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Mito? Os gols ‘não-oficiais’ de Pelé e seus devidos contextos

Excursões internacionais do Santos, inclusive para enfrentar gigantes europeus, não entraram nas contas oficiais — mas sim para a história

“Se Pelé era tão bom, por que não jogou na Europa?”. O tolo questionamento, que parece tentar reescrever o passado com as tintas do presente, volta e meia pipoca nas redes sociais em tentativas de menosprezar os feitos da lenda do futebol, hoje com 81 anos. Bastaria dizer que foi no Velho Continente que o camisa 10 assombrou o mundo, aos 17 anos, chapelando zagueiros e erguendo a Copa do Mundo de 1958, na Suécia, entre tantas outras passagens gloriosas das excursões do Santos e da seleção brasileira. Outro equívoco recorrente, seja por ignorância ou má fé, é a tentativa de deletar da história os chamados “gols não oficiais” do Rei. Foi o que ocorreu nesta semana, depois que Cristiano Ronaldo tornou-se o recordista sob este critério. Em um importante programa da TV inglesa, o ex-zagueiro Jamie Carragher, ironizou as contas de Pelé — algo que, aliás, acontece com frequência também entre brasileiros. Mas, afinal, quantos gols Pelé fez e em qual contexto?

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Pelé tem, na contagem oficial da Fifa, que não leva em conta amistosos e jogos festivos, 767 gols e está em quarto lugar na lista geral, atrás do português Cristiano (807), do austríaco Josef Bican (805) e do compatriota Romário (772). Já levando em conta todas as partidas possíveis, o Rei do Futebol detém o recorde de 1.282 gols. Seu milésimo gol foi marcado diante do Vasco, numa monumental festa no Maracanã, em 1969. Ha, portanto, 517 gols retirados das contagens oficiais alguns, de fato, descartáveis, como os 14 marcados pelas Forças Armadas ou os três pelo Sindicato dos Atletas. Mas para entender a magnitude dos feitos de Pelé, é preciso colocar tudo em sua devida perspectiva. E a maioria de seus gols não contabilizados teve enorme valor.

Em sua edição de junho de 2020, PLACAR comparou os feitos dos gênios Pelé e Lionel Messi, destacando apenas os gols oficiais, para tornar o debate mais palpável e objetivo, mas com as devidas ressalvas. Dentre as centenas de gols “apagados” de Pelé estão aqueles em badalados amistosos pela Europa, como por exemplo Real Madrid 5 x 3 Santos, no Santiago Bernabéu, em 1959, no único embate entre Pelé e Alfredo Di Stéfano. O camisa 10 brasileiro fez um gol. Naquela excursão, a primeira do Santos celebrado como o grande time do planeta, o Peixe goleou a Inter de Milão por 7 a 1, com quatro gols de Pelé, e o Barcelona do brasileiro Evaristo de Macedo por 5 a 1, com dois do Rei. Eram jogos festivos, mas valiam muito, para ambos os lados, bem diferente do que ocorre nos torneios de pré-temporada na Ásia ou nos Estados Unidos atualmente.

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Outra prova de que não se deve beber do presente para medir o passado diz respeito ao peso das competições. Enquanto hoje o sonho de qualquer atleta é vencer a Liga dos Campeões ou a Libertadores, o Santos de Pelé tinha como prioridade — veja só — o Campeonato Paulista, cuja taça foi erguida pelo Rei dez vezes. Em 1958, aos 17 anos, Pelé marcou inacreditáveis 58 gols no Estadual. A Libertadores era relevante, mas, depois de conquistar a América em 1962 e 1963 e cair nas semifinais nos dois anos seguintes, em jogos controversos contra Independiente e Peñarol, respectivamente, o Santos abriu mão de disputar as edições de 1966, 1967 e 1969, mesmo estando classificado.

“Os dirigentes achavam que não era interessante. Por questões financeiras, o Santos preferiu priorizar as excursões internacionais para conseguir bancar seus sete ou oito jogadores de seleção”, recorda José Macia, o Pepe, parceiro de Pelé e autor de 405 gols pelo Peixe. Dentre as competições que efetivamente valeram, como as edições de 1962 e 1963 da Copa Intercontinental, o Mundial de Clubes da época, o Santos superou os grandes esquadrões de Milan e Benfica. A atuação em Lisboa, aliás, numa goleada por 5 a 2 do Peixe sobre o time do craque Eusébio, é apontada por Pelé como a melhor de sua carreira.

Pelé e Eusébio, os grandes craques da década de 60, já haviam se encontrado antes. Em 15 de junho de 1961, o Santos goleou o Benfica por 6 a 3, na final do Torneio de Paris, com dois gols do Rei e três do ídolo lusitano nascido em Moçambique. Aquela memorável tarde na capital francesa não consta nas contas oficiais da Fifa e de historiadores europeus.

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Também sumiram dos registros 9 gols pela seleção paulista, numa época em que os combinados de cada estado costumavam lotar os estádios, uma tradição que ajudou a moldar as rivalidades regionais e a grandeza do futebol brasileiro. Em um dos clássicos entre paulistas e cariocas, Pelé foi recebido com pompa por ninguém menos que a rainha Elizabeth II, em pleno Maracanã, em um verdadeiro encontro de Majestades diante de mais de 100.000 súditos.

O ano era 1968, marcado pela Primavera de Praga, pelo auge da Guerra do Vietnã e da Guerra Fria, por protestos estudantis ao redor do mundo, pelo assassinato de Martin Luther King, pelos protestos dos Panteras Negras na Olimpíada do México e pelo surgimento do movimento hippie, entre outros fatos históricos. No Brasil, a ditadura militar já ensaiava seus movimentos mais cruéis, mas o país viveu uma tarde de enorme alegria naquele 10 de novembro.

A Rainha Elizabeth II e o Príncipe Philip já haviam passado por Recife, Salvador, Brasília, São Paulo, Campinas e Campinas antes de encerrarem sua primeira e única visita juntos ao Brasil no Rio de Janeiro. A missão diplomática real tinha como objetivo estreitar relações com brasileiros e chilenos e ampliar a influência britânica no continente. O afago em Pelé certamente contribuiu para o objetivo. Neste dia, Pelé marcou o 900º de sua carreira, no triunfo por 3 a 2 dos paulistas. Toninho e Carlos Alberto Torres marcaram os outros gols, enquanto Roberto e Paulo Cezar Caju, colunista de PLACAR e então ídolo do Botafogo, descontou para os anfitriões.

Príncipe Philip e rainha Elizabeth II cumprimentando o jogador Pelé, no Estádio do Maracanã -
Príncipe Philip e rainha Elizabeth II cumprimentando o jogador Pelé, no Estádio do Maracanã –

Ainda que sempre tenha tentado driblar o debate político e racial, o que inclusive lhe rendeu algumas críticas, Pelé teve forte influência entre governantes e líderes sociais da época. Em mais um dos jogos não contabilizados, reza a lenda que o Santos chegou a parar uma guerra na Nigéria, em 1969, em um amistoso contra o Benin City, vencido por 2 a 1, com gols de Toninho Guerreiro e Edu.

Anos atrás, ao estudar aquele conflito na região da Biafra, o antropólogo José Paulo Florenzano, professor da PUC-SP, deu uma nova versão para o caso e disse que, na verdade, não houve cessar-fogo entre nigerianos e os separatistas biafrenses, mas uma demonstração de poder do governo militar da Nigéria, que já havia dominado a Guerra e pagou o luxuoso cachê do Santos como peça de propaganda do regime. Seja qual for a versão, o episódio demonstra o peso histórico daquelas viagens pelo mundo. Nesta turnê africana, o Santos realizou 9 jogos, com 5 vitórias, 3 empates e uma derrota, com 19 gols marcadoa, sendo 8 de Pelé.

Único atleta três vezes campeão do mundo por sua seleção como atleta, duas vezes campeão da América e mundial com o Santos, primeiro craque global do esporte e certamente o mais completo, pois driblava, passava e finalizava com perfeição (até como goleiro dizem que ia bem), Pelé não precisa de nenhuma homologação para que sua grandeza seja comprovada. De qualquer forma, é sempre bom respeitar a história, com suas devidas contextualizações.

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