Não foi frango, foi racismo
O fatídico lance de 1950, a culpa recaída sobre os ombros de Barbosa tem explicação por quem acompanhou de perto o goleiro: foi racismo. “Em 1950, a questão de botar ele como culpado foi racismo mesmo. Ele falava, né, foi puro racismo. Na verdade, ele e muitas pessoas falaram na época. Tinham que culpar alguém, arrumar um bode expiatório. Tinha que ser o arqueiro e negro”, conta Tereza.
“Teve uma falha, sim. Eu sei quem foi que cometeu a falha, mas o Barbosa falava que nem tudo se fala para jornalista, nem para pai, nem para mãe. O Barbosa nunca apontou o dedo para dizer: olha, esse aí é o culpado”, acrescentou Tereza.
Barbosa não era o único jogador negro daquela seleção. Tinha ao seu lado, por exemplo, os zagueiros Juvenal e Bigode, que também experimentaram cobranças nos anos pós Copa. No livro biográfico, o capítulo “Afinal, a culpa é de quem”, descreve com detalhes que “o único documento filmado existente da final revela que Bigode se encontrava a sete ou oito passos atrás de Ghiggia neste lance, quando o uruguaio corria em direção à bola, já dentro da área”. O goleiro Castilho, reserva naquela Copa e titular na seguinte, foi testemunha ocular e um dos que isentou Barbosa de falha. Há quem culpe, também, Juvenal, por falha de cobertura no lance. O jogador havia passado a noite anterior a final na farra, chegando embriagado à concentração da seleção em São Januário.

Com companheiros da seleção, em um comercial de refrigerantes, em 1950 – Reprodução/Arquivo pessoal
Na segunda edição do livro “O Negro no Futebol Brasileiro”, publicado em 1964, o jornalista Mário Filho, escreveu sobre a perseguição aos culpados pela derrota. “Uns acusavam [o técnico] Flávio Costa. Mas quase todos se viravam era contra os pretos do escrete. Assim três pretos foram escolhidos como bodes expiatórios: Barbosa, Juvenal e Bigode. Mas ao mesmo tempo que se observava esse recrudescimento de racismo, o brasileiro escolhia um ídolo às avessas: Obdulio Varela, mulato uruguaio, de cabelo ruim”, contou. A Copa do Mundo recuperou uma teoria da inferioridade do brasileiro como raça, um discurso de fragilidade emocional do negro.
Não à toa, Barbosa teve como ídolo mais recente antes da partida o goleiro Dida, então em ótima fase no Corinthians e responsável por recolocar um atleta negro com a camisa número 1 da seleção brasileira após longo hiato. “Ele amava o Dida. Além do que, tinha algo que os ligava, porque o Barbosa também quase jogou pelo Corinthians e gostava muito do clube”, relata Tereza.
Barbosa se transformou em uma espécie de símbolo do orgulho vascaíno na luta contra o racismo. Curiosamente, morreu no dia 7 de abril, mesma data da carta conhecida como “resposta histórica” elaborada em 1924 pelo então presidente do clube, José Augusto Peres, e vista como um marco para negros e pessoas menos favorecidas no futebol brasileiro. Na época, o clube foi condicionado a participar da formação de uma nova associação de futebol – fundada por clubes como Botafogo, Flamengo, Fluminense, América e Bangu – condicionada a exclusão de 12 jogadores por um maior controle sobre “a moral do esporte”. Dos 12, todos eram negros ou brancos de origem humilde.
Barbosa? Não, só Moacyr
Não houve um dia sequer, segundo Tereza, em que Barbosa se apresentou com a pose e a marra habitual de um jogador dos tempos atuais do futebol: “olha, eu sou o Fulano, jogador do clube tal”. Pelo contrário, o ex-goleiro jamais pediu privilégios ou quis alguma regalia. Quase sempre preferia ser chamado de Moacyr, sem nunca incomodar.
“Uns chamavam ele de Moacyr, outros de Barbosa, mas poucas pessoas sabiam quem era ele. Que bom, porque ele queria mesmo era ficar no anonimato. Era uma aporrinhação ficar falando de 1950. Queria ficar sem cobrança, sem lhe encherem o saco, sem ninguém perturbar. Como ele gostava de dizer: sem aporrinhação para viver feliz”, explica a filha.

Na banca de jornal no bairro Ocian, na Praia Grande, onde trabalhou fazendo jogos do bicho – Reprodução/Arquivo pessoal
“Pedi para o [jornalista] Carlos Heitor Cony fazer uns dizeres para colocar na lápide do Barbosa. Ele não me respondeu, na época, mas acabou escrevendo na Folha de S.Paulo e eu tirei de lá. Ele falou que o Barbosa era um homem que estava sempre sorrindo, sempre contente, sempre alegre, um homem que só o povo produz no seu melhor momento de povo. Lindo, não?”, afirma Tereza.
O maior lazer de Barbosa era andar com uma câmera do tipo Polaroid (mundialmente conhecida pelo registro instantâneo de imagens) pendurada ao pescoço, fazendo justamente o contrário: fotos aleatórias de pessoas. Chamava atenção pela elegância com que andava e abordava a cada um na missão aparentemente simples: “era recorrente perguntarem se ele tinha estilista. O Barbosa era chique, né? Um garbo só”.
Barbosa e Vasco são um só
“O Barbosa está entrelaçado com o Vasco. Não tem como falar do Barbosa sem Vasco da Gama. Não tem como falar de Vasco da Gama sem Barbosa”.
A explicação acima é um pequeno resumo do que significa o goleiro para a história do clube. Em setembro, mesmo em plena pandemia, o Vasco inaugurou o centro de treinamento. O evento contou com a presença de políticos, ídolos do clube, mas nada arrancou mais emoção e aplausos do que o anúncio de que um dos campos levaria o nome de Barbosa. Dias antes, em campanha, torcedores pediam pelo nome no muro do novo CT.