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Cinco desejos para a volta do futebol pós-coronavírus

A melhor maneira de prever o futuro é construí-lo. O período atual serve para a convocação de ideias que levem à correção de rota do nosso esporte

Fui solicitado por VEJA a prever como será o futebol depois desta parada planetária decorrente da pandemia de coronavírus. Não farei isso: nunca joguei com bola de cristal. Aprendi com o esporte e com a vida que a melhor maneira de prever o futuro é construí-lo, preparando-se adequadamente para desfrutá-lo.

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Pensando assim, optei por alinhar cinco desejos – e não previsões – para o futebol que emergirá desta crise, certamente diferente do que era antes, como deve acontecer também com outras atividades e campos da sociedade.

Número 1: Gestão inteligente
Se a administração de clubes e entidades esportivas já era desafiadora antes, devido principalmente ao preparo nem sempre suficiente dos dirigentes e à mentalidade equivocada do imediatismo, agora exigirá muito mais dos gestores.

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Meu desejo é que presidentes e diretores evoluam para um profissionalismo mais responsável, deixando em segundo plano a paixão, o amadorismo e a obsessão de ganhar sempre, de qualquer maneira, como se apenas isso importasse.

Ora, o que importa é o espetáculo, o jogo limpo, a prática saudável de um esporte que apaixona multidões. Então, que os novos dirigentes – ou os velhos, com nova visão – procurem implementar essas práticas nos seus clubes e federações.

Prioridade para o planejamento, para a organização e para o profissionalismo, a começar pelo departamento de futebol e pelas contratações. Antes de cada temporada, os dirigentes têm que pensar nas metas do ano. E, então, tentar formar um grupo de trabalho de acordo com os objetivos.

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Talvez este recomeço seja também uma oportunidade para mudança na velha mentalidade de contratar e demitir treinador pelos resultados. Chega de justificar que sempre foi assim. Dá para mudar.

Tal como os clubes contratam jogadores para suprir necessidades específicas, devem também buscar o treinador adequado para o seu projeto. E apostar nele, bancar sua permanência, não desistir por causa de dois ou três maus resultados.

Se apenas isso mudar no futebol brasileiro, já teremos dado um grande passo para a modernização do nosso principal esporte.

Número 2: Prioridade ao espetáculo
Aqui, meu desejo de futuro está voltado aos profissionais do futebol, especialmente aos meus colegas de ofício, os treinadores: não temos que ganhar sempre; temos que jogar bem. Temos que preparar as nossas equipes para jogar bom futebol, para buscar o gol, para ir para a frente, evidentemente sem deixarem de ser competitivas.

Claro que haverá riscos. Pep Guardiola, homem que montou um dos times mais espetaculares de todos os tempos – o Barcelona de Messi, Xavi e Iniesta -, diz claramente num de seus livros: “Se eu tiver que perder, quero perder jogando do meu modo, não por imposição do adversário”. Traduzindo do “boleirês”: ele quer jogar para ganhar, mesmo que essa tentativa implique o risco de levar um contra-ataque ou um gol ocasional. Compartilho dessa visão. O futebol tem que encantar, tem que emocionar. Senão, vira só um dado estatístico.

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BOLA DENTRO Guardiola: fidelidade ao próprio estilo Alex Livesey/Getty Images

Tantas vitórias, tantos empates, tantas derrotas, mas nenhum prazer. Isso já não serve agora e não deve servir no futuro, quando os campeonatos retornarem à normalidade. Mais uma vez, exemplifico com uma afirmação de Guardiola: “Há uma coisa que se deve defender sempre. Se construímos uma maneira de jogar e as pessoas gostam de nós por causa dela, não devemos mudar. Temos que respeitar a emoção de nossa gente”.

Número 3: Cultura tática
Chega de apostar só no talento individual dos nossos atletas. Sei que o Brasil é o maior vencedor de Copas do Mundo por causa disso, porque a cada ano alguma equipe revela um garoto fora de série, porque ainda surgem fenômenos nos campinhos de periferia, porque sempre há um craque para fazer a diferença. Mas o futebol evolui sempre mais para o coletivo e para a supremacia da cultura tática sobre a individualidade. Infelizmente, ainda temos pouca literatura esportiva voltada a essa temática.

Desejo muito que os treinadores das categorias de base percebam essa nossa deficiência e passem a mostrar aos garotos o quanto é decisivo saber se posicionar, executar uma função específica para o time, entender como o adversário se coloca em campo e tomar as devidas providências para superá-lo, antes mesmo da nova preleção no intervalo. Precisamos, cada vez mais, de atletas que saibam fazer a chamada leitura do jogo.

Número 4: Compactação e ousadia
Fugir da mesmice – essa é uma das minhas frases preferidas. Portanto, o que eu não gostaria de ver no futebol brasileiro pós-pandemia é time cheio de volantes com características defensivas. A equipe que entra em campo para se defender, para não perder, está dando um recado ao adversário de que se considera inferior e passando à própria torcida um mau pressentimento.

Em vez de usar muitos defensores, os times brasileiros têm que desenvolver a compactação. Significa, principalmente, o preenchimento de espaços, a aproximação entre os setores do time quando se está sem a bola, para que o adversário fique sem campo para progredir.

“O que importa é o espetáculo, o jogo limpo, a prática saudável de um esporte que apaixona multidões.”

Também aqui será preciso uma mudança de mentalidade dos nossos jogadores, que não gostam de marcar. Cada vez mais, é obrigatório avançar sobre o adversário para tirar-lhe a bola, em vez de ficar apenas cercando.

Quanto à ousadia, não significa atacar de forma desorganizada. Mais do que atacar, é preciso ter o domínio do jogo, ter a iniciativa, ficar com a bola nos pés a maior parte do tempo possível, ser vertical. E até na hora de defender, é importante pensar no depois da retomada do controle das ações. Além disso, tem a questão da posse de bola: ela faz mais sentido se acontecer no campo do adversário.

Número 5: Consciência profissional e formação integral
Mais do que um desejo, esta é uma constatação: a saúde do atleta será a grande prioridade depois do coronavírus. No retorno do futebol, os clubes europeus já decidiram que seus jogadores serão testados para a doença antes de pisar no gramado, passarão por exames médicos rigorosos, quase um antidoping na véspera dos jogos. É uma questão de saúde pública.

É, também, um novo estímulo para o profissionalismo e para a formação integral dos jogadores brasileiros. o ex-goleiro e hoje treinador Emerson Leão, quando jogava, costumava dizer: sou um atleta profissional, não um jogador de bola. Infelizmente, a maioria dos nossos jogadores ainda não se deu conta disso.

Mas o futuro será daqueles que entenderem o seu papel no mundo do esporte. Isso não significa apenas mais cuidados com o físico, mas também a formação cognitiva, o desenvolvimento pessoal, a inteligência emocional e o aprimoramento da capacidade de entender o mundo e de se comunicar.

Conclusão
O futebol brasileiro sairá financeiramente fragilizado desta crise, como todos os setores de atividade. Mas poderá reconquistar a sua importância como principal entretenimento de milhões de pessoas se souber aproveitar a oportunidade de recomeço para enfrentar suas mazelas históricas e investir na inovação, na ousadia, no planejamento e na organização como premissas para um futuro melhor.

*Paulo Roberto Falcão é técnico de futebol. Jogou no Internacional, na Roma, no São Paulo e na seleção brasileira (que chegou a treinar). Foi também comentarista de TV por quase duas décadas

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