Publicidade
Publicidade

Racismo, rivalidade e mais: Vegetti, ídolo do Vasco, abre o jogo à PLACAR

Salvador da pátria em 2023, argentino faz juras de amor eterno ao clube, põe o dedo em feridas e sonha marcar nome na história com título da Copa do Brasil

Pablo Vegetti já entraria facilmente numa fila de bons personagens, daqueles que pousam de tempos em tempos pelo país. De trajetória improvável no futebol até a chegada quase como um desconhecido ao Vasco da Gama, em 3 agosto de 2023, o argentino que completa 36 anos este mês é um prato cheio contra o marasmo. O avesso do lugar-comum e uma das atrações da edição de outubro de PLACAR, que chega na segunda semana de outubro à loja do Mercado Livre e nas bancas de todo o país.

Publicidade

Nascido na pequena Santo Domingo, comuna (vila) de pouco menos de 2 000 habitantes no estado de Santa Fé, o atacante tinha praticamente tudo para ser mais um dos que não chegaram lá. Transitou pelos cursos de ciência econômica e educação física na faculdade, e relutou para se dedicar à carreira como profissional – iniciou tardiamente, já aos 22 anos, no Villa San Carlos, sem passar por categorias de base.

Vegetti nem sequer era o alvo número 1 para o ataque do Vasco, que antes fracassou na busca pelos uruguaios Michael Santos e Abel Hernández, o paraguaio Gabriel Ávalos e o brasileiro naturalizado espanhol Diego Costa. Mas coube ao Pirata – como é chamado pela comemoração tapando um dos olhos, em homenagem ao Belgrano, seu ex-clube conhecido como El Pirata – mais uma façanha improvável: virar o herói vascaíno na parte final da última temporada ao marcar dez gols que ajudaram a equipe a escapar de mais um rebaixamento no Brasileirão.

Publicidade
Faro de goleador: 29 golse em 63 partidas desde a chegada ao Gigante da Colina - Matheus Lima/Vasco
Faro de goleador: 29 golse em 63 partidas desde a chegada ao Gigante da Colina – Matheus Lima/Vasco

Nas entrevistas, ele foge das respostas protocolares e faz uso com naturalidade de palavrões incorporados ao português de pouco mais de um ano no Rio de Janeiro. O hoje badalado jogador, que quase passou como um cidadão comum em sua chegada ao Aeroporto Internacional do Galeão, recepcionado por alguns poucos torcedores, é tão especialista na arte de balançar as redes quanto na de romper projeções. Adorado pelos vascaínos e respeitado por rivais, vive em nosso país o melhor momento da carreira.

“Eu achava ser um caso único, meio especial, mas vi que [histórias como a minha] acontecem muito mais. Sempre entendi que tinha algo pendente com o futebol e que teria que tomar essa decisão [pela carreira profissional] um dia. Acredito que as duas partes tiveram dúvidas. Quando tomei esse rumo, o futebol também tomou. Nos encontramos em um ponto comum. Agora não é um trabalho, é uma paixão”, explica em entrevista exclusiva à PLACAR.

No ano passado, a paixão do jogador foi a chave para vencer as desconfianças e deflagrar rapidamente uma virada que parecia impossível. Menos de 72 horas depois da chegada ao Brasil, ele já entrava em campo com a camisa 99 às costas para garantir a primeira vitória do Vasco da Gama em São Januário na competição. “Gosto de desafios”, disse ao fim do jogo. O time saltou da última colocação para a 19ª ao fim daquela rodada e só escaparia da degola na derradeira rodada do torneio.

Publicidade
Atacante ganhou a camisa 99 no Cruzmaltino - Leandro Amorim/Vasco
Atacante ganhou a camisa 99 no Cruzmaltino – Leandro Amorim/Vasco

“Quando tenho um desejo, ponho-o na cabeça e fico como doido com ele. Na minha carreira fui muitas vezes obsessivo buscando o que queria. Na proposta do Vasco, pensei: ‘É agora’. Imaginava ser um desafio para provar algo a mim mesmo. Sei que tenho muitos defeitos e virtudes, como todas as pessoas, mas tento melhorar. Tenho hambre (fome) para conseguir objetivos e coisas importantes. Falo que vim para transcender, não só para passar”, conta.

Filho de pai caminhoneiro e mãe professora de educação física, o espírito competitivo sempre correu nas veias do argentino. Na infância, praticava esportes como vôlei e padel, mas era movido por doses a mais de hambre sempre que jogava futebol. “Nas outras atividades esportivas eu brincava, mas no futebol não gostava de perder nem nos jogos com meus amigos. Falo hoje que se minha mãe estiver no arco (na meta), vou querer fazer gol nela também. E é isso que me mantém vivo.”

A raça argentina se transformou na força motriz de que a máquina vascaína precisava para destravar. Apesar da compra pela 777 Partners, empresa americana que controlava o clube até a metade deste ano, e dos inúmeros reforços anunciados, sobravam decepções. Em 2023, o Vasco acabou eliminado pelo ABC da Copa do Brasil. Em março do mesmo ano, era o único time entre os 20 da Série A que já não tinha mais calendário nos Estaduais e na competição nacional.

Artilheiro marcou dez gols para salvar o Vasco de mais um rebaixamento - Leandro Amorim/Vasco
Artilheiro marcou dez gols para salvar o Vasco de mais um rebaixamento – Leandro Amorim/Vasco

No Brasileiro, nada dava certo. E este ano, mesmo com ele, tropeçou no modesto Nova Iguaçu durante o Estadual. A mentalidade vencedora de Vegetti foi aperfeiçoada com a ajuda da mulher, a psicóloga Joselina Bonetti, com quem está há 14 anos, e nas andanças por pequenas equipes como Rangers de Talca, do Chile, e Ferro Carril Oeste.

Antes da chegada da melhor fase da carreira, ele precisou dar passos atrás após passagem frustrada na elite do futebol argentino entre 2014 e 2017 por Gimnasia La Plata e Colón. Aceitou ir ao pequeno Boca Unidos e depois ao Instituto até a chegada ao Belgrano, onde viveu quatro temporadas como goleador, além de conquistar a Primera Nacional B (equivalente à Série B brasileira), maior título da história do clube. É o primeiro jogador a ser artilheiro das duas principais divisões do país de forma consecutiva: em 2022, com 17 gols, e em 2023, com 13.

Um pirata emocionado: durante as comemorações do título da segundona argentina com o Belgrano - Divulgação/BelgranoUm pirata emocionado: durante as comemorações do título da segundona argentina com o Belgrano – Divulgação/Belgrano

Pouco antes do primeiro contrato profissional, ele precisou lidar com um grave acidente envolvendo os pais, Reinaldo e Alejandra. O pai do jogador chegou a ficar internado em estado grave em Buenos Aires e fez o Pirata repensar sobre a continuidade no futebol. Hoje, conta com o apoio da esposa nos momentos mais delicados.

“Minha mulher diz que é antiprofissional tratar alguém tão próximo, nos conhecemos bem. Era comum me trancar no quarto após um jogo. Achava isso normal, mas em algum momento entendi que fazer isso não era o melhor, não trazia resultados. Precisei entender que a minha família vive a minha vida, mas eles têm a vida deles também. Minha mulher me ensinou isso. De mudar, esquecer o que aconteceu. E acredito que o nascimento do meu filho potencializou tudo para minha melhor versão”, conta.

Com o filho Vittorio em partida em São Januário - Arquivo pessoal
Com o filho Vittorio em partida em São Januário – Arquivo pessoal

O filho do jogador é figura comum em partidas do Vasco no Rio de Janeiro. Há vídeos virais do pequeno Vittorio cantando músicas do time ou pulando em seu colo embalado pelo coro entoado nas arquibancadas de São Januário.

“Ele sabe cantar todas, às vezes olhamos para ele e nem compreendemos. Sabe português melhor que os pais. Se minha família está bem, também estou bem. E minha mulher e meu filho estão muito felizes aqui. Desfrutam muito de tudo. Meu filho tem muitos amigos no condomínio, na escola, na natação… Para mim isso é tudo. Porque se você volta para casa sem a família bem, é muito ruim. Saio mais para jantar, mas não vou à praia. Estou branco (risos). Só depende do Pedrinho (presidente do clube) que a gente fique muito tempo aqui.”

Fã de Gabriel Batistuta, segundo maior artilheiro da história da seleção argentina, superado somente por Lionel Messi, Vegetti guarda admiração por um brasileiro: Ronaldo Fenômeno. Do país, contudo, conhecia pouco e só havia feito uma visita cinco anos antes da vinda, de férias.

“Fiquei maravilhado com a liga e com tudo aqui. Eu, que vinha jogando no futebol argentino, notei muita diferença. Hoje acho que o Brasil está entre as ligas mais fortes do mundo pelo futebol e questões salariais. Me sinto um privilegiado por estar inserido nisso.”

Com Coutinho, parceiro a quem chama de craque - Leandro Amorim/Vasco
Com Coutinho, parceiro a quem chama de craque – Leandro Amorim/Vasco

Cobiçado na última janela de transferências, o Pirata avisou ao empresário que nem sequer o informasse de propostas. Ele teve o nome ligado ao River Plate, Boca Juniors, além do mercado saudita, mas planeja se aposentar no clube que aprendeu a amar.

“A gente não pode prometer algo sem saber o que vai acontecer. Tenho mais um ano de contrato (até dezembro de 2025), mas o presidente já falou comigo e com o meu empresário e eu disse: ‘Estou muito feliz aqui, se quiser que fique, só depende de você’. E, se depender de mim, fico até aposentar. Muita coisa pode acontecer, mas fui muito claro. Estou muito feliz, acho que o melhor ano do Vasco está por vir. O clube precisa voltar a ser o que foi e eu quero ser protagonista, parte disso”, conta.

O sonho agora é recolocar o clube na rota dos grandes títulos (o último deles foi o Campeonato Carioca de 2016). A Copa do Brasil parece difícil, porém possível para quem já chegou até a semifinal eliminando Fortaleza e Athletico-PR nos pênaltis.

Neste ano, Vegetti atuou os 90 minutos do clássico com o Flamengo, pelo Brasileiro, com febre e ao menos quatro partidas do Carioca com uma fissura na costela. Artilheiro da competição com seis gols, ele parece imparável no plano de devolver ao Vasco o sonhado protagonismo depois de anos de dor. Um argentino da gema.

RACISMO E VIOLÊNCIA POLICIAL

“É um tema sensível, que faz muitas pessoas sofrerem. Na Argentina não se lida como no Brasil. Uma notícia sobre racismo lá é passada por cima, não é tão abordada e debatida. Muitos brasileiros quando vão à Argentina sofrem com isso, mas também acontece de muitos torcedores argentinos virem ao Brasil e serem maltratados pela polícia, isso não ocorre tanto lá. Tudo isso precisa acabar porque somos iguais. Deus não distingue raça, cor… nada. Acho que estamos melhorando, mas ainda é um caminho difícil.”

BRASIL X ARGENTINA

“É muito mais comum ver brasileiros torcerem por River ou Boca do que argentinos torcerem para um time brasileiro. Vou falar a verdade: eu mesmo não tinha carinho pelo Brasil, mas agora tenho muito. Creio que a seleção brasileira esteja vivendo o que a Argentina viveu tempos atrás, uma falta de conexão com a torcida. Me surpreendo quando pergunto aos companheiros de Vasco quando é o jogo do Brasil e ninguém sabe. Eu sei com quem a Argentina joga, data, hora e lugar. O Brasil tem que trabalhar para voltar a ser o que era e se reconectar com a torcida.”

BASTA DE FALSO 9

“Digo que Guardiola começou a utilizar Messi de falso 9 e confundiu muitas pessoas. A partir dele, todos querem jogar com um falso 9. Mas existe um falso goleiro? Não é bem assim. Messi é um só, Guardiola é um só. E o Barcelona de Messi e Guardiola foi um só. Agora o Manchester City de Guardiola joga com um centroavante nato (Erling Haaland), com características de 9. Não se pode esquecer de uma função assim. Podem gostar mais ou menos, mas cada um tem sua função”

BLAS E SALA

“A morte do Emiliano Sala (ex-atacante do Nantes, vítima fatal de um acidente aéreo em 2019 no Canal da Mancha) mexeu muito comigo. É um cara de um povo pequeno e próximo ao meu, impossível não me colocar no lugar dele. Destruiu uma família, um povo, então busco entender os motivos para isso. Quem errou? Porque até hoje não acredito. Não me parece normal. E o caso de Valentino Blas (torcedor do Belgrano assassinado por policiais em 2020) é o que chamamos de gatillo facil (expressão usada para o abuso de poder pelas autoridades), há muitos casos como o dele. Ele me amava, amava o Belgrano. E só conheci sua história e sua mãe depois que tudo aconteceu. São coisas que precisamos tomar posição porque temos uma exposição e facilidade para falar. Quando posso tomar posição, tomo. Eu falo que a gente deveria fazer mais”.

OS NÚMEROS DE VEGETTI

Publicidade