‘E sempre teremos Paris’… a história por trás de França x Marrocos
Nem sempre teremos, é o que dizem os torcedores de diversos países árabes e muçulmanos que apoiam a seleção do Magrebe na semifinal da Copa
(I)
O repórter Tintim, personagem do belga Hergé, tem um enigma para decifrar em O Caranguejo das Pinças de Ouro, de 1941. Acompanhado do fiel cão Milu, ele viaja ao Marrocos para perseguir uma gangue de contrabandistas internacionais de ópio.
(II)
Em O Tempo Entre Costuras, livro de 2009 da escritora espanhola María Dueñas, uma jovem estilista deixa Madri no início da Guerra Civil, em 1936, para se instalar em Tanger, no Marrocos, ao lado do homem pelo qual se apaixonara.
(III)
Em 4 de agosto de 1578, a Batalha de Alcácer-Quibir, no Marrocos, resultou no massacre das tropas lusitanas e na morte do rei D. Sebastião. O desaparecimento do soberano, sem deixar herdeiros, produziu a crise dinástica que resultaria em Portugal subjugado pela Espanha. Sem a possibilidade de velar pelo corpo da majestade, o povo português imaginou que ele estivesse vivo e retornaria para reassumir o trono. O Sebastianismo virou um mito messiânico.
(IV)
“E sempre teremos Paris…”, como sussurrou o Rick Blaine de Humphrey Bogart para a Ilsa Lund de Ingrid Bergman na cena final de Casablanca, de 1942, pegando-a nos braços.
Bélgica, Espanha, Portugal e agora a França, em meio ao deserto catari, nessa exata ordem – a seleção do Marrocos, por obra do sorteio e do destino, enfileirou meia Europa em sua inesquecível aventura pela Copa do Mundo de 2022. Foi como se iluminasse o permanente fascínio pelo país do Norte da África, separado do outro continente pelo Estreito de Gibraltar. Mas há um modo diferente de enxergar as sucessivas vitórias, até o duelo, chamemos assim, contra a França de Mbappé e Griezmann: as partidas do Marrocos são celebradas pelas ruas de Doha, entre torcedores com as bandeiras vermelhas e uma estrela verde ao centro, com uma palpável sensação de resposta do colonizado contra o colonizador – embora seja apenas um torneio de futebol. Uma metáfora possível, e um tanto óbvia, seria imaginar o Davi contra uma porção de Golias. O treinador marroquino Walid Regragui foi numa trilha mais pop. “Somos o Rocky Balboa deste Mundial”, disse, em alusão ao personagem perdidão de Sylvester Stallone que transforma esperança em socos, símbolo de perseverança, como se nota, do Ocidente ao Oriente.
Talvez seja mais do que isso, traduzido por celebrações infindáveis em pelo menos quatro cantos do lado de cá e do lado de lá de Gibraltar: na Espanha, em Portugal, na França, no Catar e, evidentemente, também no Marrocos. São festas com mensagens diferentes, atalho para compreender o significado do feito marroquino – mesmo que não chegue até a final de domingo, 18, porque a história já foi escrita.
As distinções das algazarras de um país para o outro – logo mais se lerá aqui o que as difere – ajudam a enriquecer o olhar geopolítico para a surpresa liderada pelo lateral Achraf Hakimi, do PSG, e o volante Sofyam Amrabat, da Fiorentina. Com um detalhe fundamental: Hakimi nasceu em Madri, chegou a treinar nas seleções de base da Espanha e foi ignorado pelo Real Madrid. Amrabat nasceu na Holanda e ele também chegou a vestir a camisa do time laranja. Ambos relataram ter feito a escolha “com o coração”.
Mas eis, enfim, os que os gritos populares, geograficamente espalhados, revelam:
Nas capitais europeias, imigrantes e filhos de imigrantes marroquinos foram às ruas celebrar como se estivessem a caminho de uma semifinal de Copa do Mundo – opa, e era isso mesmo. Não por acaso, na confirmação da estupidez xenófoba, um dos líderes da extrema-direita francesa, Éric Zemmour foi à televisão para cuspir uma barbaridade: “Como reagiriam os marroquinos se milhares de franceses celebrassem uma vitória nas ruas de Marrakech?”.
Em Doha, o Marrocos virou a vitrine de um sentimento de nacionalismo árabe, o pan-arabismo – ele parecia ter diminuído, em decorrência de conflitos econômicos, de diferentes países, mas parece ter renascido. Como as outras nações árabes e islâmicas foram ficando no meio do caminho, o Marrocos se tornou porta-estandarte da causa palestina. É comum ver torcedores dos Leões do Atlas, como são chamados, com bandeiras da Palestina. Eles atravessam as madrugadas fumando narguilé, jogando conversa fora e ouvindo música em alto volume – o som das caixas levadas nos ombros dividem o éter com o canto do muezim, o pregoeiro chamando do alto dos minaretes para a reza das 04h30.
A reportagem de VEJA se aproxima de um grupo de três amigos vestidos com as cores do Marrocos. Dois deles são da Faixa de Gaza. O outro é do Bahrein. Por que o Marrocos? “Porque temos o mesmo sangue”, diz um deles. “Chegou a nossa vez, e a Copa no Catar é a melhor oportunidade de mostrarmos nossa união”. Numa outra mesa há um grupo de cinco marroquinos vindos de Paris, sem ingressos para os jogos. “Mas precisávamos estar aqui”, diz Youssef Atimani. Induzido a tratar de uma ironia – o fato de o Marrocos disputar a semifinal para a França, que durante 20 anos da primeira metade do Século XX manteve a nação do Magrebe como um protetorado –, ele é interrompido por um companheiro de viagem. “O que nos faz próximos é o Império Otomano!”. Um outro interrompe o diálogo para sacramentar: “Temos de escolher entra a mãe, o Marrocos, e o pai, a França – preferimos ficar com quem nos gestou, a mãe”. O atacante Soufiane Boufal, aliás, dançou com a mãe no gramado depois de vencer Portugal. Hakimi também tinha a mãe na arquibancada.
E a festa nas cidades do Marrocos, para além de Marrakesh, para além da bagunça feliz na Europa e no Catar, o que representa? A soma de todas as outras – como se houvesse uma guerra simbólica colada ao futebol. Há diversas postagens nas redes sociais brincando com uma suposta e irreal retomada da Batalha de Tours, depois de 1 290 anos. Em 732, os franco-cristãos liderados por Carlos Martel expulsaram da Europa Ocidental os muçulmanos comandados por Abderramão. Há algum exagero, é claro, mas para os fãs da arrancada marroquina é como se dessem as mãos para o craque francês Karim Benzema, de pais argelinos, que se contundiu e foi cortado da seleção francesa. Há alguns anos, ostensivamente vaiado, ele soltou uma frase inteligente para condenar a xenofobia: “se marco gol sou francês, se não marco, sou árabe”.
O Marrocos jogará em casa no Al Bayt, na noite desta quarta-feira, 14 de dezembro – e os árabes, em grande maioria no estádio, torcerão contra os franceses.