Campeonatos têm estrutura de primeira, estádios lotados, festas que não são permitidas nos grandes palcos, e nível que já chama atenção de olheiros
Reportagem publicada na PLACAR de maio, edição 1523, já disponível em nossa loja e nas bancas
A expressão “isso é uma várzea” é muito utilizada para classificar algo como bagunçado. Pode até servir para avaliar o nível da maioria das competições do futebol amador brasileiro, mas não se aplica para um movimento que acontece em São Paulo. A chamada “várzea de elite”, que reúne os melhores jogadores sem vínculo profissional do Brasil, é organizada. Calendário cheio, times estruturados, e grandes festas das torcidas. Os jogadores “raiz” que não vingaram por motivos diversos, têm esperança, ainda que a realidade seja dura. O antropólogo Luiz Henrique de Toledo aponta que pouco mais de 1% dos que tentaram nas últimas décadas conseguiram se profissionalizar. Inevitavelmente, o Brasil perde muitos talentos, mas o destino está oferecendo uma nova oportunidade.
Um personagem se destaca neste ramo: o atacante Patrick Fabiano, de 37 anos, conhecido como Habibi por ter atuado profissionalmente no mundo árabe por muitos anos. Quem acompanha as redes sociais de futebol amador fatalmente o conhece. É ele quem denuncia supostos esquemas de empresários para convocar jogadores para seleção brasileira em um vídeo viral, compartilhado a cada derrota do Brasil. “Parece que é crime ser honesto. Eu falo essas coisas porque não tenho rabo preso com ninguém”, disse a PLACAR em entrevista em São Paulo.
O atacante é muito mais do que um boleiro sem papas na língua. Ele também é o responsável pela criação do projeto “Segunda Chance com Habibi”. A iniciativa social, como o nome diz, tem o objetivo de criar uma oportunidade para aqueles que não ainda conseguiram viver do futebol. Patrick Fabiano concilia as carreiras de atleta e homem de negócios. Abriu uma empresa para cuidar da gestão de carreira e auxiliar no processo de negociação dos atletas com os clubes. Também criou a “Mansão Habibi”, uma casa em um condomínio de alto padrão no Aruã, em Mogi das Cruzes-SP, para abrigar e dar suporte para aqueles que não tem onde ficar. Por último, o golaço digital: a parceria com o documentarista Quinute, que dá vida às histórias e vai caindo nas graças do público (118 000 seguidores no Instagram e 27 000 no YouTube).
Habibi ajuda a mudar a ordem natural das coisas. É comum encontrar quem saiu do profissional e hoje se aventura na várzea, como os centroavantes Nunes, Wellington Paulista e Leandro Damião. O caminho inverso é a novidade. O Santa Catarina, equipe da pequena cidade de Rio do Sul (SC) apostou em quatro jogadores oriundos da várzea paulistana – além do próprio Patrick Fabiano. Com todos em papeis de destaque, o time estreante na elite caiu apenas na semifinal, com derrota nos pênaltis para o campeão Avaí. Três deles foram negociados com grandes clubes do Estado (confira no infográfico).
Patrick “Habibi” disputa bola com ex-atacante Wellington Paulista – @ Clicks do Lemes/Divulgação
O trio não vem do projeto Segunda Chance – o que reforça o talento existente na “várzea de elite” –, mas vários outros oriundos da iniciativa estão buscando seu lugar ao sol. Na A4 do Paulistão, o atacante Fábio Azevedo foi o artilheiro e o craque do campeonato pelo São Caetano, que também contou com o volante Caio no elenco. O zagueiro Augustine Uche jogou a A3 pelo Marília. O zagueiro Guizão e o atacante Antônio Gabriel estão no Aimoré. Já o zagueiro Danilo Alemão e o habilidoso ponta Josué serão companheiros de Habibi pelo Blumenau Esporte Clube. “O que os diferenciam dos que já estão no profissional são a parte física e o investimento. Nada mais”, defende o idealizador do Segunda Chance.
A máxima é reforçada por quem entendeu e resolveu apostar no processo, como Daniel Carboni, CEO do Blumenau: “As principais diferenças são em velocidade, força e potência. Precisa trabalhar com o atleta para que a fibra rápida muscular se equipare às dos profissionais. A partir daí, quem tem mais qualidade vai se destacar”. Carboni vai além da figura do cartola convencional. Ele é fundador de uma empresa de ciência do futebol e análise de desempenho chamada ProMetrics.Club, uma das acionistas da SAF do Blumenau, que fez todo scout de Danilo Alemão e Josué na várzea antes da contratação. “Fecharam primeiro com o Segunda Chance e depois decidiram me levar”, brinca Patrick Fabiano.
A cada dia, mais e mais clubes procuram Habibi não só para conseguir um ou outro atleta, mas para montar todo o elenco. Vice-campeão brasileiro em 1985, o Bangu pediu para o Segunda Chance realizar um “draft”: uma série de jogos reunindo os maiores talentos disponíveis para serem observados. O time carioca se interessou por oito jogadores e as tratativas ainda aconteciam no momento do fechamento desta reportagem. Em um mundo com cada vez mais amarras e cheio de negociatas, o futebol amador reúne “pé-de-obra” demais e burocracia de menos para fornecer jogadores de qualidade aos clubes. Isso não é várzea.