Paulo Autuori: ‘O futebol voltou de qualquer jeito. Não posso me calar’
Treinador do Botafogo reforçou críticas a Ferj e disse que retomada apressada do futebol amplia a vantagem do Flamengo sobre os rivais
O Botafogo está classificado às semifinais da Taça Rio, o segundo turno do tumultuado Campeonato Carioca de 2020. No próximo domingo, 5, enfrenta o Fluminense, no Estádio Nilton Santos, com portões fechados — por ter melhor campanha, o clube tricolor joga pelo empate. O treinador alvinegro Paulo Autuori naturalmente prepara seus atletas com o objetivo de chegar à decisão, mas não esconde seu descontentamento com a forma como se deu a retomada do futebol carioca em meio à pandemia de coronavírus.
Em entrevista a PLACAR realizada antes da classificação, Autuori fez duras críticas à Federação de Futebol do Estado do Rio de Janeiro (Ferj) que, segundo ele, tomou decisões sem ouvir atletas e treinadores, os mais afetados pela volta apressada. “Nós tivemos oito dias de treino, depois de 90 parados. Isso é não ter o mínimo de cuidado com os jogadores, é o descaso total com aqueles que são os verdadeiros protagonistas do futebol, junto com os torcedores”, desabafa.
Por sua postura combativa, o treinador de 63 anos (portanto, dentro do chamado grupo de risco da Covid-19), vem recebendo críticas de clubes menores, como Bangu e Portuguesa, e chegou a ser suspenso pelo Tribunal de Justiça Desportiva do Rio depois de dizer que a Ferj é a “Federação dos espertos” e que “o campeonato é carta marcada”. Apesar disso, o técnico carioca não pretende se calar.
“Como em tudo na vida, destacam mais o negativo. Trabalhei em seis países e sempre tive uma postura de falar o que achava que tinha de falar, não iria mudar agora depois de velho. Sou muito crítico ao que acontece aqui no Rio de Janeiro e isso transcende o futebol”, afirmou o técnico, que tem no currículo dois títulos de Libertadores, um Mundial de Clubes e um Brasileirão – o último pelo próprio Botafogo, em 1995.
Autuori rasgou elogios ao time do Flamengo e as últimas gestões de futebol do rival, mas disse que a retomada do futebol, liderada pelos dirigentes rubro-negros, beneficiou o atual campeão estadual, o primeiro a retomar suas atividades. “O Brasil teve a oportunidade de ver o que acontecia lá fora para tomar atitudes, mas não o fez. Me parece que a Ferj quis mostrar poder, pressionar as outras federações a voltar, mas não funcionou. E já é uma sequência, há alguns anos a Ferj fez uma fórmula de campeonato que até brincavam que nem Einstein era capaz de compreender. Ai agora determinou o Maracanã como neutro para o Flamengo poder jogar todos os jogos lá. Tem gente que acha que isso é normal, eu não acho. Isso amplia as diferenças que já existem. O legal é ser campeão por mérito, em um cenário igualitário, como o Flamengo fez ano passado.”
Confira, abaixo, outros trechos da entrevista:
O senhor tem sido uma voz bastante ativa contra a volta do futebol. O que mais o incomodou? O grande problema é que nós, os profissionais do futebol, não somos consultados sobre as decisões que impactam diretamente em nossas atividades. Não é questão de certo ou errado, não existe verdade absoluta, mas os protagonistas precisam ser escutados. No Rio, não há compromisso nenhum com a qualidade. O futebol voltou de qualquer jeito e não posso me calar sobre isso. Desde que eu comecei, em 1975, a Ferj teve apenas três presidentes. E você olha as outras federações, não é assim. Eu cito especificamente o caso da Federação Paulista de Futebol, que tem hoje como vice-presidente o Mauro Silva, um campeão do mundo, com conhecimento do que acontece em vários países. Quando estive no Santos, fui a reuniões com ele, vi que trouxe novos parâmetros e tem feito um trabalho extraordinário. Temos alguém desse nível na federação carioca?
O senhor tem comprado brigas com essa postura. Se arrepende de algo que disse? Não. Eu falo de conceitos, não de pessoas. Infelizmente, no Brasil quando você diverge conceitualmente, acaba virando um inimigo pessoal. Para mim é normal que haja divergência de ideias, as pessoas discordam e depois vão almoçar, não deixam de ser amigos. Agora estou sendo bombardeado pelos clubes de menor porte, que são todos ligados à Ferj, falaram até que eu devo estar sob efeito de alucinógenos. Só porque eu falei coisas que são públicas: que o Bangu treinou em hotel e não havia iluminação no campo da Portuguesa, não falei nada demais. Eu não estou perguntando de onde vem o dinheiro, só disse que os argumentos que são usados para justificar essa pressa, de que os clubes menores não têm dinheiro, se perdem completamente.
Recentemente, a prefeitura cogitou liberar a entrada de público (30% da capacidade) a partir do dia 10… Isso é pressão total, é política que transcende ao futebol. Política é importante, não deveria ter o tom pejorativo que adquiriu e o futebol é um poderoso fenômeno socioeconômico. O problema é que não existe debate. Os números estão assustadores, não estamos dando o devido valor a algo devastador. É inconcebível, não tem o mínimo de bom senso, e é por isso que não posso me calar, apesar de estar recebendo muitas indiretas e mensagens agressivas. Todo mundo quer voltar a treinar, a ter uma vida normal, não é só no futebol. Mas uma coisa é a vontade pessoal e outra as prioridades que se deve ter.
O que achou da postura do Flamengo nessa retomada do Estadual? O Flamengo é um clube grandioso. Foi assim em 2019, com seus atletas, sua comissão técnica, a torcida que lotou o estádio. Agora, neste caso eles optaram por outro caminho, e é um direito deles. O que eu acho é que já existe muito desequilíbrio competitivo no Brasil. Por exemplo, clubes de Santa Catarina ou do Nordeste já perdem muito tempo com problemas de malha aérea, tem que fazer recuperação dentro do avião. Isso por si só já cria diferenças. Como será agora a volta do Brasileirão quando algumas equipes já voltaram a treinar bem antes da outra porque um estado liberou e outro não? Isso por si só já estraga o espetáculo. Temos de pensar que esse é um ano completamente atípico, estará nos livros de história, a pandemia parou o mundo.
Sente falta de maior apoio de seus colegas de classe? O que eu mais preservo na vida é o direito de cada um de ser o que quiser ser. Sempre que chego em um clube digo isso às pessoas, elas tem de ser espontâneas e fazer o que sentem na alma. Agora, eu acho que as classes deveriam ser mais atuantes, treinadores e jogadores ainda não se deram conta da força que têm.
O fato de o Botafogo ter salários atrasados e uma gestão financeira caótica, desde antes da pandemia, não entra em contradição com a postura progressista que o clube vem adotando? Uma coisa não tem nada a ver com a outra. Depois que entramos com aquelas faixas em campo, que, aliás, foi algo que partiu dos jogadores, de forma espontânea, vi que nas redes sociais muitos rivais ironizaram essa questão dos salários atrasados. Mas são pautas diferentes. Fazendo uma analogia, somos como um trabalhador normal, que pode passar por momentos difíceis, ter dívidas, pegam um empréstimo. Isso por si só não coloca essa pessoa do lado errado. Estamos trabalhando para resolver nossos próprios problemas.
O modelo de sociedade anônima, que o Botafogo pretende implementar em breve pode ser a salvação dos clubes? O arcabouço jurídico de muitos clubes não permite que eles sejam geridos como devem, mas já temos alguns bons exemplos de gestão: Athletico Paranaense, Grêmio, o Flamengo desde o Eduardo Bandeira… Tem também casos que cito com muita felicidade, de Bahia, Ceará e Fortaleza. São boas gestões que vêm dando resultados e tem continuidade. Mas a grande maioria dos clubes tem dificuldade. O modelo que desejamos, que tramita na Câmara e que o conselho do Botafogo já aprovou, será uma mudança na gestão do futebol com a entrada de investidores e de um CEO. Isso é fundamental para romper esse círculo vicioso. O modelo do Botafogo S/A não é o único possível, mas é uma saída.