é ter criado uma ordem social estratificada e hierarquizada a partir de categorias étnico-raciais. Em toda a América Latina há essa divisão. Não existe país sem racismo”, diz o argentino Nicolás Cabrera, sociólogo e pós-doutorado da UERJ no grupo de pesquisa Observatório Social do Futebol. O óbvio, por vezes, precisa ser dito e escrito: o futebol anda de mãos dadas com a sociedade, e reflete seus ideais, valores, culturas e mazelas. O racismo é parte deste bolo, no quintal do vizinho e também no nosso.

Marcelo Carvalho, diretor-executivo do Observatório de Discriminação Racial no Futebol, se diz farto de notas oficiais e discursos vazios. “Precisamos que as instituições trabalhem juntas. O racismo não vai acabar em uma ação da CBF ou mesmo do judiciário, é preciso criar conscientização e educação”. O Observatório monitora casos no Brasil e no exterior e encara o esporte como um meio de inclusão social e luta contra a discriminação e violência. Desde 2014, são disponibilizados relatórios anuais com todos os casos de preconceito racial, xenofóbicos, machistas e de LGBTfobia.

Na última década, foram 576 ocorrências somente por injúria racial, com um aumento dos registros ano após ano. A exceção foi 2020, ano da pandemia de Covid-19, quando os jogos aconteceram com os estádios vazios. No relatório de 2023, último divulgado, foram 136 casos. “Precisamos entender esse aumento gradual. Os números são ruins, mas tem algo que precisamos considerar, que é a abertura do debate. Estamos conscientizando mais as pessoas (jogadores, imprensa, torcedores). É preciso falar e denunciar, e sob essa perspectiva vejo algo positivo”, diz. “Mas, claro, esse número precisa parar de crescer em algum momento”.

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Marcelo explica que o Brasil acompanhou uma virada de chave mundial entre 2015 e 2016, quando a campanha Black Lives Matter (Vidas Negras Importam) ganhou força nas redes sociais depois de uma sequência de casos de violência policial contra jovens pretos nos Estados Unidos. No futebol, os ataques raciais a Vinicius Júnior em jogos do Real Madrid ganharam repercussão internacional e aceleraram a elaboração de medidas judiciais e esportivas na Espanha. Em contrapartida, discursos racistas e xenofóbicos ganharam impulso, dando início a uma guerra de narrativas infrutífera.

Na Europa, é comum escutar que Vini sofre racismo por ser provocador, e não o inverso. O episódio recente de maior repercussão teve como vítima o atacante Luighi, sub-20 do Palmeiras, que saiu do campo aos prantos no Paraguai após um torcedor do Cerro Porteño imitar um macaco em sua direção. Desesperado, o jogador questionou o jornalista da Conmebol presente: “É sério? Vocês não vão me perguntar sobre o ato de racismo que ocorreu hoje comigo? É sério? Até quando vamos passar por isso? Me fala, até quando? O que fizeram comigo é crime”, desabafou jovem de 18 anos.

Arte / PLACAR

Arte / PLACAR

É crime mesmo, mas não por lá. A legislação brasileira trata o racismo como delito inafiançável e imprescritível, fazendo a distinção entre racismo e injúria racial e punindo ambos criminalmente. Já no Paraguai, o racismo é classificado como um ato infracional, com multas que podem chegar até 100 salários mínimos, mas não à prisão. O próprio Palmeiras preferiu cobrar ações no âmbito esportivo a ir à delegacia.

“A Conmebol vai fazer o que sobre isso?”, questionou Luighi, na saída de campo. A punição foi branda, de US$ 50 000 (cerca de R$ 288 000), portões fechados durante a disputa da Libertadores sub-20 e divulgação da campanha de conscientização. O Palmeiras chegou a enviar um ofício à Fifa solicitando punições mais severas que nunca chegaram e a presidente Leila Pereira ameaçou se filiar à Concacaf. A emenda saiu pior que o soneto quando o chefe da Conmebol resolveu se pronunciar: “[Uma Libertadores sem brasileiros] seria como o Tarzan sem a Chita”, afirmou o presidente Alejandro Dominguez, paraguaio, citando o famoso chimpanzé da série de TV americana dos anos 1960. Depois, se desculpou.

A revolta do torcedor brasileiro com a entidade não é de hoje. Casos se repetem, quase sempre com punições inexpressivas ou até inexistentes. Para efeito de comparação, a punição a casos de racismo é semelhante àquela imposta em caso de uso dos sinalizadores que colorem a festa nas arquibancadas. O Cruzeiro, por exemplo, precisou pagar quase 1 milhão de reais de multa pela ação da torcida na semifinal da Sul-Americana, contra o Lanús.

“A Conmebol vem trabalhando, assim como a Fifa, para aprimorar o combate ao racismo. A multa aumentou, antes era 30 000 dólares e hoje chega a 100 000 dólares. Só que é uma velocidade muito menor do que gostaríamos”, diz Marcelo Carvalho.

A hegemonia do Brasil na Libertadores (clubes do país venceram todas as edições desde 2019) e o título da Copa América e mundial de Lionel Messi e companhia fizeram crescer a rivalidade – e a animosidade vinda das arquibancadas. Para dar profundidade ao debate, Nicolás Cabrera explica que a Argentina foi criada com uma autopercepção de “nação branca”. A narrativa das elites nega a história negra e indígena do país e destaca os imigrantes europeus.

“A Argentina é muito racista também internamente, com aquelas populações afrodescendentes, que são minoritárias, e sobretudo com sua composição indígena, que proporcionalmente é maior que no Brasil”. Nico explica que a palavra negro, na Argentina, não se limita a uma característica fenotípica. “Negro aqui é pobre. Pode até ser uma pessoa branca e loira, mas se for pobre é negra. Isso dá a medida de como a questão racista se mistura com a classista. Politicamente, o peronismo; musicalmente, a cúmbia e o quarteto; e esportivamente o futebol… são todas coisas de negros”.

Em um dos discursos mais lamentáveis dos últimos tempos, o ex-presidente argentino Alberto Fernández chegou a dizer em uma visita à Espanha que “os mexicanos saíram dos índios, os brasileiros da selva, mas nós, argentinos, chegamos dos barcos que vinham da Europa.” É o preconceito enraizado, até mesmo na esquerda argentina.

Ainda que o Brasil tenha avançado no tema recentemente, o país foi o último das Américas a abolir a escravidão, com a lei Áurea de 1888. No caso argentino, a lei da Liberdade de Ventre deu início ao processo em 1813 com uma extinção gradual até 1853. No Uruguai, o parlamento aboliu em 1842 e, no Paraguai, em 1869, após o fim da guerra.

Em comparação, países como Argentina e Uruguai tinham números de escravizados em menor escala, voltados para serviços domésticos em áreas urbanas, enquanto o Brasil utilizava a escravidão amplamente no trabalho rural, nas plantações. De acordo com o IBGE, 55,5% da população brasileira é negra (preta ou parda). Na Argentina, de acordo com o censo de 2022, apenas 2,9% se identificam como indígenas e 0,7% como afrodescendentes. Já no Paraguai, maioria da população se entende como mestiços, (75%), diante de 20% brancos, 2,3% indígenas e apenas 1% afrodescendentes.

Arte / PLACAR

Arte / PLACAR

Um ponto – ou melhor, um contraponto – é constantemente citado pelos argentinos: a repressão policial contra seus torcedores nos estádios brasileiros. “O Brasil avançou muito na discussão do racismo a ponto de se tornar o mais avançado e conscientizado nas discussões da região. Ao mesmo tempo, a Argentina talvez seja o pior aluno da turma. Para o argentino fazer um gesto racista é apenas uma piada. Para o brasileiro é um crime. Em contrapartida, desde que a Argentina saiu da última Ditadura Militar, criou-se uma consciência social e um repúdio ao uso das forças de segurança que no Brasil é naturalizado”, argumenta Nicolás Cabrera.

Em entrevista à PLACAR em 2024, o argentino Pablo Vegetti fez coro: “Na Argentina, o racismo é passado por cima, não é debatido. Mas também acontece muito de argentinos serem maltratados pela polícia do Brasil. Tudo isso precisa acabar, porque somos todos iguais.” O choque não é apenas com argentinos, mas sim com todo o continente. O presidente da Federação Uruguaia de Futebol, Ignácio Alonso, acusou o Brasil de xenofobia e abuso de autoridade por conta da truculência policial.

Mesmo no caso mais recente, do atacante Luighi, houve troca de acusações. Personalidades como o ex-zagueiro Carlos Gamarra (ler mais no box ao lado) defenderam a torcida paraguaia. O compatriota Ángel Romero, atacante do Corinthians, condenou o racismo, mas botou o dedo em outra importante ferida.

“Eu convivo com isso quase todo dia aqui. O Brasil é o país com mais racismo e discriminação, só que a maioria não quer aceitar isso. Se me chamam de índio, não ligo, tenho orgulho de ser paraguaio e ser índio da raça guarani.”, desabafou Romero. “Isso realmente é enquadrado como racismo. É algo que precisamos refletir, pois se não queremos ser discriminados não podemos discriminar”, diz Marcelo Carvalho.

No futebol brasileiro, o primeiro clube punido por racismo foi o Juventude, em 2005. A agremiação de Caxias do Sul recebeu uma multa de R$ 200 000 e perdeu dois mandos de campo por insultos ao jogador Tinga, do Internacional. No mesmo ano, o atacante Grafite sofreu com insultos racistas do argentino Desábato, em confronto entre Quilmes e São Paulo, pela Libertadores. O zagueiro foi preso em flagrante ainda no Morumbi e foi liberado somente após pagar a fiança. O caso causou grande repercussão, com parte da imprensa argentina criticando as ações da polícia brasileira.

Nove anos depois o STJD foi exemplar ao eliminar o Grêmio da Copa do Brasil em caso marcante envolvendo o goleiro Aranha, então no Santos. Ainda em 2014, Arouca, também no Santos, foi vítima em episódio que mobilizou a opinião pública e gerou a abertura de um inquérito pelo Ministério Público de São Paulo e a Federação Paulista.

“Existe uma sensação de impunidade muito grande, é uma questão que precisa se resolver. O racismo no futebol ou fora dele precisa ser combatido, precisa se punir mais. A punição não é a única solução, mas ela precisa existir”, diz Marcelo Carvalho. E os casos continuam, com fortes doses de hipocrisia, como se o problema estivesse sempre do lado de lá da fronteira. Em janeiro de 2025, o zagueiro Léo foi chamado de ‘macaco’ no clássico entre Coritiba e Athletico.

O atleta abriu um Boletim de Ocorrência e o caso segue em investigação pela PM do Paraná. Como destacado mais cedo, o Brasil tem evoluído no assunto, tanto em discussões sociais quanto em medidas judiciais. Ainda é pouco. O argentino Nico é pessimista sobre o tema: “As entidades não estão fazendo nada. E se estão, não estão sendo efetivos. Talvez estejam partindo do diagnóstico errado, talvez não se interessem ou talvez não saibam como lidar com a situação.”

Capa da edição de maio de 2025, com Raphinha em destaque - PLACAR

Capa da edição de maio de 2025, com Raphinha em destaque – PLACAR

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