Goleiro, de posição maldita a protagonista em campo
Especial de VEJA para o Dia do Goleiro, com depoimentos de históricos goleiros brasileiros, analisa o desenvolvimento da ingrata posição de camisa 1
“Amigos, eis a verdade eterna do futebol: o único responsável é o goleiro, ao passo que os outros, todos os outros, são uns irresponsáveis natos e hereditários. Um atacante, um médio e mesmo um zagueiro podem falhar. Podem falhar e falham vinte, trinta vezes num único jogo. Só o arqueiro tem que ser infalível.” Assim definiu Nelson Rodrigues a singularidade do goleiro em uma crônica originalmente publicada na Manchete Esportiva de 30 de maio de 1959. Nela, o cronista, dramaturgo, jornalista e apaixonado por futebol tentava (em vão) absolver Moacir Barbosa, o arqueiro que morreu carregando o fardo do Maracanazo de 1950. O deslize de Barbosa em chute do uruguaio Alcides Ghiggia só foi perdoado longos 64 anos depois, quando a seleção brasileira perdeu sua segunda Copa em casa, desta vez com um verdadeiro atropelamento alemão – e ironicamente, sem nenhuma culpa depositada sobre o goleiro brasileiro. Dos tempos de Barbosa até os de Júlio César, o papel do goleiro no jogo de futebol mudou drasticamente, mais do que o de qualquer outra posição. Cada vez mais, o atleta responsável por defender a meta de 7,32 metros de largura e 2,44 metros de altura desempenha um papel de protagonista. Há até um Dia do Goleiro, celebrado no Brasil em 26 de fevereiro, data de nascimento de Manga, camisa 1 de Botafogo, Inter e seleção nas décadas de 60 e 70. Principal expoente do momento, o alemão Manuel Neuer é a prova de que goleiros de elite podem (e precisam) fazer muito mais do que se atirar nas bolas em cima da linha de gol. O posto, que por natureza é reservado ao vilão da história – já que sua função é evitar a alegria maior do jogo -, se aproximou cada vez mais daquele ostentado pelo camisa 10 ou pelo centroavante: o de craque do time.
Entrevistas: cinco grandes goleiros falam sobre o que mudou na posição
Nas peladas em qualquer canto do mundo, é quase regra que o jogador menos habilidoso assuma a responsabilidade de proteger a meta. Dessa forma nasceram vários dos grandes goleiros, numa época em que o camisa 1 praticamente não usava os pés (só a partir de 1992 os goleiros foram proibidos de receber com as mãos as bolas recuadas com os pés por seus companheiros). O dever primário do goleiro ainda é o mesmo: o de defender bem com as mãos. Posicionamento, reflexo, personalidade e coragem também são fatores essenciais. No entanto, o desenvolvimento do esporte (peso da bola, design das chuteiras, condição dos gramados, aprimoramente físico dos atletas, por exemplo) aumentou o nível de exigência da posição, a ponto de um goleiro ter sido indicado ao maior prêmio do futebol, a Bola de Ouro da Fifa, em 2014 – Neuer ficou em terceiro, atrás de Lionel Messi e do vencedor Cristiano Ronaldo, para muitos uma injustiça.
Júlio César: ‘Meu tempo na seleção ainda não acabou’
A questão financeira também evidencia a evolução na posição. De acordo com uma recente pesquisa do site britânico Goal.com, o italiano Gianluigi Buffon, campeão do mundo em 2006 e considerado um dos grandes nomes da posição em todos os tempos, é o 13º jogador de futebol mais rico do mundo. Além dos 6,6 milhões de euros que recebe de salário da Juventus, o goleiro de 37 anos ainda tem contratos com marcas como Pepsi, Fiat e Puma, fechando seu faturamento global anual de 2014 em 71 milhões de euros (pouco menos de 250 milhões de reais). O campeão da lista, Cristiano Ronaldo, recebeu 210 milhões de euros no mesmo período. O goleiro espanhol Iker Casillas, do Real Madrid, e, claro, Manuel Neuer, do Bayern de Munique, também recebem quantias semelhantes às dos craques de suas equipes. No Brasil, os goleiros de primeira linha recebem salários mensais que podem ultrapassar os 400.000 reais, pouco menos que os principais atacantes dos grandes clubes. Outro exemplo prático do sucesso dos goleiros: várias das maiores equipes nacionais têm como principais ídolos jogadores como Marcos (ex-goleiro do Palmeiras), Rogério Ceni (goleiro-artilheiro e capitão do São Paulo), Victor (Atlético-MG), Jefferson (Botafogo e seleção), entre outros. São muitos os torcedores dessas equipes que vão ao jogos com uma camisa dos arqueiros. E atingiram status inimagináveis algumas décadas atrás, como, por exemplo, no caso de Marcos, que virou garoto-propaganda do Palmeiras, e que raramente tem horário para entrevistas em sua agenda.
Na Argentina, o fantasma de Fillol
É claro que no passado também existiram “goleiros-craques” – mas como exceções que confirmavam a regra. Primeira grande estrela do futebol espanhol, o catalão Ricardo Zamora viu sua fama transcender o limite dos gramados no início do século passado. Com camisa negra e boina, atuou profissionalmente entre 1916 e 1938, com muito destaque pelos rivais Barcelona e Real Madrid e pela seleção espanhola. Em sua homenagem, em 1959 foi criado o Troféu Zamora, concedido ao goleiro menos vazado da liga espanhola. Carismático e admirado em toda a Espanha, ele também estrelou dois longas-metragens – Por fin se casa Zamora (1926) e Campeones (1942). Anos depois, outro goleiro com pinta de galã se tornou uma sensação mundial: o soviético Lev Yashin. Estrela do Dínamo de Moscou e da seleção da antiga União Soviética, conquistou a medalha de ouro na Olimpíada de 1956, em Melbourne, e a Eurocopa de 1960, na França, entre outros títulos, sempre vestindo a camisa preta que inspirou seu apelido, Aranha Negra. Yashin disputou ainda quatro Copas (1958, 1962, 1966 e 1970 – a última, na reserva) e é, até hoje, o único goleiro a ter recebido o prêmio Bola de Ouro, em 1963, quando a premiação ainda era oferecida exclusivamente pela revista France Football. No auge da Guerra Fria, Yashin era um autêntico garoto-propaganda da União Soviética.
Estilo único: a moda dos goleiros, cores nas camisas, calças, luvas
Assim como Yashin, o alemão Manuel Neuer, campeão do mundo no Maracanã em 2014, se tornou uma estrela por ter características incomuns. Sobretudo após a chegada do técnico espanhol Pep Guardiola ao Bayern de Munique, Neuer passou a jogar cada vez mais adiantado, ajudando até na armação das jogadas do time alemão. Na Copa, após uma atuação memorável diante da Argélia, em Porto Alegre, o goleiro foi comparado a Franz Beckenbauer, o maior jogador alemão de todos os tempos e o mais famoso líbero da história do futebol. Apesar de todo o reconhecimento, Neuer afirmou semanas antes da entrega do prêmio de melhor do mundo que não tinha chances de vencer, pois “não posava de cuecas”, em uma provocação ao campeão português e rei da exposição de todos os tipos Cristiano Ronaldo.
Três fatos, no entanto, negam a tese caricatural de Neuer: 1 – o português do Real Madrid mereceu o prêmio pelo que fez dentro de campo e não apenas por seu apelo midiático; 2 – Lionel Messi também adota um estilo low profile e já ganhou quatro vezes a Bola de Ouro; 3 – Neuer só não posa de cuecas porque não quer, pois é uma das figuras mais assediadas pelo mercado publicitário na atualidade.
Grandes defesas da história:
Gordon Banks
Não há cenário melhor que uma Copa do Mundo para a consagração de um goleiro. Melhor ainda, só se sua vítima for o melhor jogador de todos os tempos. Em 1970, Gordon Banks, da Inglaterra, se eternizou ao defender uma cabeçada certeira de Pelé. O camisa 10 subiu muito e testou firme para o chão, mas Banks se atirou na bola e jogar para escanteio.
Júlio César
O brasileiro Júlio César foi o protagonista do capítulo mais dramático da conquista da Liga dos Campeões de 2010 pela Inter de Milão. No jogo de volta das semifinais contra o Barcelona, Júlio suportou um bombardeio da equipe catalã com defesas extraordinárias no Camp Nou. Na mais memorável delas, parou Lionel Messi: em sua jogada tradicional, o argentino enfileirou defensores da esquerda para a direita e chutou forte no canto, baixo, mas o goleiro da Inter se esticou no limite e desviou a bola para escanteio.
Gianluigi Buffon
Gianluigi Buffon, campeão mundial com a Itália em 2006, é reconhecido como um dos maiores goleiros de todos os tempos. O capitão da Juventus elegeu uma defesa que fez na decisão da Liga dos Campeões de 2003 como a melhor de sua carreira. Após cruzamento de Clarence Seedorf, Pipo Inzaghi cabeceou no contrapé de Buffon, que teve reflexo para se recuperar e alcançar a bola, para desespero do atacante do Milan. A Juventus, no entanto, foi derrotada pelo rival, nos pênaltis, em Manchester.
Dida
No mesmo dia da melhor defesa da vida de Buffon, quem se consagrou foi um goleiro brasileiro: pelo Milan, Dida defendeu nada menos que três cobranças na decisão por pênaltis da Liga dos Campeões de 2003. David Trezeguet, Marcelo Zalayeta e Paolo Montero, da Juventus, pararam nas mãos do goleiro brasileiro.
Iker Casillas
Outro que segue em atividade, Iker Casillas fez a defesa de sua vida na final da Copa do Mundo de 2010. Já na segunda etapa, o capitão espanhol se viu frente a frente com Arjen Robben. O habilidoso atacante holandês arrancou e tentou tocar na saída de Casillas, que ja caia para o seu canto esquerdo. O jogador do Real Madrid, porém, conseguiu esticar a perna e desviar a bola para fora. Na prorrogação, Andrés Iniesta marcou o gol do inédito titulo espanhol em Johanesburgo.
Emerson Leão
A seleção brasileira não teve chances diante da histórica equipe da Holanda na semifinal da Copa de 1974, na Alemanha. No entanto, uma defesa impressionante de Emerson Leão impediu que o desastre fosse maior. Após falha de Zé Maria, a bola sobrou, a poucos metros da meta, no pé de Johan Cruyff, o melhor jogador do mundo na época. O craque do Ajax e do Barcelona chutou forte, mas Leão teve reflexo para evitar o gol. O Brasil, no entanto, perdeu a partida em Dortmund por 2 a 0.
René Higuita
Quando realizou a maior de suas ousadias, o colombiano René Higuita já era uma figura mundialmente conhecida, por sua longa cabeleira e, sobretudo, por suas estripulias em campo. Na Copa de 1990, divertiu os torcedores italianos com suas saídas de gol (com direito a dribles e uma falha grotesca contra Camarões). No entanto, o “Chute do Escorpião”, a jogada mais famosa de“El Loco” Higuita, aconteceu em 1995, no lendário Estádio de Wembley. Em um amistoso contra Inglaterra, ele rebateu um cruzamento mal feito que ia em direção ao gol jogando as duas pernas para trás, em um movimento jamais visto na história do futebol.
Dino Zoff
A tragédia do Sarriá – como ficou conhecida a derrota por 3 a 2 da seleção brasileira de Zico, Sócrates, Falcão e companhia para a Itália de Paolo Rossi na Copa de 1982 – poderia não ter acontecido não fosse pela segurança de Dino Zoff. Então com 40 anos, o capitão da Azzurra segurou uma cabeçada do zagueiro Oscar aos 44 minutos da segunda etapa. Um empate em 3 a 3 teria classificado a seleção brasileira
Marcos
Na vitória por 2 a 0 sobre a Alemanha, que deu à seleção brasileira o pentacampeonato mundial em 2002, Marcos fez ao menos duas defesas difíceis importantíssimas, que deram tranquilidade para que Ronaldo e Rivaldo pudessem brilhar na frente. Na mais difícil delas, defendeu uma cobrança de falta fortíssima de Oliver Neuville. Marcos se esticou e tocou na bola, que ainda explodiu na trave antes de sair. A partida estava 0 a 0.
Ubaldo Fillol
O maior goleiro argentino de todos os tempos, Ubaldo Fillol garantiu a conquista da Copa de 1978 com lindas defesas no Monumental de Núñez. Ainda na primeira etapa, ele usou todo o seu reflexo para desviar a bomba chutada pelo holandês Johnny Rep. O jogo terminou empatado em 1 a 1 e a Argentina venceu com mais dois gols na prorrogação. Curiosam”Pato” ente, Fillol vestia a camisa 5, pois a numeração da seleção argentina se dava por ordem alfabética.