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O futebol imita a vida

Sucesso de público e crítica, o futebol jogado pelos clubes ingleses pode sofrer um duro golpe caso o Brexit seja aprovado

Os efeitos da saída do Reino Unido da União Europeia, o Brexit, cujo desfecho foi adiado mais uma vez, ficando para 31 de outubro, podem provocar uma série de desconfortos no cotidiano do cidadão comum — por exemplo, as contas altíssimas de celular com o uso de roaming internacional no continente (hoje, o custo é de chamada local). Preveem-se também enormes engarrafamentos de caminhões em razão da burocracia nos postos alfandegários.

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Haverá revolta, mas é tudo fichinha em comparação a outro estrago sobre o qual pouco se fala: os prejuízos para a qualidade e as finanças da Premier League, o campeonato inglês de futebol, hoje o melhor torneio do mundo. Liverpool e Totten­ham disputarão a final da Champions League em 1º de junho. Chelsea e Arsenal são finalistas da Liga Europa em 29 de maio. Nunca antes quatro times de um mesmo país dominaram as duas principais competições europeias.

Mas, afinal de contas, qual a relação do Brexit com o futebol? Fazendo parte da União Europeia, o futebol inglês tem o direito de importar quantos atletas quiser de outros países. Com o Brexit — e muitos dirigentes da Federação Inglesa estão a favor do divórcio, brandindo uma tola “reserva de mercado” —, propõe-se uma redução de dezessete para doze do número máximo de atletas internacionais em cada elenco da Premier League. E, como os cidadãos europeus se tornariam estrangeiros em solo britânico, centenas de jogadores que disputam o Campeonato Inglês estariam sujeitos a um regime de imigração diferenciado. Para obter o visto de trabalho, um futebolista de fora do país deve atender a critérios rigorosos de qualificação profissional: o atleta precisa ter um número mínimo de partidas disputadas pela sua seleção principal. Hoje, como membro da UE, a Inglaterra dispensa os jogadores europeus de tal formalidade, e eles podem atuar livremente pelas equipes inglesas. Estima-se que, com a eliminação da livre circulação de jogadores “comunitários”, cerca de quatro a cada dez atletas que disputam hoje o badalado campeonato não cumpririam os requisitos mínimos exigidos por lei.

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Seria muito ruim para a “NBA do futebol”, organizada há 27 anos por uma entidade privada e independente, que reúne os vinte grandes times do Reino Unido (jogam a Premier League também equipes do País de Gales). A disputa é tão vistosa que, no mais recente acordo, os clubes assinaram contrato para dividir um bolo equivalente a 40 bilhões de reais por três temporadas em direitos de transmissão. São 100 000 empregos gerados direta e indiretamente. Com orçamento turbinado, os clubes passaram a ter os recursos suficientes, com sobra, para contratar os jogadores mais talentosos do planeta, rivalizando com outros destinos mais tradicionais, como Espanha e Itália. A reboque, ao contrário do que supõem os cartolas, tudo melhorou, inclusive as seleções locais, evidentemente compostas só de britânicos — pela primeira vez desde 1990 a Inglaterra foi semifinalista de uma Copa do Mundo, na Rússia. As seleções sub-17 e sub-20 são as atuais campeãs mundiais.

O movimento migratório elevou a qualidade do futebol disputado na terra da rainha. Não é coincidência, portanto, que os clubes ingleses tenham dominado a atual temporada. Além de um elenco recheado de nacionalidades diferentes, no comando do quarteto finalista estão quatro treinadores estrangeiros: o alemão Jürgen Klopp (Liverpool), o argentino Mauricio Pochettino (Tottenham), o espanhol Unai Emery (Arsenal) e o italiano Maurizio Sarri (Chelsea). Mas o Brexit pode estragar a festa.

Não demorou para o futebol virar metáfora da indecisão política. Klopp, do Liverpool, que já fez críticas a Donald Trump e disse que “jamais votaria na direita”, metido a tratar de temas sérios, deu seu pitaco, ao comentar o sucesso bretão com um grupo de jornalistas. “Não acho que isso acontecerá muitas vezes, mas neste ano aconteceu e isso é bom. Ao menos os grandes clubes ingleses querem permanecer na Europa de todas as formas possíveis.” Os sorrisos foram amarelos. Klopp emendou: “Achei que a piada tinha sido tão boa”. Aí sim riram, britanicamente, porque a tirada foi realmente boa. O líder da oposição no Parlamento, Jeremy Corbyn, não perdeu tempo e aproveitou para alfinetar a primeira-ministra Theresa May, encarregada de conduzir o país ao Brexit. “Talvez a primeira-ministra devesse pedir conselhos a Klopp de como conseguir bons resultados na Europa.” É um bom conselho. O futuro é nebuloso, mas pode haver solução. Há ainda pequena margem para o avanço de uma nova legislação que regulamente a presença de estrangeiros (europeus ou não) no futebol inglês, sem depender do Brexit.

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Publicado em VEJA de 22 de maio de 2019, edição nº 2635

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