Como a Espanha, nossa principal rival, aprendeu a dar olé
A atual campeã mundial, que se reuniu para a Copa na segunda, vem ao Brasil com um estilo aperfeiçoado durante décadas – e com a sua melhor geração
“Foi um processo que levou uma seleção estigmatizada e perdedora a se converter na única a vencer duas Eurocopas e um Mundial em sequência”, lembra Orfeo Suárez, autor de um livro sobre as glórias da equipe
Em 2007, quando o Brasil foi anunciado oficialmente pela Fifa como país-sede da Copa do Mundo de 2014, quem dissesse que a Espanha chegaria ao torneio como a principal adversária da seleção da casa seria provavelmente ridicularizado. Passados sete anos, porém, é difícil encontrar quem não inclua os espanhóis entre os principais favoritos ao título. Nesse período, a seleção vermelha conquistou nada menos de duas Eurocopas e um Mundial, o primeiro de sua história. Os clubes do país ibérico estiveram pelo menos entre os semifinalistas em seis das últimas sete edições da Liga dos Campeões – e no sábado, em Lisboa, fizeram a grande final do torneio, com a vitória do Real Madrid sobre o Atlético de Madri. A Espanha (cujos treinos para a Copa começaram na segunda), é uma das rara equipes classificadas que terão de deixar atletas de primeiríssimo nível assistindo ao torneio pela TV – há opções demais para poucas vagas, em especial no meio-campo, um setor onde algumas das melhores seleções do mundo (incluindo o Brasil, diga-se) não têm muitas alternativas de qualidade. Trata-se de um salto notável: depois de décadas figurando entre as forças secundárias do futebol internacional, a Espanha, um país cuja paixão pelo esporte é equivalente à do brasileiro, enfim virou potência. Mas o que, afinal, causou essa verdadeira revolução espanhola? E mais importante ainda: esse sucesso é passageiro ou os espanhóis chegaram ao topo para ficar?
Na semana passada, o site de VEJA acompanhou, em Madri, os preparativos do Real e do Atlético antes da viagem ao palco da decisão do maior torneio de clubes do mundo, na capital de Portugal. Em meio aos treinamentos dos rivais madrilenhos, a reportagem conversou com integrantes dos clubes e com repórteres e comentaristas que acompanham de perto tanto as grandes equipes do país (além da dupla finalista de sábado, a superpotência Barcelona) como a seleção nacional. De acordo com a maioria, essa fase gloriosa do futebol espanhol resulta de uma combinação de vários fatores, não de apenas um motivo isolado. Os especialistas afirmam também que o recente sucesso espanhol não é um fenômeno repentino, mas sim a consequência de um processo mais longo. Por fim, eles dizem acreditar que sua seleção e seus clubes deverão continuar por muito tempo entre os grandes favoritos a qualquer competição que disputem – ainda que sejam batidos no Mundial, como ocorreu na final da Copa das Confederações, no ano passado, os espanhóis já têm candidatos a ocupar as vagas de atletas como Xavi, Iniesta, Casillas e Villa, que já entram na fase derradeira de suas carreiras. É bom lembrar que os espanhóis são especialistas também em cantar suas próprias glórias, e que o orgulho com que estufam o peito para falar de seus recentes triunfos influencia, é claro, suas avaliações. É inegável, entretanto, que nossos principais rivais na Copa têm razões de sobra para se gabar.
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O principal motivo de orgulho dos atuais campeões mundiais é o fato de terem protagonizado, nos últimos seis anos, a última das grandes novidades do futebol. Bem, novidade em termos: o estilo de jogo da Espanha de hoje, de interminável toque de bola, movimentação constante e marcação por pressão, tem elementos aperfeiçoados há décadas. Há exatos quarenta anos, por exemplo, os holandeses assombraram o mundo com seu carrossel, na Copa da Alemanha-1974. Ainda que a Laranja Mecânica tenha sido derrotada na decisão, contra os donos da casa, deixou para sempre na cabeça dos torcedores – e na prancheta dos técnicos – a lição do dinamismo, da versatilidade e de uma forma inovadora de pensar o jogo. Não por coincidência, é na Holanda de 1974 que está uma das principais fontes de inspiração da revolução do “tiki-taka”, como ficou conhecido o estilo de jogo da Espanha campeã europeia e mundial. Antes mesmo de brilharem no comando do time laranja em 1974, o técnico Rinus Michels e o craque Johan Cruyff já haviam sido contratados pelo Barcelona, onde não só fizeram sucesso imediato como também plantaram as sementes de um futuro vitorioso, transformando-se nos ideólogos do futebol praticado pelo time desde então. O Barça absorveu alguns dos ingredientes da fórmula holandesa, mas só adotou de vez a estratégia da troca incessante de passes duas décadas depois, quando Cruyff retornou à Catalunha, agora como técnico.
Doutrina – Com o holandês no comando, o Barcelona radicalizou na valorização da posse de bola – Cruyff exigia que seus atletas controlassem o jogo ao seu modo, no seu ritmo, relegando o adversário a um mero coadjuvante da partida. (Um dos poucos jogos decisivos em que o Barça de Cruyff não conseguiu vencer usando essa estratégia foi a final do Mundial de 1992, contra um gênio da prancheta, Telê Santana, que fez o São Paulo vencer de virada mesmo com o domínio da posse de bola pelo rival.) Um dos principais atletas daquela equipe catalã, que ficou conhecida como “Dream Team” entre seus torcedores, era Pep Guardiola – que, depois de dezesseis anos, transformaria-se no sucessor de Cruyff, liderando uma nova fase gloriosa do Barça e retomando a mesma doutrina futebolística do ex-treinador. Guardiola chegou ao Barça justamente quando a Espanha venceu o primeiro de seus três grandes títulos consecutivos – e, não por coincidência, foi nas duas competições seguintes que o “tiki-taka” ficou ainda mais realçado no jogo da seleção. Curiosamente, Del Bosque, o técnico que reforçou a aposta no domínio da posse de bola, é cria do Real Madrid, onde foi jogador e treinador. Mas o bigodudo de jeito bonachão que comandará a seleção também no Mundial deste ano sabia que não poderia desperdiçar as melhores qualidades de atletas como Xavi, Iniesta, Fàbregas, David Silva, Juan Mata – todos jogadores extremamente hábeis, com passes precisos, muita mobilidade e grande inteligência para compreender o jogo.
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Na avaliação do jornalista Orfeo Suárez, autor do livro Yo Soy Español, sobre a conquista da “tríplice coroa” pela seleção nos últimos anos, “a ciência do jogo da Espanha”, cuja fórmula se baseia nos elementos mais marcantes dos clubes que servem de base para a equipe nacional, explica esta era de glórias, “desde a conservação infinita da bola simbolizada pelo Barcelona de Xavi até a idiossincrática fé na vitória que está no DNA do Real Madrid”. “Foi um processo que levou uma seleção estigmatizada e perdedora a se converter na única a vencer duas Eurocopas e um Mundial em sequência, superando a Alemanha de Beckenbauer e a França de Zidane”, lembra Suárez. E, apesar da derrota para o Brasil na final da Copa das Confederações do ano passado, os espanhóis acreditam, com um razoável nível de confiança, que podem ampliar a série com um segundo Mundial. Para Vicente García, autor do livro La Hazaña de la Roja, também sobre a série de títulos da equipe, não há como garantir até quando a boa fase se estenderá, mas há motivos para acreditar que ela deverá durar mais um bom tempo – e que, sem dúvidas, a seleção vermelha chegará com força ao Brasil. “Quis o destino que a próxima Copa se realize no Brasil, a terra do jogo bonito, a casa dos pentacampeões mundiais. Seria um sonho aumentar essa série de triunfos históricos com uma vitória no Maracanã. Desde que nasceu a paixão pelo futebol em nosso país, ninguém poderia imaginar que a Espanha chegaria a isso.”